19/06/09

Reflexões sobre a liberdade



Enquanto quiserdes viver plenamente autónomos, como senhores absolutos, sem mesmo um deus para vos dar ordens, vivereis fatalmente como escravos ou como membro isolado de uma organização qualquer. Paradoxalmente, é ao aceitar Deus que vos tornareis livres e libertos da tirania humana, pois quando O servirdes, o vosso espírito não mais se transvia na servidão. Deus não convidou os filhos de Israel a abandonar a servidão no Egipto; Ele ordenou-lhes que o fizessem. (Thomas Merton, Semences de Contemplation)

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Este texto de Merton tem o poder de mostrar duas coisas essenciais da nossa cultura ocidental. Em primeiro lugar, a filiação da liberdade na tradição religiosa judaico-cristã. E a liberdade não deve ser aqui entendida na visão dualista da liberdade negativa - liberdade positiva, herdada da reflexão de Isaiah Berlin e, de certa forma, da tradição liberal (cf artigo da Stanford Encyclopedia of Philosophy, onde é feita uma exposição aturada dos dois conceitos e a sua discussão), mas a liberdade como acto de libertação e de emancipação. O que surpreendemos no texto é o devir histórico do ser livre, mas um devir histórico que é, curiosamente e ao mesmo tempo, pré-político e político. É pré-político no sentido que tem um cunho religioso e a liberdade vem da relação com o absoluto que emancipa e liberta da servidão perante as coisas relativas. É político pois a imagem da libertação do povo de Israel do cativeiro está ligada à separação de uma comunidade política, a do Egipro, e à formação de outra comunidade política, neste caso de uma Teocracia.

Merton mostra ainda uma outra coisa, um estranho paradoxo: a liberdade nasce de uma injunção exterior. Não nasce da deliberação e do livre-arbítrio do indivíduo, mas da ordem que Deus dá ao povo de Israel: deixai de ser escravos! Esta injunção à liberdade, exterior à consciência, evidencia a complexidade da temática da liberdade consubstanciada na dialéctica da autonomia e da obediência. Ordenam-me que seja livre. Só chegarei à liberdade se obedecer à injunção divina. Este paradoxo fascinou os filósofos e está presente, por exemplo, na moral kantiana onde, em última instância, a única coisa que está em jogo é o tornar-me livre, o realizar a liberdade, facto que me é ordenado através de um imperativo formal e categórico. Ou então na filosofia moral de Sartre onde a liberdade é ressentida como uma condenação, estou condenado a ser livre.

Esta dialéctica da obediência e da autonomia que institui a liberdade só podia ser sentida pela consciência humana como algo divino. O mundo natural, o curso natural das coisas, está submetido à férrea necessidade (a cadeia causal dos acontecimentos que são regulados pelas leis naturais) ou o acaso. Em ambos, na necessidade e no acaso, não há liberdade. Esta é radicalmente estranha à ordem natural das coisas, mesmo das coisas humanas. É essa estranheza que o Antigo Testamento, no livro do Êxodo, capta em linguagem religiosa, como se a desmesura da liberdade só pudesse chegar aos homens por uma ordem de Deus.

Toda esta dimensão da reflexão sobre a liberdade é, lógica e ontologicamente, anterior à problemática da liberdade negativa e da liberdade positiva, sendo a primeira entendida como ausência de coacção, barreiras e obstáculos, e a segunda, a liberdade positiva, entendida como possibilidade de agir autonomamente e realizar os seus objectivos fundamentais. Tanto num caso como no outro, há que considerar um devir da liberdade, um tornar-se livre, mas um tornar-se livre obedecendo a uma injunção. Fica a questão seguinte: os perigos, apontados pela tradição liberal à liberdade positiva, não estarão ligados a este paradoxo originário da liberdade, à perversão da injunção originária, à transição da ordem de Deus para uma ordem colectiva, onde o colectivo é visto como totalidade orgânica onde se dissolvem, na obediência puramente humana, as liberdades individuais?

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