06/06/09

Um rosto da tragédia

Esta senhora, Ana Maria Bettencourt, é a nova Presidente do Conselho Nacional de Educação. Ontem, o Público entrevistou-a e parece que ficou tão agradado com o discurso da senhora que até, na secção de sobe e desce da última página, lhe deu uma setinha em direcção ao alto. Mas a senhora disse alguma coisa importante? Não, disse as banalidades do costume: os professores têm de trabalhar mais (eu acabei ontem o ano lectivo absolutamente exausto), o ensino não deve ser centrado nos programas mas nos alunos, não vale a pena reprovar os alunos, a importância do trabalho em equipa, os exames não respondem às necessidades dos alunos (a senhora diz que isso está provado, como se fosse possível provar tal coisa). Toda a cartilha do eduquês que, desde há décadas, penetrou no ensino ocidental e o tem destruído sistematicamente.

Mas parece que o que a senhora gosta mesmo é de mudanças de paradigma. Em linguagem epistemológica, diríamos que ela não gosta do Popper, que lhe prefere o Kuhn, caso contrário como poderia ela dizer que "está mais que provado que não é com exames que se responde aos problemas dos alunos". Meditemos, então, neste pedaço do mais refinado e deletério eduquês: "Não é o ensino centrado no programa, mas no aluno, porque o programa é pouco útil se os alunos não aprenderem. Essa mudança de paradigma é muito importante: pôr os alunos a trabalhar sozinhos, a corrigir os seus trabalhos, enquanto os professores ajudam os que têm mais dificuldades."

1. Para que serve então um programa? Um programa não determina aquilo que o aluno deve aprender? Se o ensino não for centrado num programa é uma pura anarquia. O professor que tenha 25 alunos numa sala de aula tem 25 centros. Mas esses centros são centros de quê? Isto é uma aberração ideológica sem sentido. O programa é aquilo que a comunidade determinou que o aluno deverá aprender. Tanto o ensino como a aprendizagem só podem estar centrados no programa. O professor deve empenhar-se em que o aluno adquira os conhecimentos que o programa determina. Todo o resto é uma miragem absolutamente ilusória. A forma como ele trabalha deve ser determinada por ele, professor. Depois o seu trabalho deve ser avaliado. Mas esta senhora quer impor a sua ideiazinha para educação e obrigar todos os professores a trabalhar em conformidade com a sua ideiazinha para a educação. Porque, como todos já notámos, a senhora tem uma ideiazinha para a educação da pátria.

2. Mas o que significa o paradigma novo da senhora Presidente do CNE? Novo é uma expressão, pois nós, professores, andamos a ser matraqueados com esta linguagem paranóica há décadas. Significa que o professor organiza umas actividades para os alunos mais espertinhos e fica a tomar conta daqueles que não sabem ou não querem saber. A ideia subjacente é retirar os melhores alunos do contacto com os professores, deixá-los entregues a si próprios, a auto-corrigirem-se, etc., enquanto o professor anda de carteira em carteira tentando recuperar os outros. Esta deve ser uma forma de caminharmos para o socialismo. Retiramos os professores aos que querem aprender, aos que se esforçam, aos que têm aptidões, para os entreter com aqueles alunos que não querem trabalhar. Talvez assim consigamos anular as diferenças genéticas e as de personalidade e construamos um inferno de igualdade. É verdade que há alunos com dificuldades de aprendizagem. Esses merecem apoio do professor da turma e de outros que se especializem na recuperação desses casos. Mas o principal problema das escolas não são os alunos com dificuldades de aprendizagem, mas os alunos que não querem aprender, que não querem trabalhar, que não querem esforçar-se. Eu até posso perceber que no ensino básico algumas das intervenções defendidas por Ana Bettencourt façam algum sentido, desde que os melhores alunos e os alunos que trabalham tenham direito ao professor, que possam aprender com ele e não com umas fichinhas de actividades miseráveis. Mas que sentido fará isso no ensino secundário? Vou dar uma aula sobre a ética kantiana pondo os alunos a fazer fichinhas, e arrasto-me de carteira em carteira para ajudar os que não querem fazer nada, enquanto os alunos que querem trabalhar protestam porque querem que eu dê uma aula normal para eles aprenderem? Estes inovadores paradigmáticos não saberão que a aprendizagem passa pela relação entre mestre e discípulo, pela relação do que fala com aquele que ouve, pela relação do adulto, que deve mostrar que sabe, com a criança ou adolescente que precisa de um modelo. O professor da ideiazinha educacional da senhora Presidente do CNE não passa de um burocrata que gere fichas de trabalho, mas que não tem nenhum saber a transmitir. Eis o admirável mundo novo dos paradigmas educativos da nova Presidente do CNE. Se o leitor tem filhos em idade escolar, vive numa grande cidade e tem dinheiro, já sabe o que tem de fazer. Ponha-os num bom colégio particular, de ensino bem tradicional. Se por acaso não o puder fazer, aguente-se. O ensino de qualidade não é para todos. Os "pensadores" e os "decisores" (palavra horrível) da educação acham que a escola pública deve ser aquilo que a admirável Bettencourt diz. Foi isto que pôs o ensino onde está. E a senhora escusava de vir com a história da sua visita a uma escola finlandesa. Não estamos na Finlândia, nem somos finlandeses. Se a senhora gosta tanto da Finlândia que vá para lá pregar o seu eduquês. Ana Bettencourt é um rosto da tragédia que se abateu sobre o ensino em Portugal. Tem sido uma incansável divulgadora do niilismo educativo, sempre escorada nas melhores intenções, e agora teve a recompensa. Chegou a Presidente do CNE. Melhor do que isso só o cargo de ministra, mas esse está bem entregue. Lurdes Rodrigues tem-se mostrado muito eficiente na aplicação da ideologia de Ana Bettencourt.

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