30/11/09

Impressões - LIII


Salvador Tuset, Anticoli (1913)

reclino a cabeça perante a dor
o tempo a traz no regaço
promessa de cal a arder
ou vento a ferir as paredes
que resguardam da luz
a infâmia e o cansaço

Aguaviva - Poetas andaluces (1975)


O sarilho europeu



A Europa está metida num belo sarilho. Veja-se aqui a reacção europeia ao resultado do referendo suíço sobre a construção de minaretes. A esquerda horrorizada e a direita dividida entre a concordância e a rejeição das opções dos suíços. Uns insistem que não se está a passar nada, outros aproveitam o medo para vender a sua mercadoria contaminada, os mais sensatos estão perplexos e tentam encontrar um caminho para um dos grandes problemas que desafia a humanidade europeia. Esse problema não é a questão da liberdade religiosa. A proibição da construção de minaretes é mais delicado do que isso. Esse problema nasce do medo perante a exibição crescente de uma militância político-religiosa, nasce do medo perante a diluição e a erosão dos valores ocidentais em relação a um islão militante.

Nota: foram censurados alguns comentários ao post anterior sobre o referendo suíço. Uma coisa é alertar para o perigo e a perplexidade que atravessa a Europa, outra é permitir comentários racistas ou a desvalorização da pessoa que pratica o islão. O islão, desde que respeite os direitos humanos e as liberdades civis, políticas e individuais, desde que não queira misturar religião e política, é muito bem vindo à Europa. Tem valores notáveis para partilhar com os não islâmicos. Todavia, a Europa não pode permitir certos projectos, mais ou menos radicais, que visam a sua destruição.

29/11/09

Impressões - LII


Camille Pissaro, Boulevard Montmartre: Night (1897)

desce a noite sobre a grande avenida
é um pássaro de seda
tão leve que as suas asas
esvoaçam se as sopram de perto

noite noite que teces o meu coração
deixa que te toque
para que o teu júbilo contamine
de negro as trevas da solidão

Stan Getz Quartet - Desafinado, Girl from Ipanema


Ratos



São tempos ricos em homicídios de mulheres, sete nos últimos dias. Hoje, mais um. Incluiu a morte de um Guarda Republicano. O que se está a passar é absolutamente intolerável. A lei dá demasiadas garantias aos candidatos a homicidas. O país tem um combate civilizacional a travar. Nenhum ser humano pertence a ninguém. A agressividade tem crescido entre os jovens de uma forma insuportável. A percentagem de namoradas agredidas por namorados frágeis e psicologiacamente aterrados com a liberdade feminina não pára de crescer. Nem o amor, nem a infidelidade, nem o desejo, nem o quer que seja são motivos para que alguém se julgue no direito de tocar em alguém, ou de se achar proprietário de alguém. Uma mulher não é uma coisa, é uma pessoa. Homens que batem e matam mulheres não são homens, são ratos.

O referendo aos minaretes



A Suíça aprovou hoje, por mais de 57 por cento, os apelos da extrema-direita a que seja proibida a construção de novos minaretes no país. Há muitas formas de tratar um assunto delicado e que atravessa, cortante, as nossas ilusões. A utilização, na frase do Público, da expressão "apelos da extrema-direita" tem uma função tranquilizadora perante o problema. Afinal essa coisa da proibição tem a ver com os pró-fascistas. Assim dormir-se-á mais descansado. Nada que nos turve a razão. O problema, porém, são os 57% de eleitores que decidiram participar na proibição da construção de minaretes. "O maior partido nacional, o Partido do Povo da Suíça, alega que os minaretes ou torres erguidos no topo dos templos muçulmanos são um símbolo do islão militante."

Nós podemos querer enterrar a cabeça na areia. Podemos fingir que a ideia do islão militante é um produto da imaginação dos sectores mais reaccionários da sociedade europeia. Podemos até acreditar piamente que as sociedades islâmicas e as comunidades migrantes são respeitadoras dos direitos humanos e que partilham connosco um sério entusiamo pela igualdade de todos perante a lei, fundamentalmente a igualdade entre homens e mulheres. Podemos criar as ilusões que quisermos. Mas a verdade é que, para além da capa de um conjunto de opiniões politicamente de acordo com a cartilha em vigor, a população dos países europeus onde existem grandes comunidades islâmicas, nascidas da imigração, está longe de se sentir tranquila.

Mas há uma coisa muito mais tenebrosa, coisa que toda a gente se recusa a ver. A estratégia que a Europa seguiu para lidar com as guerras religiosas provocadas pela separação das Igrejas cristãs, a separação entre Igreja e Estado, entre Religião e Política, está a ser fortemente desafiada pela presença de grandes comunidades islâmicas no Ocidente. Eis um problema. Até onde é que a separação da Religião e da Política é operativa, quando o que está em causa é o militantismo político-religioso. Educados no desencantamento do mundo e na compreensão da política de um ponto de vista burocrático, para falar à maneira do grande sociólogo alemão Max Weber, as lideranças europeias não sabem o que fazer quando o religioso e o simbólico retornam em força dentro do campo da política e da guerra.

