31/05/07

Algumas Dádivas - 2. Ar

O ar cobria de sombras o rosto.

E em cada boca havia uma roseira
onde nascia leve e suado o mosto.

[Micropoemas, "Algumas Dádivas"]

Triste tristeza, a bondade socrática

O primeiro-ministro anunciou, no debate (?) no parlamento, mais um choque tecnológico. O grande timoneiro vai distribuir computadores a pataco, como outrora se fazia com o bacalhau. O Engenheiro Sócrates achará mesmo que isso resolve o que quer que seja nas escolas? É provável que saiba que não resolve, mas sabe que isso ajudará a eleger uma nova maioria dentro de 2 anos (é já amanhã). Hoje já não se pode fazer como no tempo do Cavaco para ganhar eleições: meter gente na função pública. Agora a moda é computadores e banda larga para os cafres.

Onde se substitui a seriedade do trabalho pela recepção de presentes, nada de bom se poderá esperar. Triste tristeza, porque és tão triste?

O Grande Dador

Tudo o que é aberrante ou absurdo procura a capa da bondade para se cobrir e assim ganhar legitimidade perante o olhar público. O problema da doação de órgãos é efectivo e real, e pode mesmo acontecer que na Holanda seja particularmente intrincado. Mas nada disso justifica o “reality show” O Grande Dador (The Big Donor Show), no qual uma mulher de 37 anos, em estado terminal (sic), vai decidir amanhã perante o público a qual dos três concorrentes vai doar os rins. A justificação legitimadora parece ser a necessidade de chamar a atenção para o problema da doação.

À empresa “proprietária” do concurso não falta espírito de iniciativa e capacidade de inovar. Parece que a fileira de produtos a explorar não tem fim. Mas para pensar este tipo de acontecimento não basta o recurso à retórica sobre a degradação dos valores ou, mesmo, à referência à vacuidade da sociedade do espectáculo. Tudo isto é verdade, mas o problema não é meramente social ou moral. É um problema ontológico.

O que este tipo de programas vem trazer à luz são as dimensões patológicas do ser, sejam as doenças físicas, sejam as psíquicas, sejam as sociais. Mas ao torná-las patentes, ao manifestá-las, estes programas cumprem uma função essencial: a dimensão patológica do ser transforma-se numa forma de ser patológica. Mas como os modos de ser patológicos se patenteiam e se encontram justificados e legitimados pelo espectáculo da sua exposição pública, eles caminham para a sua aceitação como normalidade. Daqui a tornarem-se a norma ou a regra geral, vai um passo.

O que é importante interrogar e pensar é a necessidade que está a desencadear este tipo de mutações. E enganar-se-á quem vir no fenómeno um mero oportunismo social e uma pura estratégia económica. Por detrás de tudo isto, esconde-se qualquer coisa de inominável e, por isso, impensável. O que significa aqui o «impensável»? Significa que não se dá ao conceito, que não se deixa circunscrever e limitar e, por isso, é inapreensível. Chamemos-lhe, então, o “inapreensível”.

É este “inapreensível” que se manifesta na fluidez dos fenómenos que as nossas sociedades sentem confusamente como degradantes, mas aos quais se agarram seduzidas por qualquer coisa que não sabem explicar, que as convoca para o espectáculo, que as agarra e as prende. O que não se pode apreender tem o estranho condão de prender as pessoas, de as fixar nessa terra de ninguém que se esconde em todos este tipo de espectáculos. O «inapreensível» prende as pessoas à luz atrás da qual ele se oculta. Nós prendemo-nos àquilo que nos dá sentido. Ora o «inapreensível» – outra maneira de dizer o sem sentido, pois não tem conceito, nem limite – é o que dá sentido às pessoas. Mas como só se pode doar aquilo que se tem e só se pode receber aquilo que é doado, o que as pessoas recebem é o sem-sentido, doado pelo «inapreensível», que nelas toma conta de tudo – ser e vida.

Neste tipo de espectáculos, não há entretenimento, para usar esta horrível palavra em voga, mas uma operação ontológica onde as pessoas vão em busca do sentido para a sua existência e o recebem na forma de não-sentido. Esta contradição ôntica conduz à algo de efectivamente real: o dilacerar que atinge as pessoas devido ao choque entre o desiderato do sentido e a sua recepção como não-sentido produz a nulidade.

O curioso de tudo isto – e curioso deve ser entendido no sentido daquilo que dá que pensar e que merece ser pensado – é que nós vemos os resultados (a redução das pessoas a nulidades ônticas), mas escapa-nos a causa eficiente e produtora desses resultados. Mas ao escapar-nos a causa eficiente, escapa-nos, também, a causa final. Para que serve tudo isso?

Tomamos consciência do resultado – a nulidade ôntica dos homens –, mas não sabemos o que o produz, nem por que razão, entendida como finalidade, o produtor o produz. Se queremos tactear esse continente que envolve a montante e a jusante a nulidade ôntica dos homens, temos apenas a possibilidade de olhar para ela, nulidade, para descobrir no produto a marca do produtor e nesta a sua finalidade. A questão é mais radical do que o niilismo entendido como a desvalorização de todos os valores. A nulidade é a des-realização de toda a “res”, de toda a coisa, de todo o ser, incluindo aí o homem. É esta des-realização da “res” (coisa) que opera no mundo. Não é apenas nos “reality show”. Convive connosco no mundo do trabalho, na escola, na universidade, em todo o sítio onde um certo espírito de iniciativa se agita. Sempre que as instituições começam a perder o sentido humano, sempre que uma espécie de “reality show” se apossa de um sítio e de uma forma de trabalhar, encontramos uma manifestação desta des-realização da “res”.

Mesmo ao nosso lado, na inconsciência que é a sua, estão os agentes do «inapreensível», do Grande Dador. O seu papel não é diferente daquele que está guardado aos produtores e realizadores dos “reality show”, apesar de aparentemente tratarem de coisas sérias. A função, no entanto, é “des-realizar” o dado, “des-fazê-lo” enquanto se monta um extenso espectáculo. Se for possível olhar com atenção o mundo da vida, o mundo onde os homens trabalham e existem, depressa se descobrirá que cada vez mais a estrutura que o sustenta não é diferente dos “reality show”. Olhem-se as escolas, as instituições públicas, os bancos, as grandes empresas de distribuição, mas também os clubes de futebol. Em todo o lado, um mesmo fenómeno se manifesta. Mesmo na política. As ditas “gaffes” dos ministros – Mário Lino, Manuel Pinho, Correia de Campos –, não são “"gaffes”, mas a própria natureza da coisa que, mesmo no núcleo da ordem e do poder, se torna patente, pois o poder tornou-se um imenso “reality show”, talvez o lugar por excelência onde o “inapreensível” opera.

O Grande Dador. Eis uma bela e enigmática metáfora. O Grande Dador é aquele que nos fala para além da morte – do nada – e que assim nos dá o sentido que carecemos. Mas esse sentido é o não-sentido. Sim, o Grande Dador é o outro nome do «inapreensível». Que estranha dádiva tem ele para doar.

Abrir para a luz

30/05/07

Algumas Dádivas - 1. Fruto

No fruto, pulsa o ventre;

e o corpo acetinado e sujo
é esmagado na semente.

[Micropoemas, "Algumas Dádivas"]

Música às quartas - 2. Meredith Monk, Volcano Songs

Meredith Monk, Volcano Songs. A autora “integra” a vanguarda musical que faz uma aproximação entre o jazz e a música erudita e, no caso dela, a música para teatro. O resultado é, por norma, bastante interessante e consistente. Na entrevista inserta no booklet que acompanha o disco, Monk, a uma pergunta sobre as suas raízes musicais, responde: “Sempre me senti como fazendo parte daquilo que penso ser a tradição independente americana. Estranhamente, muita actividade dessa tradição ocorreu na Costa Oeste levada a efeito por indivíduos que não seguiam o caminho da tradição europeia, mesmo se nela tinham sido formados. Senti-me, muitas vezes, muito próxima dessa forma de pensar.” Esta tradição remete para figuras John Cage, Henry Cowell, Lou Harrison, Steve Reich, Terry Riley, entre outros.

O CD Volcano Songs é de 1997, da etiqueta ECM, com uma belíssima capa, e é composto por 15 faixas, que incluem as "Vulcano Songs" (duetos e solos), o “New York Requiem”, a “St. Peterburg Waltz”, a peça “Three Heavens and Hells” e duas “Light Songs”. Para além de Meredith Monk, encontramos Katie Geissinger, Allison Easter, Dina Emerson (voz) e Nurit Tilles e Harry Huff (piano).

Esta obra, como outras da autora, é uma exploração da voz como instrumento musical. Não é o sentido da palavra que se joga aqui – aliás, à maneira do jazz – mas a exploração do som. Mas esta exploração faz lembrar a música erudita de vanguarda. Sobre Volcano Songs, a autora diz: “Volcano Songs não é sobre nenhum lugar em particular [ao contrário de anteriores obras]. Pensei nos duetos, que iniciam o disco, a partir dos processos da natureza, e os solos foram pensados como pequenos retratos em esboço de cinco diferentes seres.”
Uma experiência contaminante da contaminação...

