30/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e seis



36 - Gustav Klimt - Desenho

Trinta e seis

Adormece
tão leve e
tão descuidada...
O sono
lhe foi trazido
pelo cuidado
de ser amada.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Louis Armstrong & Ella Fitzgerald - Summertime


Louis Armstrong & Ella Fitzgerald - Summertime
Colocado por kamatrikero

Contra a Sérvia na UE

A União Europeia promete aos Sérvios, se eles se portarem bem nas eleições, a entrada para o paraíso, isto é, para União. Portugal deveria opor-se ferozmente. Já basta de humilhações. Entram os sérvios e, passados dois ou três anos, lá vem a notícia de que Portugal acaba de ser ultrapassado pela Sérvia na corrida para atingir a média do PIB europeu. Ó que falta faz o direito de veto.

A gravidade dos chumbos

O Público descobriu hoje que os 170 mil alunos que chumbaram o ano lectivo transacto custaram ao erário público mais de 600 milhões de euros. Não há nada melhor do que a economia para perverter uma discussão racional sobre aquilo que se chama, na linguagem de pau da nomenclatura educativa, insucesso escolar. Aliás, foi a ministra que enveredou há dias por esse caminho. Não é que o custo económico seja despiciendo, não o é. Mas o problema é mais complexo mesmo ao nível económico. Não são apenas os 600 milhões que se perdem. É o impacto negativo na capacidade de gerar riqueza futura por parte desses alunos. Mas o problema não é só destes. É também daqueles que passam e não deviam (são provavelmente muitos mais) e os que sairão das novas oportunidades em que se transformou uma parte da educação em Portugal. Esta perda é ainda maior e mais dramática, mas como não é contabilizável ninguém fala dela.

Mas a discussão está pervertida, pois o problema principal está na seguinte questão: por que razão há tanta repetência em Portugal? Esta discussão deveria ser séria. Mas, devido à acção do actual governo, está toda ela inquinada. Há múltiplas variáveis. Por exemplo, será que muitos alunos têm maturidade suficiente para entrar na escolaridade aos 6 anos? Na Finlândia só entram aos sete. Será que existe uma diversificação curricular que permita encaminhar, desde muito cedo, alunos com poucas apetências pelo ensino geral para uma formação mais adequada? Será que os programas estão adequados? Será que a estrutura curricular é adequada? Qual a qualidade da avaliação que é feita pelos professores? Será a adequada? Será que a gestão dos recursos humanos, dirigida ao milímetro pelo ME, é a mais correcta? Será que é possível adequar o ensino, pelo menos no ensino básico, a turmas tão heterogéneas? Que impacto tem a organização escolar no rendimento dos alunos? Que impacto tem a cultura, entendida na sua relação com o esforço e a exigência, dos alunos na sua prestação escolar? Que impacto tem a cultura da sociedade e das famílias no desempenho escolar das novas gerações?

Como se vê, o problema é muito complexo. Em vez de se olhar para ele de frente, lança-se uma campanha pública contra os chumbos e abre-se o caminho para que amanhã qualquer aluno passe sem saber ler nem escrever. Dirão os defensores do ministério que não é isso que se pretende. Direi, porém, que qualquer medida tem sempre os seus efeitos colaterais. E, como muito bem sabemos pela experiência da guerra em directo na tv, esses efeitos colaterais são devastadores. Os chumbos têm gravidade, pesam que se fartam, mas mais grave é fingir que não há nada para compreender no fenómeno, que é uma questão de voluntarismo político e de pressão sobre os professores.

As Ferreiras e a regionalização

Interessante é a tomada de posição da hipotética candidata socialista à câmara do Porto, Elisa Ferreira, sobre as eleições no PSD. Vem fazer uma espécie de aviso para a plebe laranja: cuidado, se ganha a Ferreira Leite lá se vai a regionalização. A actual eurodeputada socialista é mulher inteligente e sabe que o poviléu militante dos dois grandes partidos anda ansioso pelo aumento dos cargos políticos, sinecuras e prebendas que uma maior distribuição do poder acarretará. Pessoalmente, estou dividido: o meu coração não é contra as regiões. A razão, porém, depois de olhar para a experiência do poder local, leva-me a desconfiar da bondade que se esconde nos movimentos regionalistas. Por outro lado, raramente consigo gostar dos políticos que gostam da regionalização. Seja como for, Elisa Ferreira jogou bem. Num partido como o PSD não é bom o líder ser não regionalista. Mas jogou bem também porque o PS tem todo o interesse que não seja Ferreira Leite que ganhe o partido. Sócrates fica mais à vontade.

29/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e cinco


35 - Gustav Klimt - Desenho

Trinta e cinco

Se o torso
pelo carvão

desenhado

assim se torce,

é porque a alma

já nua

se entrega

a quem logo

a force.


Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Amália Rodrigues: Povo Que Lavas no Rio


Amália Rodrigues : Povo Que Lavas no Rio
Colocado por lapinrose17

Beautiful Century

Beautiful Century is a beautiful blog. Não é um blogue de origem anglo-saxónica, apesar de ser escrito em inglês. A proprietária, de 34 anos – isto de referir a idade das senhoras não é muito decente, mas enfim sempre se tem de dizer qualquer coisa e os tempos já não são os que este blogue retrata – , dá pelo nome simples de Mariana. É já um começo. Também se descobre no perfil que trabalha em contabilidade, mas não é de contas que trata.

O mais certo, num mundo como o nosso, é que a beleza fosse ligada ao dinheiro. Mas não, neste caso está ligada às imagens, a belas imagens que nos visitam vindas do passado, de um mundo que se evaporou talvez na primeira guerra mundial. Postais, fotografias, pintura e até um “menu-factura” de restaurante (uma pista contabilística), mostram um mundo suave e etéreo, como aquele que surpreendemos num quadro de Charles Courtney Curran que por lá encontrámos. Dirão os mais desconfiados, longamente treinados na hermenêutica da suspeita, que este mundo só existia porque havia um outro cuja sordidez se oculta. É possível, mas é tempo de sabermos separar o prazer estético das nossas considerações sobre a ordem moral do mundo. Beautiful Century não trata de moral, mas de beleza, mesmo se esta, naquela mesma época, morria enquanto conceito estético. Nesta perspectiva, o Beautiful Century é um blogue de fronteira. A não perder.

Charles Courtney Curran, The Goldfish

Insegurança e desconforto

Aquela história de um bando de marginais que entra numa esquadra para bater num cidadão que apresentava uma queixa e encontra pela frente apenas, para além do queixoso, um pobre e desamparado polícia é mais um sintoma da doença que corrói os fundamentos do estado democrático. As elites políticas estão convencidas de que o regime está seguro devido à pertença à União Europeia. No entanto, os tempos não permanecem idênticos para sempre e o desespero da insegurança pode não ser um bom conselheiro relativamente ao respeito pelo regime parlamentar. Há uma espécie de trabalho de sapa das instituições e uma impotência política generalizada. Não são só os generais que se sentem desconfortáveis.

O empobrecimento do país do betão

Num editorial de hoje do Diário Económico, Pedro Marques Pereira chama a atenção para o nosso empobrecimento contínuo. A Estónia e a Eslováquia ultrapassar-nos-ão, no ano que vem, em riqueza produzida por habitante. Fazíamos há anos parte de um clube semi-desenvolvido que integrava a Espanha, a Grécia e a Irlanda. Hoje a Grécia tem um PIB de 90% da média europeia, a Espanha de 93% e a pobre Irlanda apresenta um PIB 30% superior à referida média. Em Portugal o PIB é de 66% dessa média. Atrás de nós, em breve, apenas estarão a Bulgária e a Roménia.

Quando é que nos começámos a atrasar? Quando o dinheiro jorrou sem parar da CEE e o país se encheu de auto-estradas, de jeeps e de carros de grande cilindrada. A pobreza do país foi a riqueza de alguns. As opções tomadas por Cavaco Silva, aquelas que lhe permitiam fazer demagogia e falar do pelotão da frente, foram funestas. A mão-de-obra barata, a construção civil, o dinheiro a correr rápido e fácil em vez de criarem um país mais forte abriram um enorme fosso social e tornaram-nos mais atrasados. Guterres chega a ser patético perante uma realidade que ele percebeu mas que não tinha força ou talento para mudar. Acabou por torná-la ainda pior. Agora, para além da retórica do choque tecnológico, qual a esperança para animar a economia? A construção civil e as obras públicas (aeroporto, pontes, estradas, ferrovia), a mesma receita de Cavaco. Será tudo isto fruto de um fado?

Talvez. O fado é o da qualidade das elites económicas e políticas. O tecido empresarial é muito frágil e de renovação muito lenta. O dinheiro corre, como é natural, para os projectos mais fáceis e de remuneração mais rápida, aqueles que têm o suporte do Estado. Os políticos vêm nesse projecto a sua salvação. Este casamento entre empresários e políticos destrói as energias do país. O problema de Portugal não é o funcionalismo público, nem o défice do Estado. O problema de Portugal é a aliança entre política e certa economia, uma espécie de união nacional da grande mediocridade. Depois, o choeque tecnológico, as novas oportunidades, o sucesso para todos, a universidade para maiores de 23, o simplex, são formas simplex de atirar areia para os olhos do indígena. A realidade é dura como o betão que aí vem em doses maciças. Portugal é o país do betão e não há nada a fazer. É o fado.

28/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e quatro

34 - Gustav Klimt - Desenho

Trinta e quatro

Em pose
tão displicente
deixas a luz
cobrir-te os seios,
enquanto a mão,
sem trégua,
dá-te coragem
no sítio
onde nascem
todos os receios.


Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Astrakan Café - Anouar brahem


Astrakan Café Anouar brahem
Colocado por Artiste-Tunisien

Escravatura, que disparate…

Noticia a Lusa que foi desmantelada uma rede luso-espanhola que explorava portugueses em situação de escravatura. Os portugueses pertenciam a famílias da zona do Porto, de baixa escolaridade e com problemas de droga e de álcool. Os salários que lhes eram pagos rondavam os 700 euros, mas eles não tinham acesso à conta bancária que era gerida pelos “contratadores”. Este tipo de crime parece estar a tornar-se comum. Mas por detrás dele existe uma realidade política, social e económica que não deixa de ser uma peça importante na compreensão destes fenómenos.

De facto, o Estado e a sociedade há muito que se desinteressaram dos sectores mais frágeis da população. Não é que seja possível controlar toda a gente. O problema é outro e está ligado ao elevado número de famílias em situação muito frágil em Portugal. É um problema de distribuição. Não apenas dos rendimentos, mas do conhecimento e das oportunidades. É também um problema do planeamento urbano e da forma como são concebidas cidades e vilas pelo país fora. Que um país da União Europeia, no ano de 2008, possua 1/5 da população nas margens da pobreza e que tenha criado um exército de desesperados aptos a serem logrados e escravizados, diz muito do que tem sido a forma como Portugal tem gerido a sua integração. É evidente que os partidos governamentais e o senhor Presidente da República nada têm a ver com o assunto. Coisa de marginais, dirão. Resta saber se os indivíduos cheios de iniciativa cuja organização foi desmantelada representam a seta que aponta o futuro. É claro que não há nenhuma empresa legal de aluguer de mão-de-obra que explore as pessoas. Escravatura, o futuro da humanidade? Que disparate…

"Novas Oportunidades" globalizado

Raramente, mas muito raramente, vasculho no lixo do email, lixo que recebo às dezenas nas várias caixas do correio. Mas neste caso o assunto chamou-me a atenção e resolvi abrir. Eis uma espécie de “Novas Oportunidades” globalizado, ainda mais eficaz e prometedor, sem aborrecimentos ou perda de tempo:

We can assist with Diplomas from prestigious universities based on your present knowledge and Life Experience. No required examination, tests, classes, books, or interviews. Bacheelor, MasteerMBA, and Doctoraate diplomas available in the field of your choice - that's right, you can become a Doctor and receive all the benefits that comes with it. Diploma/Certificate Valid in all countries.

No one is turned down. Confidentiality assured.

Depois seguia-se um número de telefone. Decidi copiar o texto antes de apagar definitivamente aquele lixo.

27/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e três


33 - Gustav Klimt -Kirche in Unterach am Attersee, 1916 [Igreja em Unterach, no Lago de Atter]

Trinta e três

Desloco agora a mão um pouco mais para lá
e depois protejo com ela os olhos do excesso de luz,
o sol sempre o traz. É assim, desse jeito tão simples,
que aprendi a olhar, como se aprende a andar,
sem saber o como e o porquê. E se te olhei
na fundura dos teus olhos foi para ver lagos e igrejas
e casas desvanecidas na sombra que era a tua.
Quando te perguntei se poderíamos ver o silêncio,
talvez escutar as cores, mostraste-me a água parada
do lago e os teus olhos subiram para a torre
e eu fiquei a olhar a tua madeixa a ondular ao vento
ou a pensar-te no ruído das grandes avenidas.

Tens uns olhos abertos como as mulheres perdidas
nas metrópoles de pedra e caminhas sem memória,
como se o medo não te tocasse e tudo fosse apenas uma página
onde a vida distraída escreve algumas linhas brancas e
irreparáveis. Não sei se tens um destino ou
se as tuas mãos me pertencem agora que as prendo entre
as minhas, sei que caminhamos devagar, ao ritmo
ondulado das águas, e por vezes paras,
se julgas ver uma sereia ou um tritão atónitos
na imensidade do lago. Quando na torre repicaram
os sinos, senti a tua mão cravada na minha
e uma leve tremura a percorrer-te o corpo. É um anjo,
disseste como se falasses para ti e, no sorriso
que se arvorou em teus lábios, havia mais do que um
corpo pode conter. Quando o momento passou
e ao longe se ouviu um restolhar de asas pelo chão,
ergueste as pálpebras e o fundo do universo ruiu
na sombra que te crescia no centro da alma. Um desejo
tomou conta da minha mudez e tudo em redor secou,
como se um Verão de terra ardente descesse sobre as
casas que contigo vejo e tomasse conta de mim,
ao entrares pelo abismo incerto dos meus olhos.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

O retorno da fome

No último Jornal Torrejano, Jorge Salgado Simões escrevia na sua rubrica sobre o retorno da fome (ver aqui). Hoje, o Público dá um largo espaço ao problema, publicando o dossiê que vale a pena ler e guardar. A questão não está apenas no retorno em força de um problema que, para nós ocidentais, era coisa do quarto mundo. O problema é também de carácter moral: os êxitos conseguidos no desenvolvimento da ciência técnica e o desinteresse em resolver os problemas, como a fome, que afectam parte significativa da humanidade. Aqui também se pode perceber o que é a mercantilização da ciência e o abandono do Estado da área da investigação, ou a sua submissão às lógicas do mercado. Este visa o interesse daqueles que detém o capital das empresas. Mas há um outro interesse muito mais fundo, que é o interesse geral da humanidade em si mesma. Este interesse só pode ser defendido pelos Estados, se não abandonarem, como o estão a fazer, os homens à sua sorte.