28/11/09

Impressões - LI


Stanislas Lépine, Péniche sur la Seine (1870)

a rosa descai sobre as águas
barco baldio de onde
avisto as margens
e quando as pétalas caem
sobra ainda a noite
que me leva na viagem

Banda do Casaco - Natação Obrigatória



Nunca uma peça musical se adaptou tão perfeitamente ao Portugal de hoje como esta antiga canção da velha e gloriosa Banda do Casaco. De facto, não há cu que não dê traque.

Estrangulado?



Eis um bom motivo para uma pessoa, que até compreende e aceita os princípios da regionalização, ser claramente contra o cumprimento desse infeliz desígnio da nossa constituição. Não por causa do futebol, claro, coisa que tem uma credibilidade a roçar o zero. Que o Porto, ou o Benfica, ou o Sporting ganhem ou percam é irrelevante. Mas a regionalização que poderia ser um princípio de desenvolvimento local, não seria mais do que o prolongamento desse universo obscuro que são os municípios, ao que se adicionaria temperamentos, estilos, desígnios, discursos e práticas como os que imperam na Madeira e nos Açores, para além das ânsias de centralização que ocorreriam logos nessas maravilhosas sedes regionais. Portugal afundar-se-ia irremissivelmente. Pinto da Costa diz que Portugal está estrangulado. É verdade. Com a regionalização, porém, além da corda central, mais cinco cordas regionais apertariam o pescoço do infeliz condenado. Como poderia ele respirar?

Desporto e virtude


Não sei se aquela retórica, que ribombava no meu tempo ao anunciar o desporto como escola de virtudes, ainda está em vigor. Provavelmente, mas claramente fora do prazo de validade. A máfia das apostas, segundo a justiça alemã, conseguiu perverter os resultados de competições desportivas em 17 países. Um dia, as pessoas decentes proibirão os filhos de pronunciar a palavra desporto. Quantos filmes não foram feitos sobre a perversão das corridas de cavalos? Agora começamos a suspeitar que não há jogo, seja de que modalidade for, que não faça parte de uma enorme rede e que qualquer resultado é fruto não do mérito, mas do embuste? Mas quando se acha que tudo é mercadoria e que o desporto é uma indústria, o que se pode esperar que aconteça? Mas o pior é que a suspeita não fica por aqui. A suspeita cresce desmesurada até à pergunta ingénua sobre quanto na economia real não é já fruto da mão invisível das máfias.

A víbora no peito e a morte da liberdade



Depois de contar uma história desagradável sobre a estranha relação entre um banco privado e o jornal Sol, motivada por uma notícia pouco favorável ao governo, Rui Ramos, na crónica de hoje no Correio da Manhã, argumenta que o problema, o da punição de quem não baixa  a cabeça perante o poder, não é só deste nem só com este governo. Conclui o artigo dizendo: «Há trinta anos que andamos a fingir que pode haver direito e pluralismo onde quem fala corre o risco de ser castigado e onde para fazer negócios é preciso pôr dinheiro em envelopes. A democracia portuguesa vive com uma víbora sobre o peito. Só não nos morde se estivermos muito quietinhos e formos bem comportados. É assim que queremos viver, quietinhos e bem comportados?»

Toda a sociedade portuguesa está, há muito, absolutamente domesticada. Alguns redutos de liberdade de expressão e de crítica existem ainda nas profissões liberais, mas poucos, e nas universidades, cada vez menos. Até ao último governo de Sócrates, os professores do ensino não superior representavam outro reduto onde a liberdade de expressão e de crítica era possível. Uma liberdade que, por essa província fora, era transferida para a esfera pública e política dos municípios, onde muitos professores tinham voz activa, tanto na vida política como na imprensa local. Mas o efeito conjugado do Estatuto da Carreira Docente, da Avaliação de Professores e da lei sobre Gestão Escolar destruiu esse reduto. Toda a gente percebe que o melhor é estar caladinho, pois há que evitar "chatices". Como nos tempos do dr. Salazar ou do prof. Caetano.

Se o debate educativo dentro das escolas era já pobre, tornou-se inexistente. As escolas são, ao nível do debate de ideias, mausoléus entregues a curadores e regedores, dos quais se tem medo ou a quem se quer agradar de forma abjecta. A indigência intelectual cresce. Muitos dos dirigentes escolares, por certo, não gostam do papel e não se sentem bem nesta fotografia de família. Mas o papel foi-lhes entregue. Mais tarde ou mais cedo, eles ou os próximos a vir, em caso de necessidade lá farão exercício do arbítrio com que foram investidos, lá saberão encontrar os mecanismos maravilhosos para calar alguma voz mais crítica e descuidada, mecanismos que políticos inimigos da liberdade e do espírito crítico lhe puseram, sem qualquer sobressalto na consciência, nas mãos.

Os professores, para além das manifestações generalistas contra o ECD e a avaliação, não passam já de uma massa amorfa, há boas excepções, claro,  sem espírito crítico e, como todos os outros portugueses, amedrontados com as indisposições ou os fluxos hormonais das chefias e daqui  a uns tempos do régulo municipal. Quem está hoje, numa escola, disponível para chamar a atenção para o que possa haver de errado, do ponto de vista educativo, na orientação  de um director executivo? Quem, sendo professor, vai amanhã criticar um Presidente de Câmara? É de um professorado assim que, depois, os demagogos habituais e os psicólogos de serviço exigem que formem cidadãos críticos e reflexivos, e outras idiotices inomináveis do género. A liberdade fica para os aposentados, por enquanto. Mas isso significa apenas que a liberdade se tornou decrépita.