Erosões

29/05/07

Carlos Drummond de Andrade - A Língua Lambe

A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.

E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,

entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.

In O Amor Natural, 1992

Algumas dádivas

Com A língua lambe concluiu-se uma série de poemas dedicados ao grande autor de língua portuguesa, Carlos Drummond de Andrade. Estes poemas constam da edição da Poesia Completa de Carlos Drummond de Andrade, publicada, em volume único, pela Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2006 (a edição original é de 2002), 1599 pp. É uma bela edição em papel bíblia e com caixa cartonada. É o que se poderá chamar uma bela prenda para um amante de poesia, passe a publicidade. A Introdução é de Silviano Santiago e a fixação de textos e notas de Gilberto Mendonça Teles.

Abandonemos a grande poesia e voltemos à do autor do blogue.

A partir de amanhã iniciar-se-á a publicação de "Algumas Dádivas”, conjunto de nove textos pertencentes ao ciclo Micropoemas. Os textos reportam-se aos anos de 1977 e 1978, com arranjos posteriores, não datáveis. Nenhum dos textos do ciclo Micropoemas tem mais de três versos.

Triste tristeza

Triste tristeza. Olho a fotografia e tenho vontade de corar. De vergonha, claro. Sócrates e mais uns maduros interrompem o natural fluir da vida quotidiana dos moscovitas, apenas para um exercício que combina a propaganda mais descarada (será que temos um novo SNI?) e o narcisismo mais insuportável. Que inteligência política terá um homem que se permite tal espectáculo? Não terá percebido Sócrates que toda a gente sabe que nada naquela corrida é verdadeiro? Que ela não leva a lado nenhum? Não perceberá que aquilo é a confissão da sua nulidade enquanto figura política? Ele pensa que acreditam que o jogging é o símbolo da sua modernidade?

Sou mais ou menos da idade de Sócrates. A educação que recebi foi sempre a de ser discreto. Nada de admirar, era a educação corrente, na altura. O tecido social, de uma forma mais ou menos transversal, valorizava a discrição, o recato e a modéstia. Claro que sempre houve gente que gostou de chamar a atenção sobre si, mas era olhada como padecendo de algum mal particularmente pouco recomendável. Quem pensa Sócrates que é, para dar tão triste espectáculo? Ele achará que Putin e os russos ficarão embevecidos com os seus dotes atléticos? Ou aquilo dirige-se aos cafres que governa?

Meus Deus, não será altura de olhares para os dirigentes portugueses e dar-lhes um bocadinho de senso, amor-próprio e respeito pelo país? Valha-nos a santinha, já que nem S. Cirilo nem S. Metódio evitaram tanto despropósito.

[Fotografia de Ricardo Oliveira, no Expresso on-line: http://expresso.clix.pt/Actualidade/Interior.aspx?content_id=395987o.clix.pt/Actualidade/Interior.aspx?content_id=395987 ]
[Ícone de S. Cirilo e de S. Metódio: http://www.ecclesia.com.br/Biblioteca/hagiografia/ss_cirilo_metodio.htm]

A noite vem

28/05/07

Carlos Drummond de Andrade - Papel

E tudo que eu pensei
e tudo que eu falei
e tudo que me contaram
era papel.

E tudo que descobri
amei
detestei:
papel

Papel quanto havia em mim
e nos outros, papel
de jornal
de parede
de embrulho
papel de papel
papelão.

In As Impurezas do Branco, 1973

Macbeth em Torres Novas

O Teatro Virgínia foi palco da apresentação, no sábado passado, da peça Macbeth, de William Shakespeare, numa encenação de Bruno Bravo e com João Lagarto como protagonista.

O teatro não é um dos meus interesses fundamentais. Não tenho grande experiência deste tipo de arte e sobre ela nunca reflecti. Dito isto, percebe-se a relatividade do que segue, para não dizer a nulidade.

Entre a força do texto shakespeariano e a força da representação que me foi dada a ver parece haver uma enorme distância. Não sei se será da qualidade dos actores, da encenação ou de ambos. No entanto, há uma coisa que me parece evidente: aquele texto – a versão da peça para português – não se colava a quem estava no palco. Havia palavras, frases, discurso a mais e actores, fôlego e inspiração a menos. Estava a ver a peça e só me vinha ao pensamento a ideia de que talvez não fosse possível representá-la na nossa língua. O ritmo e a respiração da linguagem não se adaptavam à língua dos actores e tudo assim se tornava estranho, por vezes monocórdico e artificioso. Não que seja adepto de um certo naturalismo representacional. O teatro é artifício, mas não “artificiosidade”. Não que tenha saído do Virgínia em estado de desconsolo, mas não senti aquele Shakespeare como meu, apesar de João Lagarto ter tentado, com esforço, salvar um barco meio à deriva. Por exemplo, será conjugável a dimensão cénica, baseada num puro exercício luminotécnico, e forma declamada de muitas das falas?

Do ponto de vista do texto, há nele uma curiosidade. Se olharmos de forma demasiado apressada, julgamos encontrar ali uma espécie de reconstrução da tragédia grega. Há quem veja, por exemplo, em Lady Macbeth uma reencarnação de Medeia ou Clitemnestra. No entanto, o núcleo central da peça tem pouco de grego e pouco de trágico. A esfera de sentido fundamental provém dos mitos judaico-cristãos e funde dois: a sedução de Adão por Eva e o assassinato de Abel por Caim. É Lady Macbeth (Eva) que leva o marido (Adão) a matar (agora como Caim) o seu primo, o rei Duncan (Abel). É na estrutura mítica do judaísmo que Shakespeare encontra a força do drama, travestindo-o com a violência encontrada na crónica da Escócia de H. Boécio, chegada a ele através de Hollinshed, e na qual surge a personagem semilendária de Macbeth.

Nesse centro, o que se encontra é a noção de culpa na origem do crime e o respectivo castigo. Por exemplo, no Édipo Tirano, de Sófocles, Édipo é inocente e tudo o que o destino lhe traz, toda a sua tragédia, não se alicerça no livre-arbítrio. Não é este o caso de Macbeth. Na origem do crime macbethiano, estão a avidez e a concupiscência, dependentes do livre-arbítrio, e não o cruel destino a que a terrível necessidade não deixa fuga. Tudo isto é envolvido num fundo medieval sangrento e supersticioso.

Quando Macbeth é morto e a ordem moral do mundo é restabelecida, a mensagem judaico-cristã fica completa. Mas na tragédia grega não há uma ordem moral do mundo a restabelecer, pois a moral não faz parte do mundo e a ordem é apenas uma ilusão com que a vida, no seu turbilhão caótico, se transfigura e se torna aceitável aos homens.

Fios sobre a solidão


27/05/07

Carlos Drummond de Andrade - De 7 dias

Começou festiva a semana:
espiávamos por uma frincha
a vitória, e eis que ela fulgura,
rosa aberta aos pés de Garrincha.

Ai, emoções de Gotemburgo!
Futebol que nos arrebatas,
esse rugir de alto-falante
vale mozartianas sonatas.

E torço firme a vosso lado,
cidadãos que morais no assunto,
embora entenda de pelota
simplesmente o que vos pergunto.

Quem ganhou foi o Botafogo,
canta o severiano, alma leve.
Exclama junto um pena-boto:
— É, e quem perdeu foi Kruchev.

Entre estouros, risos, foguetes,
assustado, lá foge o pombo
que bicava milho na praça,
mas surge Adalgisa Colombo,

escultura, graça alongada,
e a seus munícipes ensina
que entre todos os bens da terra
a beleza é graça divina.

E talento é a suprema dádiva:
penso nisso ao ver Pinga-Fogo
no Dulcina, e a rara Cacilda
em seu sutilíssimo jogo

de emoção: a infância pisada,
um murmúrio de pai a filho,
diálogo obscuro das almas
para quem o sol é sem brilho.

E que delícia O Protocolo,
velho Machado sempre novo!
Nosso teatro já floresce,
não é pinto a sair do ovo.

Mas nem tudo foram ditosas
horas no tempo brasileiro:
O vento no Convair, e a chuva.
A morte estava num pinheiro.

A morte estava à espera, surda,
cega a toda humana piedade.
E esse indecifrável mistério,
inscrição chinesa no jade,

faz baixar um crepe silente
sobre os gaios fogos votivos.
Que João e Pedro, das alturas,
suavizem a pena dos vivos.

E vem outro, mais outro dia.
Paira a esperança, junto à fé.
A bola em flor no campo: jóia,
E seu ourives é Pelé.

In Versiprosa, 1967.

[Dedicado por um benfiquista a todos os portistas e sportinguistas, adeptos de poesia, pelos triunfos do ano.]