Sócrates em família


Não é difícil perceber por que motivo tem o PSD tanta dificuldade em arranjar um líder. Mas ele, como muito bem viu WEHAVEKAOSINTHEGARDEN, lá está feliz e sorridente, bem no centro da família. Não destoa.

Dois hinos para a futura candidatura de Jardim ao PSD

Jardim entre a Frente Popular e o Jacobinismo

As eleições no PSD estão à beira de uma guerra civil. Por um lado, temos a representante das elites bem pensantes, Manuela Ferreira Leite. Por outro, há esse imenso poviléu, constituído por verdadeiros sans coulotte, que é aquilo a que, na linguagem do partido, se chama as bases. Agora parece que um condottiero destemido está pronto a fazer frente à aristocracia da laranja: Alberto João Jardim. Segundo o Público, o líder madeirense dispõem-se a enfrentar a cruel cabeça da reacção aristocrática, Manuela Ferreira Leite, caso todos os outros, aqui inclui-se Santana Lopes, estejam dispostos a desistir . Teremos assim, no PPD/PSD, uma verdadeira Frente Popular. A imensa personagem histórica vinda da Madeira combinará os traços frentistas da esquerda pós II Guerra com o radicalismo jacobino-burguês da Revolução Francesa. Em breve, veremos Alberto João Jardim em “pantallon”, “carmagnole”, barrete frígio e “sabots” com uma bandeira vermelha na mão. Resta saber qual o papel que se atribui: Danton, Marat ou Robespierre? Seja qual for, o futuro não parece brilhante, mas em Portugal nunca se sabe.

Novos caminhos para o Zimbabué?

A recontagem de votos no Zimbabué confirma a derrota de Robert Mugabe e a vitória da oposição. Aquando da independência, em 1980, o Zimbabué, antiga Rodésia, parecia ter todas as potencialidades para ser um caso exemplar na África Negra. A radicalização, porém, de Robert Mugabe e a sua manutenção, desde 1980, no poder transformaram uma zona rica e próspera no país com a maior taxe de inflação do mundo (especialistas apontam para 100 000%). A política inicial de colaboração com os colonos brancos foi sendo substituída, ao longo dos tempos, por medidas arbitrárias e de perseguição racial. As eleições decorreram num país com uma economia completamente devastada pelo delírio ideológico de Mugabe. Veremos o que vai acontecer, como o partido de Mugabe e o próprio vão aceitar os resultados eleitorais e se vão comportar.

Curiosidade histórica: o Zimbabué tem uma ligação importantíssima à história de Portugal. Foi o pretexto do Ultimato britânico de 1890. Os ingleses pretendiam a retirada das tropas portuguesas no território, território integrado no chamado mapa cor-de-rosa (conferia a posse por parte de Portugal dos territórios que hoje constituem a Zâmbia, o Malawi e o Zimbabué) apresentado por Portugal na Conferência de Berlim (1884/5) e nunca reconhecido pelos ingleses. O Ultimato vai determinar a política portuguesa durante dezenas de anos. O republicanismo recrudesce desde então e conduz ao fim da monarquia em 1910. Também não deverá ser despicienda a contribuição do Ultimato na formação da perspectiva política de Salazar relativa ao problema colonial.

26/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e dois


32 - Gustav Klimt - Unterach am Attersee, 1915 [Unterach no Lago de Atter]

Trinta e dois

O pavor, agora a crescer dentro de mim, vem
do centro da floresta, talvez dos campos tão verdes
que parecem suspensos sobre as casas. Que histórias
terás para me contar – palavras ferozes a vir
em teus lábios recordar-me o terror branco da infância?
Na mudez que de mim se apossou, brilha a voz
que temo escutar quando a tua boca se abre
e de lá vêm palavras, negras palavras feitas de sílabas
de azeviche coladas a pez, palavras em que o sentido
se desfaz mal são pronunciadas e a poeira
delas toma conta e as arrasta para um universo
de galáxias informes.

Se as águas estão paradas e se o bulício dos homens
se calou, foi porque falaste e a escuridão desceu,
tapou os céus e cobriu as nuvens com um veludo tão
negro que tudo se descoloriu. Os barcos abandonaram
o porto e nos campos não há homens ou animais.
Mesmo os deuses luminosos se recolheram, apenas
um ruído de trovoada se escuta ao longe,
enquanto os olhos se abrem para o espanto
das aves de rapina, o céu cruzam como se
fossem bombardeiros em missão de reconhecimento,
talvez anjos tomados pelo orgulho, do bem
se afastam cansados de tanta luz.

