12/06/09

Hieróglifos, símbolos e metáforas



Eis uma coisa da qual só posso discordar. A linguagem simbólica exprime o pensamento sobre o divino. Do divino não têm os homens conhecimento, não há ciência empírica dele, mas podem pensá-lo. Para o pensar precisam de o simbolizar e simbolizar as "experiências" que dele têm. Como Kant ensina, não há conhecimento de Deus ou da imortalidade da alma, apenas pensamento. Mas Kant também ensina que o mesmo se passa com a liberdade. A liberdade não é um dado empírico, não é cognoscível, dela não há ciência possível. Mas isso não significa que, quando usamos a linguagem para simbolizar essa liberdade, estejamos a disfarçar o que quer que seja. Os homens têm agido no pressuposto da liberdade, na crença na liberdade, bem como no pressuposto da existência de Deus e da imortalidade da alma. Uma coisa é idêntica à outra.

Mas há uma coisa em que o Zé Ricardo tem razão: a vacuidade da linguagem. Mas essa vacuidade não deriva de ela ser utilizada para referir "experiências" não empíricas da humanidade, como aquelas que as religiões tratam, ou aquelas que pressupõem que somos livres. A vacuidade da linguagem nasce da sua impotência para dizer a realidade e da degradação contínua que toma conta dela, tornando-a menos própria para dizer o que quer que seja, cativa que fica da banalidade que a usura quotidiana impõe.

É no símbolo religioso e na metáfora poética que a linguagem tem maior pregnância. Ela é obscura, mas essa obscuridade não se confunde com a equivocidade lexical que o uso quotidiano impõe. A obscuridade da linguagem está enraizada na própria obscuridade da existência e da relação do homem com aquilo que o envolve. Quando o símbolo e a metáfora se degradam em catacreses ou metáforas mortas é o momento em que a linguagem já não serve para pensar e está radicalmente banalizada, correspondendo a uma experiência banal do quotidiano.

É aqui que se coloca uma coisa que cada vez me interessa mais. A riqueza do conceito filosófico não está na sua claridade, por muito que tenha sido esse o programa da modernidade encetado por Descarte. A riqueza do conceito filsófico radica na sua origem simbólico-tropológica. Não é o traço claro e distinto que dá que pensar, mas o fundo obscuro, essa contaminação da linguagem filosófica pela sua origem mito-poética que fornece a matéria para o pensar. Pensar é caminhar para dentro das metáforas e dos símbolos, é escavar nessa "ausência de pensamentos".

Mas essa ausência de pensamentos não significa que não haja nada para pensar, pelo contrário. A ausência de pensamentos surge como uma injunção a pensar. Por exemplo, pensar a liberdade. Eu sei que nunca poderei ter uma ciência da liberdade, mas isso não me exime do dever de a pensar. E o termo liberdade, apesar do seu uso banalizado, não deixa de ser símbolo e metáfora, não deixa de ser obscuro e é essa obscuridade que nos dá que pensar. O mesmo se passa com a linguagem simbólica das religiões, apesar do seu uso profundamente degradado e positivado. Nesses símbolos esconde-se uma experiência e um interesse obscuros da humanidade que nos dão que pensar. Só aí há que pensar. O espírito de veneração e mistério dos crentes é apenas o sintoma desse interesse obscuro que habita o homem desde que é homem.

O resto é conhecimento e mero raciocinar, e esses pertencem à ciência. O grande problema da teologia não é o mistério, nem o símbolo, nem a metáfora. O problema da teologia é a razão entendida como entendimento e faculdade puramente lógica fundada na não-contradição. O problema da teologia é a tentação de fazer ciência daquilo que não há ciência, a tentação de não pensar.

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