Café Central. Lugo, 1903











A via latino-americana

Há uma certa esquerda que deposita uma cega fé na América Latina, e que veio, por exemplo, verberar as intervenções de Bento XVI, no Brasil. Mas Chávez, o presidente da Venezuela, está a mostrar o que entende por democracia. Um canal privado passou ou vai passar para o domínio público. Por acaso, o canal não simpatiza com a via socialista do presidente. Azar. Bento XVI merece ser ouvido em toda a sua amplitude, nas críticas ao liberalismo, mas também nas que faz à ilusão marxista. Aliás, Ratzinger é das poucas personagens europeias que merece toda a atenção, gostemos ou não dele.

Aeroporto da Ota

O caso do aeroporto da Ota é significativo da atitude do país perante grandes e caras decisões. Quase 100% dos portugueses, onde me incluo, não faz a mínima ideia de qual deverá ser o local do novo aeroporto, se é que novo aeroporto deverá haver. O país diverte-se com as graçolas de Mário Lino, e quem é contra a Ota lança a suspeita de haver grandes interesses, nomeadamente do Oeste, na escolha do governo. Mas que interesses sustentarão os que são contra a Ota?

O cidadão compreende, talvez vagamente, que um grande jogo se esconde por detrás do burburinho e os que são contra não têm menos interesses do que aqueles que são a favor da Ota.

Ilude-se quem julgar que em qualquer decisão que seja tomada, incluindo a decisão de não construir um aeroporto, não haverá interesses poderosos por trás. Nestes casos, não há decisões bacteriologicamente puras, nem desinteressadas, nem centradas num suposto interesse nacional. Por muito que isso transtorne os nossos espíritos, há apenas o puro jogo das potências em presença. Eliminemos da solução a ideia da sua bondade e olhemo-la como a resultante de um jogo de forças. A vida pública é o que é, o burburinho do debate é apenas para disfarçar.

Ascensão

26/05/07

Carlos Drummond de Andrade - Conhecimento

Vendo o retrato de Maria, filha de
Sophia de Mello Breyner Andresen.

CONHECER de retrato é conhecer
uma cintura sombra de outra, apenas?
Ou será que em instantânea descoberta,
Maria,
as almas passam na fotografia?

A tua vislumbrei, e ela sorria.

In Viola de Bolso, 1952.

Música para o fim-de-semana: Philip Glass

Para o resto do fim-de-semana uma ópera em três actos. Dois acontecimentos convergiram para esta proposta. Por um lado, os meus alunos de Filosofia estão a fazer um trabalho sobre desobediência civil e a sua conexão com os direitos humanos. Por outro, consegui adquirir, depois de uma longa procura, a obra em causa.

A obra é a ópera emblemática de Philip Glass, Satyagraha. Este termo designa a filosofia não-violenta de Mohandas Gandhi.

É um facto que a desobediência civil está ligada, originariamente, ao pensador norte-americano Henry-David Thoreau e ao seu Civil disobedience. No entanto, Gandhi é um dos grandes desobedientes civis e foi através dessa desobediência, que tomou corpo a resistência não-violenta que ele conduziu na Índia e a levou à independência. Mas já em John Locke, século XVII, se encontra uma aproximação à desobediência civil, nomeadamente na Carta sobre a Tolerância.

Também é um facto que nenhum dos três actos da ópera de Glass é dedicado a Gandhi. O 1.º acto é denominado Tolstoy, o escritor russo de Guerra e Paz, o 2.º a Tagore, um dos principais escritores indianos e prémio nobel da literatura, o 3.º a Martin Luther King, a voz mais poderosa da resistência não-violenta nos EUA e figura cimeira na luta pelos direitos da minoria negra. Por detrás destas figuras, está o conceito de Satyagraha, que pode ser lido à letra como procura da verdade e, numa leitura demasiado ousada, como amor à sabedoria, isto é, como filosofia.

É a partir deste conceito que Glass compõe uma das obras essenciais do minimalismo. O carácter repetitivo, mas em contínua mutação, produz um efeito hipnótico que deixa o ouvinte absolutamente preso ao fluir da música. Há, na música de Glass, um perigoso jogo que nos aliena da temporalidade e nos concentra no puro fluir do som, como se esse fluir não fosse um fluxo temporal. Aqui ficamos perplexos: Satyagraha é uma anunciação da não-temporalidade e da anacronia, ou apenas a máscara ilusória e alienante do tempo que passa?

A liberdade de expressão

Contrariamente ao que dizem alguns apoiantes mais exaltados do actual governo, existe de facto uma diminuição das liberdades públicas e dos direitos de expressão. Seja qual for o desenlace do caso Charrua, o exemplo está dado. As pessoas, fundamentalmente na área da função pública, começam a ter medo e já interiorizaram que podem vir a ter aborrecimentos pelo que dizem, se aquilo que lhes sai da boca não tem a tonalidade devida. Tudo isto é intensificado pelo comportamento dos políticos (Sócrates, Lurdes Rodrigues e Jorge Pedreira) que fingem que o caso é técnico-administrativo.

Dentro das escolas, os professores começam a calar-se e a ter medo. Porquê? Porque sabem muitas coisas e não sabem muitas outras. Explico-me. Sabem que vão ser avaliados, sabem que essa avaliação vai determinar quem é promovido e quem não é, e a coisa mexe com a vidinha e os dinheiros para tal coisa. Sabem também que, por muito que se diga, a avaliação não terá muito a ver com a sua qualidade de professores, mas com factores que eles, enquanto professores, não dominam. E o que não sabem? Não sabem se amanhã as escolas e as suas vidas ficam nas mãos das autarquias. Já se imaginou o regabofe? Não sabem se amanhã os directores das escolas vão ser de nomeação política. Este caso, que aparenta ser fortuito, não é. É o símbolo do estado da arte. A escola pública portuguesa tornou-se um lugar fantasmagórico, onde o medo corrói a liberdade de ensinar (veja-se o novo ECD e como o eduquês – a ideologia educativa que gangrena o ensino em Portugal – está lá posto como dever de todos os professores).

A coisa não se vê, mas está instalada e já se move com uma impunidade total. Qual a justificação para tudo isto? Melhorar o ensino e promover os melhores professores. Basta ver as condições para acesso ao 1.º concurso de professor titular para perceber que nada disso está em causa.

O muro das sombras


25/05/07

Carlos Drummond de Andrade - Sonetilho do Falso Fernando Pessoa

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.

In Claro Enigma, 1951.

Em louvor da abulia

Em Syllogismes de l’Amertume, Cioran, num dos seus aforismos, diz: “Os abúlicos, porque deixam as ideias sem as alterar, deveriam ser os únicos a ter acesso a elas. Quando os atarefados se apropriam delas, a doce confusão quotidiana organiza-se como tragédia.”

O mundo moderno, fundamentalmente o mundo pós-Marx, tornou-se o imenso palco de uma tragédia desmesurada. Por trás dessa tragédia está a força do pensamento. Aqui o termo força deve ser compreendido no sentido de violência. Pensar é o exercício de uma violência, como o notou Heidegger, de uma violência muito específica: reduzir o mundo real e concreto na sua multiplicidade de formas ao mundo asséptico e organizado das relações entre conceitos. Um conceito não é uma coisa, apenas uma representação. Que haverá de mais violento do que esta redução das coisas a puras representações mentais?

Este supremo exercício da violência é subtil, o mais das vezes só alguns – a quem dão o equívoco nome de filósofos – dão por ele. Imaginemos que estamos perante um terramoto. A terra torce e abana, mas talvez a vida ainda possa continuar. A tragédia vem depois, com as réplicas e o possível maremoto. Quando os homens querem levar à prática os seus conceitos (esses terramotos originários) a tragédia começa, pois a realidade está muito para além desses conceitos.

Porque falei em Marx? Por causa das suas 11 teses ad Feuerbach. Não passam de um repositório de apelos ao crime. Não me estou apenas a referir à célebre 11.ª tese, “Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar.” Observe-se a 2.ª tese, “É na prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a terrenalidade do seu pensamento.” Está aqui tudo: a violência, a tragédia, a coacção infinita sobre a vida e o homem. Marx tinha uma fixação na filosofia de Hegel. Mas esta, um poderoso exercício intelectual, uma redução do existente ao lógico, não tinha repercussões práticas. Na sua juventude, Marx julgou dever realizar a filosofia, fazer com que a realidade se adequasse a ela. A tragédia e a decepção que foi a experiência comunista começou aqui. A doce confusão, la douce pagaille, no dizer de Cioran, tornou-se no mundo planificado e sobrevigiado até descambar no goulag. Realizar a filosofia só pode levar à maior das tragédias.