Os portugueses nunca amaram especialmente a liberdade. Agora, e eu estou a medir bem as palavras, os portugueses começam a ter medo de ser livres. Uma sociedade civil frágil. Governos locais e centrais demasiado fortes, governos que colonizam o aparelho de estado e das autarquias, governos que, em todos os lados e independentemente dos partidos a que pertençam, não têm a medida do respeito pelo pensar alheio. Portugal definha num pântano e na viscosidade que se apossou, mais uma vez, da sociedade portuguesa. Os melhores e os mais livres resta-lhes um caminho: a porta de saída. A liberdade morre em cada hora que passa. Morre por restrição subreptícia e por falta de exercício. A víbora ameça morder-nos no peito, é um facto. Mas à liberdade já a víbora envenenou há muito.

27/11/09

Impressões - L


John Singer Sargent, OliveTrees at Corfu

a terra exaltada sobre a tarde
uma ilha onde a dor te atravessa
e os anos que passam
escritos tronco a tronco
naquela sabedoria
que só as árvores trazem consigo

Arild Andersen Quartet - Anima (1978)


Condescendência



O Banco de Portugal (BdP) teve conhecimento da existência de concentração de risco na Sociedade Lusa de Negócios (SLN) durante o ano de 2000, falhas que na altura mandou corrigir sem verificar se os procedimentos tinham sido de facto alterados. O problema não é o Banco de Portugal. Esta atitude é apenas a expressão de um modo de ser, o modo de ser português. Por que carga de água haveria o Banco de Portugal ser diferente? Quantas vezes não se ouve dizer "não suporto perfeccionistas"? Ser exaustivo e tentar fazer tudo como deve ser feito e até ao fim não é, para os portugueses, uma virtude. Virtude é a condescendência. De condescendência em condescendência, o país em trinta anos chegou onde chegou.

A vida como a conhecemos



Vasco Pulido Valente (aqui), sobre a decisão próximo de Obama relativamente ao Afeganistão. O crescimento da irrelevância americana e o fim da vida como a conhecemos. Embora essa vida como a conhecemos esteja a acabar há muito, o que se passa no Afeganistão, para não falar no Iraque, Irão e Paquistão, não vai contribuir por certo para que a vida como a conhecemos continue. E quem achar que uma derrota e humilhação dos americanos é coisa boa, depressa irá saber o que custa essa vida desconhecida que nos espera. Muitas serão as saudades do império.

Jornal Torrejano, 27 de Novembro de 2009



On-line está a edição semanal do Jornal Torrejano.

A confiscação



Por vezes há, mesmo entre pessoas sempre prontas para gritar contra o cristianismo, uma estranha tolerância, para não dizer uma não dissimulada simpatia, com certas causas muçulmanas. Ainda ontem, por exemplo, ouvi a um especialista brasileiro em Michel Foucault a referência à simpatia com que o pensador francês olhava os jovens oposicionistas do Xá da Pérsia, tendo apenas posteriormente percebido o que se escondia por trás daquela militância. Esta notícia é das mais extraordinárias, entre as extraordinárias que o Irão sempre está disposto a proporcionar. Para além de outras tropelias bem mais graves, o regime de Teerão confiscou, à activista dos direitos humanos, Shirin Ebadi, a medalha e o diploma recebidos quando foi premiada com o Nobel da Paz em 2003. Os objectos foram retirados de um cofre pessoal num banco em Teerão há cerca de três semanas. É o que se chama descer ao pormenor.

26/11/09

Qualidades



Isabel Alçada quer sistema de avaliação de professores que premeie esforço e qualidade. Estas piedosas intenções também faziam parte da retórica da sua antecessora, a qual, como se viu, arquitectou um sistema completamente absurdo. O importante não está em dizer que se quer premiar a qualidade. Isso é uma trivialidade. O importante é como se define a qualidade. Também a antecessora premiava uma certa qualidade, só que não era aquela que permitia aos alunos aprender. Definir o que são professores de qualidade é o primeiro passo, para se descobrir se a intenção é boa, ou se não passa de mais uma aventura num túnel sem luz ao fundo.

23/11/09

Instintos e Instituições




Por causa disto, este blogue vai sofrer até sexta-feira uma assinalável diminuição de actividade. É a nossa condição animal. Consultar o programa aqui. "Instintos e Instituições - saberes e políticas da vida" é uma organização do “the Animal Condition” Research Group - Centro Interuniversitário de Historia das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT). [Nota - aqui o cartaz saiu desformatado, mas foi o que se conseguiu.]

22/11/09

Impressões - XLIX


Ignacio Díaz Olano, Pueblo de Urbina, Apunte (1915)

a casa onde me abres a mão
é uma névoa de cal
a promessa de uma rosa
a crescer para o verão

deixa a água cantar
ao som do sino da igreja
deixa as árvores florir
na luz onde te veja

Ana Moura - Leva-me aos Fados


21/11/09

Impressões - XLVIII


Lilla Cabot Perry, Mountain Village, Japan (1898-1901)

a que alturas subiu o coração
para que fosse montanha
ou um ramo de árvore
inclinando-se para o chão

em que sombras habitou
depois de ter perdido a luz
e de ser roubado
de tudo aquilo que amou

Mônica Salmaso - Beatriz


O arquivamento



O procurador-geral da República decidiu arquivar as escutas a José Sócrates, considerando não existirem elementos que provem a prática de ilícito criminal. O que Pinto Monteiro não conseguirá, todavia, arquivar é a queda contínua da imagem da Justiça aos olhos do cidadão comum.