Se ainda te toco com as minhas mãos,
a pele, aquela que te cobre o ser, esfarela-se
e caiem pequenas nuvens de areia pelo chão.
Não entrarás naquelas casas, todas as portas
se fecharam ao teu olhar e se das janelas
ainda há quem espreite, não tarda que as portadas
se cerrem como se uma noite eterna viesse
e os simples moradores adormecessem no terror
dos ladrões. Sento-me na luz da tua sombra
e enfrento o pavor que se insinua no estômago
ao escutar o zumbido que dança nesses lábios,
um dia os toquei, e se espalha pelo horizonte,
a roubar o futuro a quem, no presente de cinza
em que vive, perdeu a derradeira linha do passado.

Desenho as últimas letras e nas folhas de cada árvore
espero a vinda não de um deus ou da esperança,
apenas dos buracos negros, a volátil matéria para si atraem:
entro ali e tudo se dissolve na ausência de luz
que é a vida nesta terra de florestas suspensas
e planícies verdes e suaves, amadurecidas
por um lago onde te escondes com a insídia
das tuas palavras, a morte impenitente me trazem.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Alemães referendários e insurrectos

Graças ao A Educação do meu Umbigo fui até à edição on-line e em inglês do Der Spiegel (ler aqui). Os alemães, que se afastam da vida política tradicional, estão a descobrir o referendo como estratégia para pôr em causa muitas decisões de carácter político. Este caminho começa a tornar a vida difícil para os políticos e para a comunidade empresarial.

Como já disse várias vezes, não sou particularmente adepto do referendo, exceptuando em questões de soberania. O que me interessa, porém, nesta notícia é o sentido que se manifesta através desta insurreição referendária aliada ao afastamento da vida política tradicional.

O que se torna evidente é o crescente sentimento de não representação que os cidadãos dão mostras. As elites políticas têm usado os cidadãos para se legitimar, mas mal chegam ao poder a sua aliança preferencial é com a “comunidade empresarial”. Esta aliança foi de tal maneira forte em todo o Ocidente que conduziu a que os governos ocidentais traíssem, é esse o nome apesar do pathos, os seus eleitores e os vendessem no mercado da globalização.

O pacto social-democrata, que equilibrou socialmente a Europa durante decénios, foi substituído por uma política claramente desfavorável às classes médias e às classes populares. Os próprios partidos socialistas, trabalhistas e social-democratas abandonaram os seus eleitores em troco do paraíso da globalização, da retórica da modernização e de um reformismo de sentido invertido (reformar passou a ser diminuir direitos sociais e aumentar as oportunidades dos mais fortes). Agora os alemães estão a descobrir um caminho de retorno à acção política e à democracia directa.

Quem destrói a democracia representativa ao torná-la uma mentira arrisca-se a levar em cima com uma democracia directa e popular. Dito de outra maneira: quem semeia ventos colhe tempestades. Talvez as revoluções sejam há muito anacrónicas como defendia hoje Pulido Valente no Público. Mas as revoltas e as convulsões essas são intemporais.

A venda de ilusões

O Presidente da República, no discurso do 25 de Abril, disse que “vender ilusões não é seguramente a melhor forma de fortalecer o imprescindível clima de confiança que deve existir entre os cidadãos e a classe política”. Estamos de acordo. Mas quem foi o primeiro-ministro que mais ilusões vendeu ao país? Em que consulado mais se fez crer numa vida fácil e na aproximação ao “pelotão da frente”? Quanto dinheiro jorrou da CEE e se desperdiçou nos tempos do primeiro-ministro Cavaco Silva? Que ilusões foram vendidas para que alcançasse a segunda maioria absoluta?

Insegurança e crença nas instituições

Pode o ministro da Administração Interna jurar que o país vive em segurança. As pessoas tendem a não acreditar. Segundo o Público, “se aos crimes praticados nas moradias se somarem os praticados, pelos mesmos métodos, em edifícios comerciais e industriais, então conclui-se que as polícias foram chamadas a investigar estes delitos mais de 100 vezes em cada 24 horas”. Cem assaltos diários, uma média anual de 36 500. Esta “pequena” criminalidade disseminada por todo o lado constrói um sentimento de insegurança partilhado em rede por todo o país. É este sentimento que ajuda, também ele, a fomentar o espírito de descrença nas instituições democráticas.

25/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e um


31 - Gustav Klimt - Desenho

Trinta e um

As pernas que se abrem
e o rosto esquecido,
quase do corpo
apartado,
fazem-me cismar
no instante em que
o dedo se retira
nu e cansado.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Queixa das almas jovens censuradas

Este é o José Mário Branco de que gosto. Há um outro...