Mas se falei de Marx, não foi por causa do marxismo, mas de uma nova forma de violência conceptual que se abate sobre o mundo. A vida quotidiana, aquele onde os homens vivem la douce pagaille, é cada vez mais colonizada pelo pensamento, pelos conceitos, pelos esquemas abstractos. As sociedades pós-modernas ou tardo-capitalistas, na linguagem de Habermas, foram colonizadas por esta infinita necessidade de controlo da vida prática pelos conceitos teóricos. As ciências sociais e humanas, com destaque para a economia, a sociologia e as chamadas «ciências da educação», constituem-se como novas formas de opressão do quotidiano dos homens. Não pelo seu aspecto científico enquanto tal, mas pela obsessão daqueles que as utilizam no mundo quotidiano para vergar o real aos conceitos e às prescrições derivadas desses campos teóricos. Uma violência sem fim cai sobre os cidadãos, sob a forma do discurso mole da avaliação, da organização e da eficiência. Onde deveria prontificar a fluidez vital, os contactos informais, a responsabilidade e a liberdade individuais, ganha preponderância o colectivo - não se confunda com o comunitário -, os mecanismos abstractos, a coação inominável. As ciências sociais, económicas, educacionais e afins são o suporte do crime, o lugar de onde os bandoleiros disparam sobre os inocentes.

A razão emancipou-se do corpo, individual e social, onde estava ancorada, e num delírio sem fim está a tornar a vida dos homens numa tragédia. O inferno é o delírio da razão autónomo, do racionalismo sem razoabilidade. O mundo foi tomado pelos atarefados de Cioran, os quais, sem qualquer pudor, estão apostados em transformar cada canto da vida num indizível gulag. O pior é que esses atarefados, sempre dispostos a manejar umas ideias e uns conceitos e a pô-los em prática, vivem ao nosso lado, conhecemo-los, falamos com eles. Mas não nos iludamos, eles não são nossos amigos. Emprenhados pelo delírio da razão técnica, exaltados pela glória que imaginam que os espera, destruirão quem quer que seja que se oponha ao seu desígnio de tornar o mundo racional, de violentarem a vida em nome do esquematismo abstracto que um dia, numa qualquer universidade – outro local cada vez mais suspeito – lhe sopraram.

Mas então a filosofia não será um crime? Não, os filósofos sabem que a filosofia não passa de um jogo, uma forma secundária de literatura. Os filósofos não se imaginam a transformar o mundo das ideias em realidade através da prática. No fundo, Marx nunca foi um filósofo. Os filósofos, apesar de encheram a boca com a razão, sabem muito bem quais os seus limites e não têm ilusões sobre a realização prática da filosofia. Não são abúlicos, mas levam uma vida inteira para se tornarem abúlicos. A filosofia é o exercício de domesticação das veleidades da vontade, isto é, da razão prática. É por isso que ela é um amor à sabedoria. Será sabedoria quando o filósofo for tomado pelo silêncio, pelo grande silêncio.

Kunst und Leben


24/05/07

Carlos Drummond de Andrade - No País dos Andrades

No país dos Andrades, onde o chão
é forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,
indago um objeto desaparecido há trinta anos,
que não sei se furtaram, mas só acho formigas.

No país dos Andrades, lá onde não há cartazes
e as ordens são peremptórias, sem embargo tácitas,
já não distingo porteiras, divisas, certas rudes pastagens
plantadas no ano zero e transmitidas no sangue.

No país dos Andrades, somem agora os sinais
que fixavam a fazenda, a guerra e o mercado,
bem como outros distritos; solidão das vertentes.
Eis que me vejo tonto, agudo e suspeitoso.

Será outro país? O governo o pilhou? O tempo o corrompeu?
No país dos Andrades, secreto latifúndio,
a tudo pergunto e invoco; mas o escuro soprou; e ninguém me acordou

Adeus, vermelho
(viajarei) cobertor de meu pai.

In A Rosa do Povo, 1945.

[Dedicatória especial a todos os Andrades de cá]

Ser anacrónico

Houve um tempo em que gostaria de estar à frente do tempo, descobrir o inédito onde poucos o tinham visto. Amava a vanguarda, esse símbolo moderno do provir, e as suas rupturas, como se isso fosse o verdadeiro sentido da vida. Como, hoje em dia, essas levianas pretensões me parecem nefastas, sintomas de uma moléstia pouco digna de consideração.

Mesmo uma educação tradicional centra a criança na voragem do futuro. É preciso ser absolutamente indigente ou incomensuravelmente rico para que o amor pelo passado não seja apenas um culto reactivo, uma experiência do ressentimento, revolta contra a vida.

Ser anacrónico é a esperança dos que não cultuam o futuro nem o passado. Pertencer a todos os tempos e a nenhum. Instalar-se na Grécia e de seguida na Renascença. Passear-se por Roma, para logo caminhar em Konigsberg e, boquiaberto, ver o professor Kant na pontualidade dos seus passeios. Em todos os tempos ser estrangeiro e estar neste tempo como se a ele não pertencesse.

Quando falam em utopias os intestinos revolvem-se-me. Recusar o espaço é o pecado maior, é recusar o corpo, os corpos que amámos, os lugares que nos acolheram. O tempo, porém, é um déspota implacável que a cada instante nos pontapeia, como se exibisse uma ordem de expulsão nunca completamente cumprida. O tempo expulsa-nos do espaço, rouba-nos os corpos amados, descorporaliza-nos. O tempo é o verdadeiro significado da utopia.

Em vez da utopia a ucronia. Melhor, a anacronia. Ser anacrónico e nada mais do que anacrónico. Quanto tempo demorará a viagem para o não-tempo?

Da natueza do poder

23/05/07

Carlos Drummond de Andrade - Toada do Amor

E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.

Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.

In Alguma Poesia, 1930.

Música às quartas: 1 - Amália Rodrigues

Todas as semanas, à 4.ª feira, uma proposta musical. De fora fica a música erudita.

Para começar, Amália Rodrigues. Há uma edição da EMI que junta “O disco do Busto” com um disco para “estrangeiros” “For Your Delight” e “As Óperas”.

O “Busto” é uma obra notável, quase todo musicado por Alain Oulman, a excepção é “Povo que lavas no rio” e “Estranha forma de vida”, músicas de Joaquim Campos e de Alfredo Marceneiro, respectivamente. Representa um corte com a tradição do fado popular e a entrada de poetas eruditos dentro da canção de Lisboa. Quatro de nove das letras são de David Mourão-Ferreira e uma de Pedro Homem de Mello. Há ainda textos de Luís de Macedo e um de Amália Rodrigues, aliás excelente. Nenhuma das fadistas actuais mais interessantes seria possível sem este disco.

“For Your Delight” é um disco para estrangeiros e nunca tinha sido editado em Portugal. É um disco que, segundo o booklet, foi pensado em paralelo com o Busto. A presença de Alain Oulman é, porém, menor, bem como a de David Mourão-Ferreira. A maioria dos poemas é de António de Sousa Freitas. Numa das faixas extras é cantado um poema de Camões.

“As Óperas” são ensaios de Amália com Alain Oulman ao piano. O nome tem um carácter depreciativo e era a expressão de um certo ressentimento por parte dos guitarristas relativamente ao papel que o piano começava a desempenhar no mundo do Fado. O CD é completado com uma entrevista feita por Henrique Mendes a Amália, Alain e David Mourão-Ferreira, em 1962, ano de saída do “Busto”.

O booklet é um acompanhante essencial e esclarecedor. A edição é da EMI, de 2002.

Para além de tudo isto, há a voz sublime de Amália Rodrigues.

Segredos

22/05/07

Cardílio XXIV

Nestas pedras tão rasas, o meu corpo
A tua carne deseja e, na brancura
De teus dedos, o rosto se suspende
Do voo mudo dos séculos. Efémero

Tijolo sob as ancas te sustenta,
Te rouba à gravidade e te suspende,
Na passagem de minhas mãos em alva
Face já pelo Outono cariada.

Na cicatriz dos gestos, na passagem
Oculta dessas mãos, abre-se o mundo
À névoa branca e fétida das pétalas

Em decomposição. Caminharemos
Pelas ruínas dos dias e abraçados
Deixaremos os campos, rios e as águas.

Cardílio

Com o texto de hoje concluiu-se a publicação sobre, ou a partir de, Cardílio, uma meditação sobre tempo e a sua passagem.
A rubrica «poesia-em-mim» vai de férias, mas a poesia, a grande poesia, essa virá, sorrateiramente e dia a dia, ocupar um pequeno espaço do blogue. Pode até acontecer que surjam algumas traduções pessoais de grandes poetas de línguas que me sejam acessíveis, quem sabe...

Novas oportunidades, novos oportunismos

Do excelente artigo de Santana Castilho, no Público de hoje, alguns excertos sem comentários, a não ser o seguinte: palavras para quê, é um artista português.

Impressionam os números da adesão ao programa governamental Novas Oportunidades: mais de 250 mil querem certificar-se com o ensino básico e cerca de 75 mil com o secundário. E mais impressiona se recordarmos que, há escassos meses, o tema foi destaque repetido na imprensa, após inquérito de âmbito europeu, por sermos os que menor disponibilidade manifestávamos para regressar à escola e menos valorizávamos a necessidade de formação ao longo da vida. Neste quadro, faz sentido perguntar: que terá acontecido, para tão grande mudança de atitude, em tão escasso tempo? Da multiplicidade de factores que integram uma possível resposta, destaca-se o oportunismo e a leviandade com que se procura popularizar e facilitar o que suporia trabalho acrescido e sacrifício pesado. O decoro profissional aconselha a não descrever como, em muitos centros, meia dúzia de meses, a tempo parcial, chegam para certificar o conhecimento que exige, no quadro tradicional, cinco anos de escolaridade, a tempo integral.