A fuga estratégica de informação tornou-se uma prática sistemática, prática essa que os não iniciados nos divinos mistérios da justiça e da política portuguesas não conseguem perceber. Nunca se chega a compreender muito bem se essas fugas são formas extraordinárias de dar força aos processos judiciais, ou se estão inscritas no conflito político interpartidário. Seja uma esperteza judiciária ou um estratagema político, ou as duas coisas ao mesmo tempo, a fuga de informação tira toda a credibilidade à decisão judiciária que seja tomada. Por mais justa que seja a decisão de Pinto Monteiro, a vox populi nunca duvidará de que ele apenas foi fraco perante o poder político. A justiça sai de rastos, por justa que a decisão seja. Quando este tipo de coisas cai na rua, a plebe, instada pelos pregoeiros de serviço e sedenta de sangue, cai sobre a vítima. Se esta for um poderoso e arrogante, ou ex-arrogante, melhor, o circo está armado.

Mas este jogo não é uma ocupação frívola. Pelo contrário, é um jogo bem perigoso. As instituições do poder e as judiciais desgastam-se continuamente, tornando a sociedade portuguesa ingovernável.

Suspeita



Marx, Nietzsche, Freud. A escola da suspeita, a luta contra a idolatria, a desmontagem do bezerro de ouro. Mas que deus anunciavam estes estranhos profetas? A libertação da opressão, o crepúsculo dos ídolos, a inevitabilidade de uma ilusão. Mas se suspeitarmos da suspeita, se contra ela virarmos a sua poderosa máquina hermenêutica, o que nos resta?

20/11/09

Impressões - XLVII


Alfred Sisley, Nieve en Louveciennes (1887)

és tu que caminhas sobre as águas
um rasto de pedra esconde-se
sob o manto branco
que o inverno estendeu
para que passasses

ó glória inacessível
desenha o rosto que se esconde
no incalculado alvoroço
que a tarde consigo traz

um traço de água uma luz de pedra
um ardor de neve sobre o pânico
com que se fecha o coração

Pedro Moutinho - Esta Contínua Saudade


Conflito das interpretações



O que para a Irlanda foi um roubo, foi para a França um milagre. Como se vê, nem no futebol se escapa à hermenêutica. A única coisa que parece não estar em jogo foi o engano do árbitro. A hermenêutica de Ricoeur dir-nos-ia, porém, que aquela engano se deveu à falibilidade humana. Mas no futebol, isso não existe.

A virtude de Henry



As palavras de Thierry Henry deveriam passar em todas as escolas portuguesas. Deveriam suscitar análise, discussão, transformar-se em exemplo. Por que se envergonha um homem que contribuiu, com a sua batota, para o apuramento da selecção do seu país para o mundial? Mesmo que nada se possa fazer em relação à Irlanda, a confissão virtuosa de Henry é absolutamente excepcional. Aquilo que o jogador diz é incompreensível para a generalidade dos nossos alunos, para não falar para a generalidade dos portugueses. E isso deveria preocupar-nos.

Ficções e exorcismos


Há um momento (61 b), logo no início do diálogo Fédon, de Platão, que Sócrates diz «que o poeta, para ser verdadeiramente poeta, deve criar ficções e não argumentos». Subentende-se que sendo ele filósofo criaria argumentos. Há nesta clivagem entre a produção de argumentos e a de ficções um equívoco que persiste há demasiados séculos. Os argumentos não passam de ficções, as ficções que os filósofos foram utilizando ao longo da história da filosofia. A filosofia faz parte da história da literatura e não passa de um longo e sofisticado exercício de retórica. Por vezes estamos perante boa literatura, outras perante algo insuportavelmente insípido. Platão acusava os poetas de serem mentirosos ao produzirem ficções. A verdade é que Platão dissimulava, mentia, enganava. Fazia-o genialmente, como Nietzsche, ou Hegel, ou qualquer filósofo que valha a pena ler. Quanto mais mente e ficcionaliza um filósofo, mais vale a pena ser lido (os outros, nem de mentir são capazes). Platão não enganava quando ficcionalizava o mundo inteligível, ou construía mitos, mas quando pretendia que os argumentos demonstravam o quer que fosse. Como é que a pobre razão humana tem a pretensão de que uma cadeia lógica entre teses e argumentos justifique alguma coisa? Devemos então deixar de argumentar? Não, por uma questão estética e de coexistência pacífica. É menos desagradável argumentar do que matar-nos uns aos outros, mas só isso. Para além da argumentação está a vida com a sua exuberância, o seu mistério, o seu carácter absolutamente insondável. Perante esse buraco negro, as pretensões da argumentação são um exercício absurdo de cobardia. O medo da escuridão leva-nos a exorcizá-la, a argumentação é a reza e o esconjuro usados.