Bourvil - La ballade irlandaise (1959)


Bourvil - La ballade irlandaise (1959)
Colocado por kst75f

As impressões do Presidente

O Presidente da República mostrou-se impressionado com a ignorância dos jovens acerca do 25 de Abril. Mas a coisa valerá assim tanto espanto? Para além da natureza tendencialmente ignorante dos jovens nas nossas culturas (sim, nas nossas, naquelas culturas que vivem da retórica da inovação, nas culturas cujas formas de vida implicam a separação e o conflito entre gerações), também a natureza política do acontecimento lhe rouba o prestígio que deveria ter. Que interesse terão as novas gerações por um acontecimento político, se a política que eles sentem (eles apenas sentem) é a tristeza e a desilusão que é? Que interesse poderá ter pelo passado histórico uma geração que pressente que não tem futuro nem lugar na história?

João Carlos Espada e Platão

Há coisas estranhas neste país. Uma delas é o prestígio intelectual de João Carlos Espada. Para além de um conjunto de frases inócuas sobre a gentlemanship e o louvor de Karl Popper, o Professor Espada entretêm-se, na sua coluna no Expresso, a debitar uma ideias edificantes e insípidas sobre a moral e a política. Nada que faça mal ao mundo. Onde se revela a sua estatura intelectual, porém, é no ódio a dois dos grandes pensadores do Ocidente, Platão e Nietzsche. Na coluna de hoje, depois de perorar, no seu estilo habitual, sobre a relação entre fé e política nos EUA, resolve dar lições à esquerda e à direita. À direita diz: “seria melhor confiar menos em reaccionários antidemocratas como Platão e ouvir mais Edmund Burke Winston Churcill”. Ora, como é evidente, aquilo que nós mais vemos é a direita a estudar e a fundar-se em Platão. Um intelectual com um mínimo de profundidade não diz disparates destes. O termo reaccionário é inaplicável a Platão, é um anacronismo. E que democracia era aquela a que se opunha Platão? Era uma espécie de democracia popular e directa, fundada num amplo grau de exclusão cívica, que estava em acelerado grau de decadência e de corrupção. Platão e Nietzsche, para desgosto do Professor Espada, são as figuras cimeiras do pensamento ocidental. O seu pensamento político é estranho para o pequeno burguês citadino? De certa maneira, mas a grandeza destes homens reside no facto de terem pensado muito para lá da política. Mais, talvez a política, incluindo a democrática, só possa ser pensada na sombra destas obras maiores. Parece que em Portugal compensa dizer disparates e falar com leviandade inaudita sobre aquilo que não se conhece ou não se compreende. Bom, vou continuar a minha leitura do Teeteto de Platão, na tradução da Gulbenkian.

24/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta


30 - Gustav Klimt - Desenho

Trinta

O rosto suspendes
num gesto
fútil e
requebrado
e nesse vestido
imagino-te
o corpo leve
e já desfolhado.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

25 de Abril - José Afonso - Grândola; Hino do MFA - Paulo de Carvalho - E depois do adeus

A tradição da liberdade em Portugal está ligada a este momento. Por muito que os caminhos, posteriormente, se tenham desviado, esta primeira hora continha um potencial enorme de liberdade que, ao longo destes anos, se foi mantendo e tornando adulta, apesar de certos tiques que, aqui e ali, têm despontado. Valeu a pena? Mesmo que a alma fosse pequena teria valido infinitamente a pena.

Jornal Torrejano, 25 de Abril de 2008

Nova edição on line do Jornal Torrejano. Para primeira página, a condizer com o dia de saída, temos a referência inevitável ao 25 de Abril: Abril, festas mil. Uma grande fotografia da primeira manifestação e toda a ingenuidade da aprendizagem da democracia está ali especada a olhar para nós e para o nosso cansaço. Referência para o Teatro da Meia Via e a estreia de Felizmente há luar. Referência, também, para o Coral Sinfónico de Portugal e a apresentação, no Teatro Virgínia, da Missa em Fá Menor, de Anton Bruckner.

Na opinião comece-se pelo habitual cartoon de Hélder Dias. José Ricardo Costa escreve Badajoz em Abril, Santana-Maia Leonardo, Liberdade sem medo, Jorge Salgado Simões, Outra vez a fome, Carlos Nuno, E o futuro?, Carlos Henriques, Sporting goleado pelo último. Por fim este blogger escreve As quatro estações do 25 de Abril.

Não havendo mais a tratar, encerra-se este post com a esperança de haver mais notícias do Jornal Torrejano já para a próxima semana.

Acabe-se então com o poema belíssimo de Sophia de Mello Breyner Andresen, também na primeira página do JT:

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

À procura de um lugar

Afinal Alberto João Jardim ainda não pôs completamente de parte uma candidatura à presidência do PSD e Santana Lopes, como se esperava, está mais uma vez disponível para o combate. O PSD sempre foi assim, um partido cheio de gente disponível para se candidatar, seja lá por que motivo for. Não falta gente por ali que se acha capaz de mandar na agremiação e, por milagre, pôr a mão no poder. A experiência de Santana Lopes na Câmara de Lisboa e no governo não molestou a fé dos adeptos na sua capacidade para governar e, descobre-se agora, Alberto João Jardim já não é aquele político incómodo, que diz umas larachas para irritar a esquerda, mas que toda a gente acha que está muito bem longe, na Madeira.