Se a iniciativa visa um enriquecimento pessoal, de âmbito mais geral, designadamente um grau escolar, então, não há milagres: a maturidade e o esforço poderão compactar cinco anos em dois ou três, mas não, certamente, em poucos meses; se o conhecimento existe e só não está certificado, um exame sério será instrumento adequado. Mas é sórdido substituí-lo por tretas ridículas, para engrossar estatísticas que a todos enganam. E convirá sempre clarificar que certificar o conhecimento que um adulto tem em determinado momento da vida, tornando-o equivalente a um grau académico, supõe regras básicas a que nunca nos poderemos eximir, sem risco de profunda desonestidade. Quando se outorga um diploma de estudos básicos ou secundários a alguém, estamos a dizer à sociedade que esse indivíduo domina um conjunto de conhecimentos considerados absolutamente obrigatórios e um conjunto de outros que os complementam e que poderão ser diferentes, consoante percursos de vida também diferentes.

Do gosto e do fastio

Não gosto de animais. É curioso, não gosto dos homens e não gosto dos animais. Quanto a Deus, começa a enfastiar-me. [Samuel Beckett, Molloy. Trad. Dóris Graça Dias. Relógio d’Água]

Les liaisons dangereuses


21/05/07

Cardílio - XXIII

Dois mil anos. Seremos de amanhã
As ruínas, traídos pelo voo
Do corvo, pelas árvores cansadas
Do jardim. Não haverá na forte seiva

Um fragmento do olhar, a voraz célula
No cerne a morte tem anunciada.
Cardílio, de ti irmão sempre serei
Na planície de pó, nas águas rasas

Que, no Inverno, do rio para o mar correm.
Será a aurora negra em cada dia
E na espuma das horas ouviremos

O lamento dos pássaros de Apolo,
Belo na agonia próxima, ditoso
Pois seremos nós tão cedo a cantá-lo.

O ensino inglês

O post de ontem, 20 de Maio, de patricialanca, no O Insurgente (http://www.oinsurgente.org/2007/05/20/mau-augurio-para-os-tories/), sobre a nova política dos conservadores britânicos para a educação, descreve, ainda que eivado de excessivos pressupostos, ou preconceitos, ideológicos – mas quem não os tem? –, a situação educativa inglesa, desde os meados do século XX. Sobre pressão da esquerda, as grammar schools (liceus) foram transformadas em comprehensive schools (uma espécie de escolas unificadas), coisa que copiámos em 1975. Os resultados são a decadência imparável do ensino inglês. Do nosso, nem vale a pena falar. Agora o chefe fos conservadores, David Cameron, quer acabar com as grammar school que restam, devido à autonomia municipal, em vez de as restaurar, como tem sido o programa conservador britânico.

Um dos resultados desta política foi a destruição das classes médias. Aliás, esta política é claramente a que existe hoje em Portugal. Num próximo post, discutir-se-á por que motivo prossegue a esquerda - incluindo aqui não apenas socialistas, mas também comunistas e outros marxistas, contaminando a própria direita - uma política educativa tão contrária aos interesses dos mais pobres e das classes sociais que essa esquerda deveria representar.

Fiapos

20/05/07

Cardílio - XXII

Desceram nesta terra como pássaros
Perdidos no horizonte. Não traziam
Asas, nem sabiam como cantar frias
Canções de amor e guerra. Desejavam

A luz entontecida das manhãs,
Os animais bravios a galopar,
O crime delicado do perfume
Das esquivas mulheres pela cama

Derrubadas. Do pó livre de Itália
Vieram, as cidades por fazer
Chamavam-nos no sono vivo e tépido

Da manhã. Embriagados pelo estio,
Caíram no restolho delicado
Da seara lilás por germinar.

A brotoeja volta a atacar

A história que envolve o professor de Inglês Fernando Charrua, destacado na DREN, a director-regional de educação do norte e o silêncio dos responsáveis políticos do governo começa a tornar-se muito desagradável (ver o post de Vítor Dias o tempo das cerejas*). Mais uma vez se fica com a sensação de que existe uma espécie de incompatibilidade genética entre a actual geração de dirigentes socialistas e a liberdade. Pulido Valente, num artigo devastador, mostrava as diferenças, relativamente à questão da liberdade, entre ter por Presidente da República pessoas como Soares e Sampaio ou pessoas como Cavaco. Aqueles, perante este caso, não se teriam calado. Não sei se Cavaco falou ou não com o primeiro-ministro sobre o caso. A única coisa que se espera é que o Presidente da República seja um defensor das liberdades públicas. Foi para isso que foi eleito. Seja como for a brotoeja cresce…

Política Francesa – 1

No suplemento P2 do Público, de hoje, há uma entrevista de Teresa de Sousa (TS) ao sociólogo francês Michel Wieviorka (MW) sobre a actual situação política em França. Toda a entrevista merece leitura e reflexão. Deixo um excerto:

TS – E há outro problema: o lugar em que esses problemas podem ser resolvidos, quando o Estado-nação está sujeito aos ventos fortes da globalização.

MW – Aqui também assistimos a um regresso do político. O discurso dominante começou por ser: afinal o Estado-nação já não pode fazer nada face às forças gigantes do capital.

Hoje, isso também começa a mudar. O regresso do discurso sobre a identidade nacional é uma resposta a isso, que creio que é diferente do nacionalismo da Frente Nacional. Os nacionalista dizem: fechamos fronteiras, não queremos estrangeiros, separamos os problemas internos dos externos. O discurso de Sarkozy é diferente, embora eu o diga ainda com alguma prudência. O que ele diz é que nos devemos apoiar na identidade nacional para nos projectarmos no mundo com mais confiança.

O que é novo e marca o regresso do político é que o quadro do Estado-nação não morreu e que podemos fazer com ele um certo número de coisas, mesmo que os desafios que vêm do exterior sejam enorme. A questão passou a ser: como articular, em vez de opor, a acção política a diferentes níveis: local, nacional, regional, no sentido europeu, e mundial. É por isso que a Europa é um tema tão importante.

Política francesa – 2

Também hoje, no suplemento P2 do Público, há um artigo de análise de política internacional sobre o fenómeno Sarkozy. O autor é Jorge Almeida Fernandes, um dos mais informados e competentes analistas internacionais da nossa imprensa. Mostra uma coisa que já tinha emergido durante a campanha: Sarkozy é muito diferente daquilo que os seus adversários políticos quiseram fazer parecer e que, em Portugal, foi repetido a torto e a direito. A questão não está sequer em Sarkozy ter convidado Rachida Dati, imigrante magrebina de 2.ª geração, para ministra da Justiça nem, tão pouco, em ter escolhido um homem de esquerda, Bernard Kouchner, para os Negócios Estrangeiros.

O importante é a conciliação do atlantismo – não me parece possível conceber a defesa da Europa fora desse atlantismo – e o reconhecimento da necessidade de não destruir “welfare state”. Esta é a verdadeira tradição europeia, a qual parece ter, neste momento, apenas a direita a defendê-la. Veja-se não apenas Sarkozy, mas também a senhora Merkel, na Alemanha. Quem quiser ver em Sarkozy um ultraliberal e um discípulo dos «neocons» americanos vai ficar desiludido. Quem o quiser compreender como um impenitente racista ou um homem perto das posições de Le Pen, também não conseguirá explicar as suas primeiras escolhas do pessoal governamental. O que Sarkozy fez, e a esquerda francesa não quis fazer, foi enfrentar os problemas que a imigração coloca, fundamentalmente a imigração de origem cultural diferente da dos franceses. O tempo dirá se Sarkozy conseguirá salvaguardar a identidade francesa e aquilo que ela representa, fundamentalmente na área dos direitos do Homem, neles incluindo os direitos sociais, e da cultura política democrática. Veremos se com Sarkozy, aliás como com Merkel, o Estado-nação recupera do estado comatoso a que chegou fruto de políticas excessivamente liberais, nomeadamente ao nível social.

Alguns sóis


16/05/07

Cardílio - XXI

Por essa lei, Cardílio, um mundo vinha
Sobre a paisagem, frutos maturavam
Na lenta pulsação das verdes árvores,
Que em Agosto sorriam pela canícula.

Regias os dias, as noites, com imóvel
Mão. Uma ordem ao mundo vinha, sôfrega,
Inclemente, dorida e pura como
Uma canção no estio silenciada.

Os carros foram, longe é a sua casa,
E ninguém quer as árvores plantadas
Nos teus jardins. Restou-te o parco nome,

Tesselas de mosaico, dizem, ânforas
Perdidas, vidros, mármores e um deus
Vivo na nitidez da branca estátua.