Jornal Torrejano, 20 de Novembro de 2009



Encontra-se on-line a edição semanal do Jornal Torrejano. Um clique aqui e aparece .

19/11/09

Impressões - XLVI


Norbert Goeneutte, The Pont de l'Europe and Gare Saint Lazare (1888)

era a europa antes do grande desvario
cornucópias de fumo anunciavam
a felicidade pelas ruas não maculadas
por esses anjos caídos
de rodas e motores por asas

não era o parnaso sobre a cidade do oráculo
nem apolo tocava a lira
ou a água nascia da fonte de castália
apenas uma breve sensação de cansaço
abria as áleas por onde o futuro entrava

Gal Costa & Caetano Veloso - O Ciúme


Não nos deixemos iludir



É preciso não se deixar iludir. Esta vã presunção não deixa, no entanto, de ser verosímil. Não nos devemos deixar iludir por quem? Em primeiro e em último lugar, por nós, por aquilo que constitui a nossa opinião, pelas verdades que transportamos, pela potência do nosso argumentário, pelos preconceitos que apresentamos ao mundo como boas causas. Todas as nossas boas causas são falsas. Os homens passam a vida a alertar para as ilusões e os enganos que os outros disseminam na terra e na cabeça da gente boa. Importante, porém, é que se abandone esse proselitismo negativo, essa pregação invertida, esse sermonário sempre disponível para a conversão dos outros. Não nos deixemos iludir por aquilo que queremos vender a nós próprios. Há que rir de si mesmo, olhar de esguelha e desatar a gargalhar com as nossas pretensões, com a erudição que possuímos, com o bem gosto que ostentamos. E não devemos rir de nós como caminho para um eu mais autêntico. A autenticidade é uma nova forma de falsificação. A autenticidade é a mistificação de psicólogos castrados. Devemos rir de nós mesmos apenas por um motivo: somos absoluta e incuravelmente ridículos, irrisórios, risíveis. Não há escárnio e maldizer suficientes para nos caracterizarmos.

18/11/09

Impressões - XLV


Paul Cézanne, Village Road, Auvers (1872-73)

estrada de pó e lama
o árdua caminho que leva
da vida ao porto da redenção

aí aguardo a tua sombra
ou o eco sobre a terra
como se um sol cantasse
na cal que nos espera

Joan Baez - Sweet Sir Galahad


Pobre Cuba



O Presidente Raúl Castro intensificou a repressão em Cuba desde que substituiu no poder o seu irmão Fidel, em Julho de 2006, refere um relatório da organização Human Rights Watch, hoje publicado. Cuba chegou à fase marcelista. Raúl Castro é uma espécie de Marcello Caetano vermelho, mas numa Cuba muito pobre do que era o pobre Portugal do início da década de setenta. Cuba poderia reformar-se à imagem do que aconteceu com Espanha, mas os dirigentes comunistas cubanos parecem preferir uma saída de cena mais espectacular e dramática.

África minha



Este blogue, que não é um especial adepto do professor Queirós, reconhece que Portugal conseguiu os mínimos. Bem, conseguiu um pouco mais que os mínimos. No jogo de hoje a selecção nunca esteve em perigo, controlou o jogo e poderia ter ganho por mais. Gostava imenso de alterar a visão turva que tenho de Queirós como treinador e seleccionador de gente crescida. A África do Sul pode ser uma boa ocasião para Queirós se emancipar do passado, um passado glorioso ao nível das camadas jovens e cinzento no futebol a sério.

Joseph Maistre - O que nada custa




Foi, sem dúvida, com profunda sabedoria que os romanos deram o mesmo nome à força e à virtude. Não há, com efeito, virtude propriamente dita sem vitória sobre nós, e tudo aquilo que não nos custa nada não vale nada. [Joseph Maistre, Soirées de Saint-Pétersbourg]

17/11/09

Impressões - XLIV


Albert Gleizes, Paisaje de Courbevoie (1901)

um pequeno clarão abre o dia
fende as comportas da terra
para que magnífica caia
a pálpebra sobre a erva

sonâmbulas vacilam as mãos
e oferecem árvores e frutos
e flores que ao nascer
são luz na ardósia serena