Há um PSD que não tem vergonha, mas que acima de tudo tem uma indisfarçável sofreguidão pelo poder. Santana Lopes ou Jardim são bons porque parece que são umas máquinas a ganhar eleições. Que sejam risíveis enquanto governantes nacionais, isso já não conta. Longe vão os tempos em que Sá Carneiro dizia que em primeiro lugar vinha o país, depois a democracia, por fim a social-democracia, isto é, o partido. Agora, em primeiro lugar, vem um ego disforme (seja o de Menezes, o do menino-guerreiro ou o do senhor da Madeira), depois o partido. Quanto à democracia e ao país, logo se há-de arranjar qualquer coisa. O problema é que esta é a gente que está sintonizada com o espírito do tempo.

23/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Vinte e nove


29 - Gustav Klimt – Rose Bushes under the Trees [Roseiras sob as árvores]

Vinte e nove

Sob a copa das árvores nasceu um jardim de
rosas, secreto jardim onde caminhavas
pelas tardes em que o sol ensanguentava o horizonte
e, com teus passos de névoa, calcavas ao de leve
a erva que das tempestades protegia a terra.
Tocavas nos frutos e deixavas que o aroma das rosas
viesse contigo e te abraçasse e depois
fizesse parte desse corpo branco que era o teu.

Ao longe, eu espreitava-te e via uma deusa
envolta num secreto odor e o perfume que então
se desprendia formava nuvens brancas no céu
e, quando chovia, era uma água de rosas
que regava o pomar onde te escondias para colher,
nessas tardes inquietas em que te olhava,
flores e frutos como se fossem uma imagem azul
grudada num mar tranquilo onde as ondas morrem
devagar, na linha de areia a que todos chamam praia.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Alberto João Jardim

A propósito da possível candidatura de Alberto João Jardim, logo se verá se ela sai ou não, não nos esqueçamos de ler este excerto de Michel Foucault: «O terror ubuesco, a soberania grotesca ou, em termos mais austeros, a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz: isso, creio eu, não é um acidente na história do poder, não é uma falha mecânica. Parece-me que é uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos do poder. O poder político, pelo menos em certas sociedades, em todo caso na nossa, pode atribuir-se, e efectivamente atribuiu-se, a possibilidade de transmitir os seus efeitos, e muito mais que isso, de encontrar a origem dos seus efeitos num canto que é manifestamente, explicitamente, voluntariamente desqualificado pelo odioso, pelo infame, pelo ridículo» (retirado daqui). Será que o meu amigo Câmara Leme vai ter um amplo espaço de investigação sobre a Alethurgia e o Poder Ubuesco (ver aqui)?

Francis Lemarque - A Paris

Uma descoberta recente, Francis Lemarque. Esta Paris aqui cantada, apesar de nunca a ter conhecido, é a minha Paris. Ela nunca existiu a não ser na imaginação de milhões de não parisienses que julgavam ser lá o centro do mundo. Não era, mas deveria ser. E estaríamos lá todos a conversar com o Sartre e o Camus, a ouvir a Gréco e os mais antigos como a Piaf, este Lemarque, o Bourvil, o Montand, eu sei lá... Ainda hoje o acordeão parisiense me amolece o coração. Para não falar de certas fotografias de Robert Doisneau. Estou irremediavelmente velho.


A Paris Francis Lemarque
Colocado por utopike13

Indisciplina escolar e negação ministerial

Uma criança de 11 anos, numa escola do Barreiro, decidiu dar um pontapé numa professora. Diz a senhora ministra da educação: “Evidentemente que são casos dramáticos, mas temos de ter consciência de que são casos isolados e não representam a generalidade do comportamento dos nossos alunos.” Vejamos como funciona a linguagem da senhora ministra. Começa por adjectivar de forma hiperbólica o acontecimento. É evidente, porém, que não estamos perante um caso dramático, mas apenas de uma cena de indisciplina. Mas a hiperbolização do caso só serve, na estratégia da senhora ministra, para ocultar aquilo que a senhora não quer ver nem quer que os portugueses vejam: a indisciplina de uma parte significativa dos alunos.

Apesar de se darem muitos pontapés aos professores (embora a maior parte venha do Ministério da Educação), os alunos não andam, todos eles, ao pontapé ao professor. Há, no entanto, uma elevada taxa de agressões e uma atitude disciplinar dos alunos inaceitável e que impede o trabalho escolar. A senhora ministra quer dizer aos portugueses que a indisciplina é residual. Porquê? Para não pôr em causa a sua tese de que os maus resultados dos alunos são devidos aos professores. Se as pessoas admitem a existência, nas escolas, de um clima de indisciplina que impede o trabalho, se esse clima de indisciplina está assente numa cultura pouco voltada para o trabalho escolar, lá vão por água abaixo as estapafúrdias teses ministeriais sobre o insucesso escolar e os chumbos. A senhora ministra não quer ver a realidade, pura e simplesmente porque ela desmente a sua visão da escola e dos professores. A única coisa a fazer, para manter uma fábula sem qualquer ligação ao que se passa na escola, é negar a realidade.