Versículos bíblicos - 1

“Também não tomarás presente: porque o presente cega os que o vêem, e perverte os negócios dos justos” (Êxodo, 23, 8). Eis um conselho para todos os tempos e não apenas uma ordem de Deus para Israel, o seu povo. No centro da palavra divina, não está a corrupção. Ela é apenas periférica. A ideia central é outra: o presente cega os que o vêem. Mas o que significará tal cegueira? Há por detrás da construção bíblica toda uma metafórica da luz. O presente, no excesso da sua luz, como o Sol, acaba por cegar. Ora a cegueira não é a dos olhos, mas a da luz da razão. Esta inclina-se para aquilo que brilha e, por esse excesso de luz, a dissolve, como a luz de uma lâmpada é dissolvida pela luz do dia. A dissolução da luz da razão que o presente – e aqui presente é sempre algo que se torna presente – traz consigo implica a entrada na esfera de uma economia do dom; a um presente recebido corresponde um presente a dar. É nesta troca, onde a razão se inclina e dissolve, que se inscreve a perversão da justiça.

O que o texto bíblico nos mostra é que a perversão dos costumes nasce de uma perversão da razão. Este é o princípio do mal. Mas como é esta concebida na passagem citada? Como frágil. A metáfora da cegueira, o negativo da metáfora da luz, mostra a razão na sua fragilidade e, por isso, susceptível de corrupção. Contra isso, apenas o imperativo divino “também não tomarás presente”. Este imperativo divino é, porém, toda a lei, a de Deus e dos homens.

Numa curta frase encontramos quase toda a filosofia moral kantiana. Mas só a vemos, porque Kant a trouxe à luz e soube ver a estrutura racional sob as imagens religiosas.

Versículos bíblicos - 2

(Delacroix, Liberdade guiando o Povo)

“Seis dias farás teus negócios, mas ao sétimo dia descansarás: para que descanse teu boi e teu asno; e o filho da tua serva, e o estrangeiro tome refrigério” (Exôdo, 23, 12). Este versículo 12 do capítulo 23 do segundo livro do pentateuco é uma curiosa e arcaica formulação de respeito pela natureza, animal e humana. A curiosidade reside na justificação dada para o descanso do sétimo dia. A necessidade de toda a natureza repousar. Se olharmos atentamente para a construção do discurso bíblico, descobrimos uma resposta para a seguinte pergunta: para que serve a toda aquela narrativa sobre a criação do mundo em seis dias e o descanso de Deus no sétimo? Serve, entre outras coisas, para legitimar o descanso dos homens. Se Deus descansou ao sétimo dia, então ao homem compete fazer o mesmo.

Isto mostra que o problema do tempo de trabalho deveria ser já, naqueles tempos, objecto de apaixonadas e discordantes posições. Haveria, certamente, os “economistas” de serviço a recomendar que não se desperdiçasse tempo fora do labor. O Êxodo mostra-se, assim, um texto emancipatório e libertador, contrariamente ao que muitos gostam, por preguiça ou preconceito, de pensar. Advoga, contrariamente ao espírito burguês, um direito, de carácter divino, a nada fazer. Aliás, este livro bíblico começa com uma das primeiras grandes gestas emancipatórias da humanidade, a libertação do povo de Deus da escravatura no Egipto. No versículo 9 deste mesmo capítulo, está escrito: “Também não oprimirás o estrangeiro; pois vós conheceis a alma do estrangeiro, que fostes estrangeiro na terra do Egipto.” Encontramos a mesma ideia no versículo 21 do capítulo 22.

A doutrina social da Igreja Católica não é um acrescento estranho aos textos do antigo e do novo testamento, é, pelo contrário, a sua emanação, uma combinação de emancipação das opressões terrestres e uma libertação das ilusões do espírito.
Nota final: observe-se bem o quadro de Delacroix e leia-se a descrição da fuga do povo de Israel do Egipto, quando as águas se abriram.

Língua Portuguesa

Há tempos, João Bénard da Costa dizia, na sua crónica semanal no “Público”, que João Ferreira Annes d’Almeida é um dos grandes mestres da língua portuguesa. Quem será este João d’Almeida? É o tradutor, julgo que o primeiro, da Bíblia para Português. Converteu-se ao protestantismo e toda a sua vida foi dedicada à tradução das Escrituras. Viveu no século XVII. Mas não é do tradutor que quero falar, mas da qualidade literária da sua tradução. Comparemos duas traduções dos mesmos versículos:

Tradução dos Missionários Capuchinhos: “Não fareis mal algum à viúva e ao órfão. Se lhes fizerdes algum mal, clamarão por Mim e Eu escutá-los-ei” (Êxodo, 22, 22-23)

Tradução de João Ferreira d’Almeida: “A nenhuma viúva nem órfão afligireis. Que se tu afligindo os afligirdes, e eles clamando clamarem a mim, eu, ouvindo ouvirei seu clamor” (Êxodo, 22, 22-23)

Entre o português prosaico dos padres capuchinhos e o português do século XVII de Ferreira d’Almeida há uma distância abissal. No texto deste, tudo se torna dinâmico, como se a construção conseguisse imitar a própria vida, insuflar-lhe espírito e cativar a imaginação do leitor. A utilização do gerúndio, que exprime o decurso de uma acção, é uma estratégia que realça essa mesma acção. Com Ferreira d’Almeida nós “vemos” a acção e o seu resultado – «afligindo os afligirdes»; «clamando clamarem»; «ouvindo ouvirei» – que, nestes exemplos, se exprime sempre no futuro, nos primeiros dois casos, do conjuntivo, no terceiro, no indicativo.

A construção dos padres capuchinhos corresponde ao português corrente e regular. A prosa de Ferreira d’Almeida rouba esse português ao hábito e, por estratégia retórica, descativa a linguagem da corrupção quotidiana. Esta Bíblia está a ser editada pelo Círculo de Leitores e pela Assírio e Alvim, sob a direcção do poeta José Tolentino Mendonça, e quem ama a língua portuguesa tem nela um objecto de dedicado culto.

Natureza humana

15/05/07

Cardílio - XX

Em Agosto descemos por atalhos.
Castanheiros na estrada debruçados,
Sombras de cinza e luz em tardias flores
Tingidas pelo aroma das colinas.

Na leveza dos dias que, amargos, correm,
Nas horas cintilantes em que a chuva
Sobre a terra desaba, sopram ventos
Em combustão, violetas arrancadas

À tranquila alegria do negro prado.
Era o tempo dos mortos, das vielas
Incendiadas, das hortas perseguidas

Pelo orvalho azulado da manhã.
Pela tua mão, o jardim de areia cresceu
Entre a melancolia da erva-canária.

Onde vai rebentar?

Helena Roseta vai recorrer da data das eleições para a Câmara de Lisboa. Tem toda a razão. Parece haver aqui uma tentativa para impedir coligações e listas de independentes. Tirando o CDS, os partidos «grandes» estão calados. A atitude é muito interessante. Foram os partidos que criaram o imbróglio das listas de independentes, mas agora parece não lhes convir e tentam impedir o seu aparecimento através de uma manobra táctica.

Nunca fui favorável às listas de independentes para as câmaras. São, não todas por certo, mais frágeis do que os partidos e com menos capacidade de resistência aos poderes que se movem por aí… Mas criaram essa possibilidade, agora têm o dever de jogar limpo.

Pode ser que me engane, mas isto vai rebentar na mão de António Costa. Roseta teria sido uma boa candidata do PS e talvez conseguisse uma coligação de esquerda para pôr a Câmara de Lisboa na ordem, depois do regabofe social-democrata.

De Rerum Natura: A ESCOLA TEM ALGO DE ANTI-NATURAL

O blogue "De Rerum Natura" traz uma boa entrevista com o professor João Queiró, do departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e publicada no Diário de Coimbra. Para os que acreditam na bondade da política ministerial, para os burocratas que estão a tomar conta das escolas em Portugal, para os adeptos da seita das «ciências» da educação [uma pseudo-ciência a meio-caminho entre a psicanálise de grupo e a astrologia], mais uma peça, de alguém vindo da área científica (duma ciência efectivamente ciência), que chama a atenção para essa coisa inconcebível para os donos da educação em Portugal: a escola tem algo de anti-natural.

De Rerum Natura: A ESCOLA TEM ALGO DE ANTI-NATURAL

Barreirense

Há injustiças que se cometem sem querer. Ontem, ao falar dos “meus” clubes da primeira-divisão, esqueci os do Barreiro. Para dizer a verdade, o esquecimento só é grave para o Barreirense, o mais popular clube do Barreiro. É verdade que a CUF, a determinada altura, teve um maior impacto no futebol nacional, mas quem gostava de um clube com nome de empresa? Depois, como benfiquista, como esquecer que foi do Barreirense que vieram alguns dos grandes jogadores do clube da Luz? Nessas transferências, que começaram por volta de 1920, salientaria cinco excepcionais jogadores: o guarda-redes Bento, os extremos José Augusto (à direita), Chalana (à esquerda), o médio Carlos Manuel, que depois jogou no Sporting, e o defesa, já não me recordo se direito se esquerdo, Adolfo. No outro lado da defesa, jogava o Malta da Silva. Como é que sei tudo isto? Por acaso, fui ter a um blogue barreirense. Num “post” está o plantel do Barreirense para as épocas 64/65, 65/66 e 66/67. Há lá nomes de que me recordo perfeitamente. Por exemplo, o guarda-redes Bráulio, os defesas Faneca, Bandeira, Lança, Adolfo (o que foi para o Benfica), Candeias, os médios Mira, Garrido, Nogueira, e os avançados Azumir (julgo que depois foi para o Porto), Ludovico, Mascarenhas (andou pelo Benfica e pelo Sporting) e Testas. Estão lá outros nomes, mas não tenho deles qualquer reminiscência, se calhar nunca me saíram nos cromos da bola. Dos nomes aqui referidos julgo que ouvi e vi, alguns, como jogadores do Desportivo de Torres Novas. Será possível?