Mafalda Arnauth - Cavalo à Solta


A visão dos outros


Aprende-se sempre com o resultado da visão dos outros sobre nós. Geralmente, essa visão recata-se na intimidade da consciência, dissimula-se, é generosa connosco ao silenciar o pensamento. As regras de urbanidade poupam alguns desgostos ao nosso precário narcisismo. Mas esse olhar estranho torna-se instrutivo quando é obrigado, pelas circunstâncias sociais ou institucionais, a objectivar-se. Objectivar-se aqui não significa tornar-se objectivo, mas simplesmente ter de se manifestar objectivamente, o que é inteiramente diferente. Nesse momento, temos a revelação de como os outros, por este ou aquele motivo, nos vêem. E isso é sempre instrutivo. Instrui-nos sobre nós e sobre os outros que nos olham. O que, porém, me tem dado mais motivo de reflexão, a partir da experiência própria, é que esse olhar sobre nós vindo dos outros muda muito em conformidade com o lugar onde nos situamos. Por lugar, refiro-me ao lugar geográfico e não a um outro tipo de espaço, seja social ou mental. Sou mais atreito à benevolência dos outros em certos lugares, enquanto outros lugares me são mais claramente adversos. É como se existisse para mim, talvez para todos nós, uma geografia onde se combinam espaços fastos e nefastos, espaços onde se é amado sem fazer nada por isso, e espaços onde se é não propriamente odiado, mas olhado de lado e com mal disfarçada desconfiança, embora também nada se tenha feito para isso. É evidente que estes espaços geograficamente fastos ou nefastos acabam por ter uma correspondência social e mental. Nunca se compreende perfeitamente aquele aviso que na adolescência os pais fazem para que não se frequentem certos sítios nem certas pessoas. Pensamos que é um conselho localizado no espaço e no tempo, mas não é. Prolonga-se vida fora. Muitos dos nossos problemas nascem de nos termos deixado arrastar, talvez por complacência para connosco e para com os outros, para espaços que não são os nossos e frequentar pessoas que não nos convêm. Elas, as pessoas que não nos convêm, sempre que tiverem oportunidade não deixarão de assinalar a nossa inconveniência.

16/11/09

Impressões - XLIII


Joaquín Sorolla y Bastida, Alrededores de Segovia (1906)

inútil nomear o âmbar a opala a safira
inútil contar as pedras ceifar o cereal
inútil abrir as mãos para o vento
ou dar a face para receber o açoite

guarda a faca no bolso da madrugada
e caminha para onde nasce o poente
não haverá um barco que te leve para longe
ou uma silhueta que te anuncie o fim

de margem em margem deixa a prisão
que teceste no linho que há em ti
muralhas de palavras no rumor da noite
escurecem-te a cegueira que nasce de mim

Camané - Estranha Forma de Vida


Chemins qui ne mènent nulle part


Sinal de contradição



É isto que se espera da Igreja Católica, que esteja neste mundo mas não lhe pertença. Bento XVI criticou o «egoísmo que permite que a especulação penetre mesmo no mercado dos cereais, colocando a comida no mesmo plano que todas as outras mercadorias». Este sinal de contradição é o melhor serviço que se pode prestar às sociedades humanas. A voz dos homens é a dos interesses pessoais e do egoísmo. Estes interesses e egoísmo têm um papel na iniciativa dos indivíduos e na dinâmica das sociedades, mas deverão ser contrabalançados pela moral, pela religião, pela política e pelo direito. O ideal seria que o equilíbrio se estabelecesse a partir da própria consciência, isto é, a partir das convicções morais e religiosas. Mas como o egoísmo tem pouca propensão para a consciência moral e faz ouvidos moucos à religião, aquilo que o Papa pede só pode ser realizado por iniciativa política. Esta, como se sabe, serve os senhores deste mundo. Sendo assim, ao menos que a voz do Papa clame, mesmo que seja no deserto, mesmo que ninguém o escute.

15/11/09

Impressões - XLII


Federico Zandomeneghi, La Strada

eis o que te coube em herança
a erva seca a poeira da estrada
jardins suspensos ao luar
por lá passas cantando
à espera de um grito de uma nuvem
de um pássaro a ferir o olhar

não sou o meu corpo disseste
a sombra crescia pela encosta
e anunciava a cidade sitiada
onde haveria de te tomar
e cativa levar-te para a noite
duma praia sem areia nem mar

Origem do mundo


A tortura mais insuportável



Terão alguma vez os tiranos inventado torturas mais insuportáveis que aquelas que os prazeres fazem sofrer aos que se abandonam a eles? Eles trouxeram ao mundo males desconhecido ao género humano, e os médicos ensinam, a partir de uma perspectiva comum, que estas funestas complicações de sintomas e de doenças que desconcertam a sua arte, confundem as suas experiências, desmentem tantas vezes os antigos aforismas, têm a sua origem nos prazeres. [J-B Bossuet, Sermon contre l'amour des plaisirs, I.º point]

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Eis o progresso. Desde a condenação do prazer visto como tortura, devido à insuportabilidade de um desejo nunca saciado, até aos programas políticos da educação para o prazer vão cerca de três séculos. A grande diferença, curiosamente, é que Bossuet sermoneava desta forma perante Luís XIV e a sua corte, como forma de tornar os poderosos mais contidos, enquanto hoje é o poder político que evangeliza a população para o culto do prazer. Restará, contudo, fazer esta estranha pergunta: o que ganham as elites políticas com esta evangelização? O que pretendem elas? Bossuet diria que pretendem abrir uma espécie de caixa de Pandora e disseminar os males pelo mundo, ao mesmo tempo que submetem as populações à tortura mais insuportável, a do desejo nunca saciado (curiosamente, não é este desejo que funda a sociedade de consumo?). Mas Bossuet não passava de um teórico do absolutismo, adversário da democracia.

