13/06/09

O afastamento das galáxias


Acho que já escrevi aqui, mas não tenho a certeza. Não sei se sou contra ou a favor do novo acordo ortográfico. É uma das coisas que me deixa relativamente indiferente, embora não goste de ler ação em vez de acção e outras coisas do género. Mas os meus devaneios estético-linguísticos não possuem substância suficiente para me ajudar a definir uma opção por um dos lados da barricada.

Tudo isto vem a propósito de um artigo de Cristóvão Tezza, aliás excelente, que encontrei graças ao De Rerum Natura. O autor propõe que, tendo em conta a difícil penetração dos autores portugueses no Brasil e dos brasileiros em Portugal, as obras literárias passassem a ser traduzidas para a variante local do português. É uma ideia particularmente interessante. Mas deixemo-la de lado.

Eu que não tenho uma opinião definida sobre se deve ou não haver um acordo ortográfico, tenho já uma opinião definida sobre o que ele de certa maneira representa. Eu não sei praticamente nada de astronomia e de astrofísica, mas sei que após o Big-Bang e a formação das galáxias, estas não fazem outra coisa senão afastarem-se umas das outras. É aquilo que se passa com as línguas. O acordo ortográfico é uma tentativa desesperada para evitar que as duas galáxias fundamentais da língua portuguesa se continuem a afastar.

Esse afastamento, porém, é inevitável. Uma língua reflecte e condensa as experiências existenciais de um povo. Se essas experiências são tão diferentes, é natural que a língua, que outrora foi comum, se afaste, se torne estranha. A experiência de que fala Cristóvão Tezza é partilhada por mim. Tezza, referindo-se a um livro de David Lodge excelentemente traduzido em português de Portugal, escreve: "Quanto à linguagem, em nenhum momento o leitor se sente em casa, e isso é mortal na prosa literária, que tem na vida cotidiana da língua a sua matéria-prima de origem. Não é só vocabulário, o que seria um problema simples – é sintaxe mesmo, os pronomes todos e seus modos de usar, campos semânticos sutilmente distintos, regências particulares que vão como que armando um novo modo de ver o mundo, tudo que metaforicamente define uma língua."

É esse estar fora de casa que eu sinto quando leio o português do Brasil, mesmo quando estou perante grandes cultores da língua portuguesa. Há sempre a ilusão de que não será difícil ler um livro na variante brasileira do português, pois tudo aquilo é familiar, mas nunca me sinto dentro do meu horizonte de experiência. Aquele português fala-me de uma experiência que não é radicalmente a minha e captura essa experiência numa sintaxe e numa semântica que nunca deixam de me deixar perplexo. Muitas vezes prefiro ler uma tradução espanhola, francesa ou inglesa de um livro, por exemplo, alemão, do que a tradução feita, ainda que muito bem feita, no Brasil.

O meu problema com o acordo ortográfico reside neste ponto mesmo. Será possível evitar que as galáxias se afastem? Duvido que, por mais acordos ortográficos que sejam assinados, no futuro, já relativamente próximo, não existam efectivamente duas línguas bem diferenciadas, o português e o brasileiro. Será isso um bem ou um mal? Não faço ideia, mas também não me ocorre perguntar se o afastamento das galáxias é um bem ou um mal. Acontece e mais nada.

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