Aqui fica o link: http://fcbfotos.blogs.sapo.pt/2006/05/

Subitamente, a luz...

14/05/07

Cardílio - XIX

A sentença feroz do deus, Cardílio,
Em ti se abateu. És caduca árvore
Que as folhas não retém, ardósia frágil
Que ao vento se derrama. Nem a chama

Das horas te ilumina, nem as ervas
Do seco chão se curvam na voragem
De teus pés, tão despidos na planície,
Que para última casa então te deram.

Tribunal inflexível te julgou
No fulgor da manhã. Rude destino
Os deuses declinaram em teu rosto:

Nada escutas e nada sabes, pálido
Guerreiro de perdida e árida guerra.
Ao longe ecoa a canção vazia da terra.

Divórcio unilateral

O Bloco de Esquerda apresentou uma proposta de lei que permitiria o divórcio apenas por decisão de um cônjuge. A ideia, aliás interessante, é desvincular o divórcio da culpa. Hoje se alguém se quer divorciar, e não houver acordo para o triste desenlace, o que pretende a separação tem de culpar o outro de alguma coisa que permita um divórcio litigioso.

As reacções estão a ser interessantes. O PCP, na imprensa de hoje, ainda não sabia bem qual a posição que iria tomar. O PS é contra. Segundo o Jornal de Notícias, Osvaldo de Castro teria afirmado “É complicado prever, juridicamente, o direito de um cônjuge a, de forma abrupta, dizer que vai embora porque se desapaixonou”. O PSD, através de António Montalvão Machado, afirma que “o casamento não é um contrato qualquer. Pode ser terminado por via litigiosa, mas não por via unilateral” e acrescentou que a proposta do BE “permite uma enorme injustiça. Que defesa, que protecção merece o outro cônjuge?”

A questão, porém, é pertinente. Como pode uma pessoa desligar-se de outra de que a única coisa que tem a dizer é que, lamentavelmente, deixou de gostar dela e que, apesar dela ser excelente, quer ir tratar da vidinha por outro lado? Terá de inventar uma tortura psicológica? Terá de instruir o advogado dizendo que só de ver o parceiro sente uma agonia e corre o risco de ficar traumatizado? Isto faz mais sentido do que a proposta do BE?

É um facto que a introdução da culpa num processo de divórcio é bastante mais interessante. Dá tema para telenovela local, prolonga o conflito, por vezes, ad nauseam, contribui para o aumento das contas bancárias dos advogados, mas, tirando estas nobres motivações, serve para quê? É verdade que uma lei que permitisse um divórcio unilateral teria de ser bem pensada para não o tornar numa mera arma de arremesso durante um arrufo do casal.

Mas há uma coisa que é clara: para haver casamento, são precisos dois. Para acabar o casamento basta um não querer. Montalvão Machado fala em proteger o outro cônjuge. Mas de quê? E como? Obrigando o cônjuge "desamante" a reencher-se de amor pelo cônjuge "desamado"?

Vitória de Guimarães e Leixões...

A subida à primeira divisão – já não é assim que se chama, mas estou irrevogavelmente fora de prazo de validade – do Vitória de Guimarães e do Leixões veio devolver à minha memória algum conteúdo. Quando comecei a coleccionar cromos da bola, andava aí na 1.ª classe (outra coisa que já morreu no linguajar oficial dos nossos gloriosos dias), o Vitória de Guimarães e o Leixões faziam parte da caderneta. Este retorno, embora não sendo eterno, dá algum conforto e a ilusão de que afinal o tempo se poderá suspender. Agora falta o Atlético. Para mim o futebol nacional está incompleto sem o clube da Tapadinha. Se um dia o Lusitano de Évora voltasse também, então a coisa seria em cheio.

Já que falo em cromos da bola, espero que o Zé Ricardo não se ofenda por tornar público o facto de ele me ter dado uma indicação tão pouco de acordo com o nosso perfil de professores de filosofia, ainda por cima tão conservadores – haverá quem corrija para reaccionários, seja. Eis um blogue extraordinário sobre cromos da bola: http://www.cromodoscromos.pt.vu/. Vou lá todos os dias para ver qual foi o cromo colado.

Mundos

13/05/07

Cardílio - XVIII

O olhar perdido nestas ruínas busca,
Em desespero animal, o que a vida
Deixou, no seu cansado e fugaz passar.
A efémera violeta, a rosa branca,

A erva rala, o verão já devorado.
No fulgor das colinas, na oliveira
Por musgo maculada, crescem pálidas
Anémonas, sombrias ervas de Outono.

Onde está a viva chama, o fatigado
Olhar logo descai, procura a doce
E suave pena, a dor tanto lhe dói.

Aqui riram infâncias, vozes últimas,
Que ruíram fulminadas pelos pássaros
De fogo no alumínio azul da cal.

Aprender a calar-se e a escutar...

Estes [os admitidos ao noviciado na escola pitagórica] a princípio chamavam-se, no período em que deviam calar-se e escutar, acústicos [ou acusmáticos, i. é, aqueles que ouvem]. Mas, quando aprenderam as coisas mais difíceis entre todas, isto é, a calar-se e escutar, e começaram a adquirir erudição no silêncio, o que era chamado “echemuthia”, adquiriam então a faculdade de falar e fazer perguntas e escrever o que haviam sentido e exprimir o que pensavam. Em tal período chamavam-se matemáticos, derivando esse nome daquelas artes que começaram a aprender e meditar: pois os antigos gregos chamavam “mathémata” [ciências] à Geometria, à Gnomónica, à Música e às outras disciplinas mais elevadas. Depois, adornados com tais estudos de Ciência, começavam a considerar a obra do mundo e os princípios da natureza e, então, eram finalmente chamados “físicos”. [Tauro, citado por A. Géllio, Noites Áticas, I, 9]

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Estamos perante os ecos da primeira escola ocidental. Ainda antes do ensino dos sofistas, de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, foi a chamada escola pitagórica, envolvida na névoa do tempo, o primeiro grande modelo da escola ocidental e saíu dela o impulso que conduziu ao desenvolvimento do saber de todo o Ocidente.

Sempre me fascinou uma passagem de Jean Brun, na sua obra “Os Pré-Socráticos”, que diz “A primeira iniciação durava de dois a cinco anos e compreendia várias provas. O noviço era submetido à prova do silêncio, limitando-se a escutar as lições do mestre, sem pedir qualquer explicação. Provém daí o nome de acusmáticos atribuído aos principiantes. Durante esta primeira iniciação, os alunos não viam o mestre, do qual estavam separados por uma cortina. (…) Em seguida, os neófitos passavam à categoria de matemáticos e, libertos do silêncio, deviam ensinar. Vinham, por último, os físicos, que estudavam os fenómenos da natureza. [Jean Brun, Os Pré-Socráticos]

Há neste resto do que foi o ensino pitagórico uma sensatez inultrapassável. Quem não sabe deve aprender a escutar e só depois tem direito à palavra. A citação de Tauro refere mesmo que o mais difícil é aprender a calar-se e a escutar.

Foi esta «pedagogia» que durante 25 séculos conseguiu fazer do Ocidente a principal potência cultural e científica do planeta. Mas foi também esta pedagogia, de aprender a escutar antes de falar, que os modernos pedagogos, os «especialistas» em ciências da educação, os burocratas dos ministérios da educação e os políticos se entretiveram, nos séculos XX e XXI, a destruir.

Hoje, o panorama é substancialmente diferente. A criança/adolescente ignorantes são concebidos como tendo “conhecimento” válido e instigados a tomar a palavra por tudo e por nada. O resultado destes métodos activos é a pura cacofonia nas salas de aula. A humildade do aprendiz, que radica no dever de aprender, é substituída pela arrogância daquele que tem um saber a transmitir, o qual se funda no direito à palavra. Por que motivo deverão os alunos estudar, se a doutrina oficial da educação já os concebe como detentores de saber? Na primeira aula da sua vida, a criança já poderá ensinar o seu pobre mestre…

Aquilo que foi a tradição ocidental, aquilo que fez a força de uma cultura, foi destruído em meia dúzia de décadas e substituído por um vazio de saber e um palrar insignificante. É a isto que chamam escola moderna, aquela que substituiu o ensino magistral. Aprender a estar em silêncio? Aprender a escutar? De facto, é o mais difícil, mas as nossas crianças não precisam de o fazer. São todas, mal nascem, uns génios e dotadas da mais pura erudição.