Masturbação política



Tomei contacto com a coisa no Ponteiros Parados, de lá segui para o Público, onde fui informado que a Exma. Junta da Extremadura espanhola, sob a égide dos socialistas (informação pesquisada por este blogger), está ocupadíssima em «pôr os jovens espanhóis, entre os 14 e os 17 anos, em contacto com o seu corpo e a sua sexualidade. As técnicas de masturbação estão entre os assuntos debatidos e explicados.» A notícia acrescenta: «A campanha, financiada pelo Governo, pediu a duas formadoras que ensinem aos jovens tudo o que é preciso saber sobre jogos eróticos, carícias, auto-erotismo e anatomia masculina e feminina. Temas mais complexos, como a identidade de género e a auto-estima, deverão igualmente ser abordados. As sessões de formação são itinerantes e incluem demonstrações com uma série de "brinquedos sexuais", incluindo vibradores e bolas chinesas.»

Ao fim de centenas de milhares de anos em que os seres humanos e os seus ancestrais se masturbaram como muito bem entenderam, o socialismo moderno decidiu que os jovens não sabem masturbar-se e que não há nada mais para fazer com o dinheiro dos contribuintes do que uns cursos de educação sexual, onde se ensina, entre outras coisas, os jovens nos seus jogos auto-eróticos. A intolerabilidade de tudo isto não reside no facto de haver alguém que ensine alguém a sexualidade, masturbação inclusive. A intolerabilidade está na intromissão do Estado no assunto. Esta intromissão tão cheia de boa vontade iluminista é perigosa porque rasga as fronteiras entre o público e o privado e abre uma nova frente de colonização da esfera da intimidade pela esfera do controlo político. Quando um organismo político acha que deve ensinar sexualidade aos seus cidadãos é porque não está contente com a sexualidade tal como existe e pretende interferir nas práticas sexuais, para as corrigir segundo o seu modelo. Extraordinário.

Mas não é só a esfera da intimidade que é assim ameaçada pelo controlo político. É o próprio poder político que se dissolve na irrelevância daquilo que toma por objecto da sua função. Estas causas da esquerda light, esquerda comprometida com a submissão da esfera política à esfera económica, significam a demissão das elites políticas das suas funções efectivas e a procura de um campo que, após se terem demitado da função de soberania, justique a sua inútil existência. Uma masturbação.

14/11/09

Impressões - XLI


Diego Rivera, La Casteñeda o el Paseo del los Meláncolicos (1904)

no obscuro caminho onde passas
sem que vejam em ti um nome
ou uma estrela assinale a fronte
um pudor de árvores turva o chão
que pisas ao fugir do suplício da noite

as uvas amadureceram no fim do estio
e os cachos caem melancólicos dos braços
onde tristes a vinha os depôs
para que fossem sombra de vida
o vinho no copo que ergues na mão

Serviço militar obrigatório



Um dos temas presentes na crónica de ontem, no Público, de Luís Campos e Cunha, e aqui citada, é o da disciplina. Pertenço a uma geração que assistiu e participou na abolição do valor da disciplina e, concomitantemente, desvalorizou até ao irrisório as virtudes militares e os seus valores. Não fui imune ao sortilégio. Há muitos anos, porém, que reconheço o elevado valor moral e social dos valores da instituição militar. Nunca concordei com a abolição do serviço militar obrigatório, pelo contrário. Ele deveria, nos dias de hoje, ser universal, abranger rapazes e raparigas. Seriam dispensáveis os 16 meses que me couberam em sorte, mas uma espécie de recruta prolongada, de seis meses, na qual todos sem excepção seriam iguais, não faria mal a ninguém. Seria um momento, se bem pensado e organizado como é apanágio da instituição militar, de alta qualidade na formação cívica, social, patriótica e moral. Depois de uma escolaridade anarquizante e mesmo de um ensino superior quase igual, a disciplina da instituição militar acabaria por ajudar uma extensa maioria de jovens. Sei que isto não é politicamente correcto afirmar, ainda por cima por alguém que pertence a uma geração que fugiu do cumprimento do dever militar através de múltiplos álibis. Mas 25 anos como professor, para além da experiência própria na instituição militar, corrigem muitos preconceitos e ideias feitas. O serviço militar obrigatório não seria apenas uma contribuição para solidificar o espírito patriótico e a noção de dever, mas também uma tábua de salvação para muitos jovens que andam pura e simplesmente à deriva.  A primeira coisa que deveria acabar era a objecção de consciência. Pode cumprir-se o dever militar sem ter de pegar em armas. O essencial é a rotina, os valores, a disciplina irremitente, o deitar e levantar cedo, o ter de fazer a cama, o de estar impecavelmente fardado, o aprender a falar com o superior hierárquico, o ter de obedecer, o espírito de entre-ajuda em situações difíceis, o reconhecimento do papel do esforço. Isto é, tudo aquilo que deveria ser já o apanágio das escolas, mas que o corpo político por irresponsabilidade, oportunismo, má-fé e pusilanimidade, com a cumplicidade de muitos professores, diga-se de passagem, decretou que acabasse, para infelicidade de muita gente.

Logo à noite, Ana Moura



Logo, pelas 21:30, no Cine Teatro Virgínia, em Torres Novas, Ana Moura. Já tenho bilhetes para um espectáculo que, segundo consta, está hiper-esgotado. A primeira vez que vi, a sério, fado ao vivo foi com Camané. Ele deixou a expectativa tão alta que até tenho algum medo da apresentação de logo à noite.