Texturas e sombras

10/05/07

Cardílio - XVII

Seriam hábeis amantes os que nesta
Casa amaram? E no grito dessa noite,
Deixariam os homens a sua língua
Perder-se nos recantos fatigados,

Na relva crespa, esparsa das mulheres?
Que incêndios os fizeram tão felizes?
Oiço nesse horizonte gritos breves
E puros, oiço a morte, na sua azáfama,

Percutir na penosa e dura pedra
Da vida, oiço os sinos das aldeias
Por vir, depois de ti, pobre Cardílio.

De ti que só a ruína do amor salvou
Do eterno esquecimento. Canta, pois,
De Avita o sangue no Orco tenebroso.

Matemáticas e auto-conhecimento

Mimético, apesar dele, eis Molloy, visto sob deter­minada perspectiva. E durante o Inverno envolvia-me, por de­baixo do meu casaco, com faixas de papel de jornal, e só me de­sembaraçava delas no despertar da terra, o verdadeiro, em Abril. O suplemento literário do Times era excelente para este efeito, de uma solidez e não-porosidade a todos os níveis. Os peidos não o rasgavam. Que querem, o gás sai-me do cu por tudo e por nada, sou assim obrigado a fazer-lhe alusão volta não volta, apesar da repugnância que isso me inspira. Certo dia contei-os. Trezentos e quinze peidos em dezanove horas, o que dá uma média de mais de dezasseis peidos por hora. No fim de contas não é muito. Quatro peidos de quinze em quinze minutos. Não é nada. Nem chega a um peido a cada quatro minutos. Não é verosímil. Va­mos, vamos, não sou mais do que um pequeno peidorreiro, fiz mal em falar nisso. É extraordinário como as matemáticas nos ajudam a conhecer-nos. [Samuel Beckett, Molloy. Trad. Dóris Graça Dias. Relógio d’Água]

Ver em DVD – Pollock, de Ed Harris

A crítica portuguesa arrasou o filme, o qual não passaria de um conjunto de estereótipos e banalidades sobre o pintor americano Jackson Pollock (interpretado pelo próprio realizador, Ed Harris, bastante parecido fisicamente com o pintor). Seja como for, crítica e críticos à parte, o filme (estreado em 2001) vale a pena e mostra a vida de um dos grandes pintores do século XX, dando a ver, também, algum do movimento cultural que estava a transformar Nova Iorque no centro da cultura mundial. Cruzam-se no filme Pollock, De Kooning, Tony Smith, todos artistas, o crítico Clement Greenberg e Peggy Guggenheim, uma das primeiras protectoras de Pollock.

O filme cruza uma visão sobre a vida de Pollock – o álcool, o mau génio, as amantes e a sua mulher, a pintora Lee Krasner, interpretada por Márcia Gay Harden e que ganhou o Óscar para melhor actriz secundária – com a tentativa de captar o mistério que habita todo o acto criativo.

Disso resulta toda a estrutura do filme: a tensão entre vida e criação. Esta tensão é mostrada de várias perspectivas: quando a vida e a criação seguem paralelas, quando se cruzam, quando se anulam, quando se destroem e chega a morte, em desastre de automóvel, no ano de 1956.

O filme mostra também, talvez demasiado ficcionalizados, os momentos em que Jackson Pollock descobre a sua singularidade artística ao descobrir e reconfigurar a sua técnica de pintura. Vale a pena ver, embora seja suspeito, pois Pollock é um dos pintores de que mais gosto e este gostar enviesa o olhar. Ficam também algumas reproduções de obras suas (para ver mais, consultar o sítio “ciudad de la pintura”: http://pintura.aut.org/).

Alchemy

Bald Woman with Skeleton

Croaking Movement

Diálogo nebuloso


09/05/07

Cardílio - XVI

Lucernas, vidros, ânforas, pedaços
De vida aqui perdidos, esquecidos
Entre malvas bravias e ruas de mármore.
A vida os deixou pálidos, sonâmbulos,

Ébrios de tanta morte. Nesta casa
Habitaram mulheres, e ferozes
Dedos delas fizeram doce e terna
Habitação. Que nome seria o seu?

Procuro em calendários, na cerâmica
De mármore, na arguta suspensão
Do rosto, p’las veias loucas do marfim…

Na planície, sinistras mãos vazias
Erram entre o cascalho abandonado;
Cantam como só os loucos cantar sabem.

A quem não tem nada...

Quero dizer-vos uma coisa, quando as assistentes sociais vos oferecem seja o que for, que não vos faça ter um chilique, a título gracioso, o que para elas é uma obsessão, convém ceder, senão perseguir-vos-ão até ao fim do mundo, de vomitivo na mão. Os membros do Exército de Salvação não são melhores. Não, contra o gesto caritativo não existe resposta, segundo julgo saber. Inclina-se a cabeça, estendem-se as mãos trémulas e enredadas e diz-se obrigado, obrigado minha senhora, obrigado minha cara senhora. A quem não tem nada é proibido não amar a merda. [Samuel Beckett, Molloy. Trad. Dóris Graça Dias. Relógio d’Água]

Paisagem sob água

08/05/07

Cardílio - XV

Conto teus dedos um a um, pois são
Sílica, pedra roxa, várzeas calmas
Abertas sobre a foz, onde um rio puro,
De água clara, por mim em brados chama.

Vozes de barro, casas de minério
Vegetal, tudo aberto ao céu que cai,
Como se o vento cálice quisesse
Ser, para nele a ti te recolher.

Deixa vir os relâmpagos, a lua
Fria e mineral. Cantem a luz árida
Das estrelas no sonho descobertas!

Se te toquei no ventre e um incêndio
Alastrou, então deixa que esta mão
Como uma parra em teu seio breve caia.

Prós e Contras

Ontem vi apenas um pouco do programa. No entanto, o que vi foi interessante. Adriano Moreira, que se disse de direita e conservador, está à esquerda do actual governo de Sócrates. Vale sempre a pena ouvir o que este senador tem para dizer. Sobre os Estados Unidos observou: apesar de Bush, os EUA são os aliados da Europa. Esta é a questão fundamental. E se Bush é mau, é preciso que os europeus não se esqueçam dos seus líderes que geraram 2 (duas) guerras mundiais. Adriano Moreira é, ainda hoje, um dos pensadores da política mais interessantes que existem por cá. Pena é que, para lá dos protestos de respeito, seja já pouco ouvido.

Mário Soares mostrou aquilo que ele é, e que não esconde. Naquilo que vi, Soares é um pensador tendencialmente nulo. Mas é um político nato, todo intuição e percepção do que é essencial. Não tem o talento académico de Adriano Moreira, este não tem o brilho e a intuição política de Soares. O ex-Presidente percebe muito bem qual é a linha de equilíbrio fundamental para que as sociedades não se desmoronem.

Do que vi e ouvi, fiquei com uma impressão neutra de Rangel. Há conhecimento, mas não vi talento político nem académico. Uma imagem demasiado tecnocrática, ao serviço do discurso ideológico dominante. Miguel Portas é daqueles que, apesar de falar muito e de forma enfática, nada tem para dizer. Não tem conhecimento académico nem talento político, há apenas aquela qualidade que os alemães designam por Schwärmerei, e que Kant, com razão, abominava, isto é, entusiasmo. Mas aquela ideologia entusiasmada faz sentido aos 20 anos, depois começa a tornar-se deprimente. Aos 50 é um anacronismo. Não percebo o entusiamo pacóvio com que a comunicação se deslumbra com a família Portas. O único que deve valer a pena ouvir é aquele que nunca fala, o pai, o arquitecto Nuno Portas.

Protestos contra a eleição de Sarkozy

Pacheco Pereira, no seu blog Abrupto (http://www.abrupto.blogspot.com/) chama a atenção para a forma parcial como a comunicação está a tratar os protestos violentos contra a eleição de Sarkozy. Tem toda a razão. Se fosse a extrema-direita, haveria um alarido demoníaco. Como é a extrema-esquerda, a coisa parece aceitável. Mas não é. A violência é sempre violência, as vítimas pouco se importam se os agressores são de direita ou de esquerda.

No entanto, Pacheco Pereira é limitado na sua análise. Quando se trata de política, a imprensa nacional é mais benévola com as atitudes de protesto violentas praticadas à esquerda. Quando se trata de economia, o único modelo que esses mesmos órgãos de comunicação social aceitam é o veiculado por certa direita. Veja-se, por exemplo, que até posições conservadoras e democratas-cristãs, que veiculam a doutrina social da Igreja, já hoje quase não têm voz na imprensa. Em economia, só há, na imprensa, uma visão do mundo.

Não será a permissividade perante as atitudes anti-democráticas da extrema-esquerda uma espécie de má consciência pela imposição de uma visão única da vida social?