13/11/09

Impressões - XL


Theodore Robinson, El Puente Viejo (1890)

quem saberá falar dos anjos
ou daquelas pedras que juntas são
um palácio um castelo uma ponte
onde passas se te dói a cabeça
ou os dias de novembro
se tornam exíguos para a ânsia
que há na luz com que me chamas

tantos os deuses ali mortos
vinham pela aurora e olhavam o rio
e em silêncio viam passar homens
a escura floresta chamava-os
e eles adormeciam nas tarde cálidas
para não mais semearem
em ti o odor fresco da terra

Luís Campos e Cunha - O horror à decência



E a anarquia, quase geral em que vive o ensino secundário, tem horror ao Colégio Militar, obviamente. Aliás, a verdade é mais funda: a anarquia quase geral da nossa sociedade tem horror à instituição militar. Uma instituição organizada, como a militar, que cultiva os valores da honra, da camaradagem, da disciplina e do dever para com a pátria, não pode ser bem vista pela sociedade actual. A nossa vida colectiva -a civil - privilegia o oportunismo, habituou-se aos casos de corrupção (com ou sem fundamento), tem uma imprensa virada para o escândalo e uma televisão com novelas que são difusoras da falta valores e da ausência dos bons costumes. O Colégio Militar poderá acabar mas as razões estão na nossa sociedade e não dentro dos muros do Colégio. O horror à decência é dos indecentes.

Icebergs à deriva



Há uma corrente que insiste em negar a causalidade humana nos fenómenos relacionados com as alterações climáticas. Um dos argumentos é curioso. Funda-se num apelo à humildade. Seria uma arrogância humana desmedida, pretender que as alterações que estão a ocorrer no clima do planeta se devem à acção de uma das espécies que o habita. Mas dois séculos e meio de Revolução Industrial, uma revolução cada vez mais acelarada e disseminada por todos os cantos do planeta, alguma coisa devem ter contribuído para o actual estado de coisas. Por exmplo, para o fenómeno dos icebergs que se estão a deslocar para a Novaz Zelândia ou para a acelarção da perda de massa na Gronelândia. Mas subjacente a este tipo de posições está uma não pequena arrogância, uma hubris prometaica que presume que tudo é permitido ao homem. Que o fogo tenha sido roubado aos deuses e dado aos homens é um crime que, apesar da condenação de Prometeu, pode ser perdoado à espécie humana. É duvidoso, porém, que os deuses permitam impunemente que o homem utilize esse mesmo fogo para reduzir a casa onde habitam a cinzas.

Um record difícil de bater


Jornal Torrejano, 13 de Novembro de 2009



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12/11/09

Impressões - XXXIX


Gustave Loiseau, The Eure River in Winter (1903)

sei das horas a viagem
esse enigma que tudo desfaz
os velhos planos que rompiam futuros
o esboço de um jardim de verão
a esperança do amor
nas tardes em quo o frio nos trai

ergo a taça e brindo
a todos os invernos que me nascem
dentro do saco de lona
a que por hábito chamo alma
e sento-me no sossego da margem
à espera que o rio passe

Ministra da Educação



Acabei de ver, na RTP, a entrevista dada pela Ministra da Educação a Judite de Sousa. Depois da Bruxa Má, veio a Branca de Neve. Antes assim, mas veremos o que tempo, esse grande escultor, nos vai ensinar.

Leituras



Tenho estado a trabalhar sobre um texto de Joseph de Maistre denominado Éclaircissement sur les Sacrifices. Há nessa operação uma dupla ambiguidade. Maistre, um autor anti-iluminista, e é o mínimo que se pode dizer do seu reaccionarismo, utiliza no título do seu estudo uma das palavras mais caras ao Iluminismo, Éclaircissement, Esclarecimento. Esclarecer não é mais do que levar a luz da razão aos lugares onde as trevas predominam. Esclarecer significa literalmente tornar claro, visível. O Esclarecimento é atravessado por um ideal de transparência, por uma luta sem fim contra a opacidade do real. O que Maistre faz, porém, é levar a luz até ao lugar onde ela não penetra, até a uma espécie de buraco negro que deglute toda a energia, que elimina a luminosidade, que mostra um limite à transparência. Esclarece para mostrar que nem tudo pode ser esclarecido, como se brincasse com os seus inimigos teóricos de predilecção, como Voltaire.

A segunda ambiguidade reside em mim, leitor de Maistre. Muito do que leio repugna-me o sentimento e atiça a ferocidade polémica da razão. Ao mesmo tempo, contudo, insinua-se um secreto prazer na leitura, uma prazer que não nasce da transgressão, mas do reconhecimento de uma voz muito antiga que o tempo tinha recalcado. É como se a superfície racionalista que cobre a minha educação cedesse a um longínquo apelo daquilo que, para a razão, há de mais tenebroso e ameaçador. Sinto-me divido entre a vontade de polémica e a sedução que os textos de Maistre exercem sobre mim. Já há muito que não encontrava textos que me pusessem neste estado de ambiguidade. Os livros de Agustina Bessa-Luís, por exemplo, tinham essa capacidade. Fascinavam-me e repeliam-me. Faziam-no de tal maneira que cheguei a jogá-los violentamente contra a parade ou para o chão e pontapeá-los, para depois os apanhar e retomar sofregamente a leitura. Ninguém se iluda, ler não leva à glória dos altares, nem é um exercício para almas cordatas. Ler pode ser uma batalha campal.