A relação da senhora ministra com a vida escolar está a atingir foros apenas compreensíveis no âmbito da teoria analítica de Freud. A negação, em psicanálise, é a tentativa de não aceitar na consciência qualquer coisa que perturba o ego. Esta negação sistemática da realidade, esta negação que combina a hiperbolização do facto com a sua negação, revela uma perturbação das convicções ministeriais. É como se todo o edifício arquitectado por aquela pessoa pudesse ruir com a admissão da realidade. Isso percebe-se até pela formação sociológica da senhora ministra. Ela sabe claramente que o insucesso escolar tem causas sociais que os professores não podem dominar nem são responsáveis por elas. É esse saber que tem de ser recalcado e o recalcamento só pode acontecer se a realidade for negada. A máscara de solidez da senhora ministra é apenas e só uma máscara. Há uma enorme convulsão por detrás da pose. Ela pressente, ao nível do inconsciente, que seguiu um caminho completamente errado e absurdo. Há um conflito interior patente que se disfarça através de uma pose hierática e da enfática afirmação de convicções. Mas a pose, para quem está habituado a ler, é apenas uma táctica de luta contra aquilo que ela pressente e que de certa maneira sabe: a falsidade em que assenta a sua política. A negação da indisciplina nas escolas é o ponto central dessa táctica que visa recalcar a vinda à consciência de um saber traumático.

Tratado de Lisboa e a morte da democracia

Discute-se e aprova-se hoje a disfarçada constituição europeia. Sem brilho, às escondidas do povo. Sócrates incha de orgulho e destaca, na linguagem oca que o caracteriza, o “grande consenso político e social em torno de Tratado de Lisboa”. Não sou particularmente adepto do instituto do referendo, mas em caso de transferências de soberania só o legítimo detentor da soberania, o povo, pode autorizar essa transferência. Por essa Europa fora, a palavra deveria ter-lhe sido dada. A forma como a decisão está a ser tomada mostra bem o estado da doença europeia. As elites políticas e económicas não confiam no julgamento popular. Decidiram, com óbvia má-fé, usurpar o poder. A decisão que o parlamento português, como outros, tomou é um prenúncio da pouco importância que a democracia já tem no mundo novo em que vivemos. A democracia está moribunda. Sucumbirá sob a mão de interesses obscuros e poderes fácticos, com a óbvia conivência de uma elite política irresponsável e, passe o pathos da palavra, traidora. Sócrates ri, enlevado pelo nome do tratado e pela astúcia da diplomacia portuguesa, pela sua manha, que julga ele ser génio político. Que este tratado diminua o papel de Portugal na Europa e seja, na sua aprovação, um golpe na vida democrática é, para ele, irrelevante. O seu nomezinho lá ficará na história. Mas em que lugar da história não o sabe ele e os tempos são caprichosos.

22/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Vinte e oito


28 - Gustav Klimt – Poppy Field [Campo de Papoilas]

Vinte e oito

Não haverá piqueniques de burguesas, nem
ramalhetes rubros de papoilas, nem talhadas de melão,
nem damascos ou pão-de-ló molhado em malvasia.

Não haverá aguarelas nem seios como rolas,
nem acampamentos sobre penhascos.

Não haverá nada desse mundo que o tempo levou,
nem os versos do poeta iluminam já
quem pelos campos passa e vê papoilas ou
flores silvestres, o vento as inclina.

Não haverá a voz do mar a bater na falésia,
nem a urgência da água a estrondear na rebentação.

Não haverá calor em teus olhos,
nem brancura no horizonte, nem nas mãos
que são tuas habitará, como num campo de papoilas,
o fim da solidão.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Gramophone: Errei Sim - Dalva de Oliveira

Dalva de Oliveira. Sabe-se lá por quê, comecei a gostar, faz tempo, deste tipo de coisas. O nome de Dalva de Oliveira tinha-me chegado, há muitos anos, numa canção cantada por Maria Bethânia, já não sei em que álbum. Mas nunca tinha ouvido a Dalva ela mesma. Um dia, tropecei com o nome e mandei vir dois cd's dela do Brasil. Fiquei adepto. Aqui, numa gravação pré-histórica.

José Manuel Fernandes - Duas entrevistas, duas formas de olhar a Educação

A ministra diz que em Portugal há demasiados chumbos. O matemático e divulgador que o essencial é não passar de grau sem ter aprendido o essencial. Deve ser difícil encontrar duas entrevistas mais contrastantes sobre como se deve ensinar e sobre o que é um bom sistema de Educação do que as que deram, no mesmo dia - domingo passado - a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, ao Correio da Manhã, e o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, Nuno Crato, ao PÚBLICO.O que é que foi sublinhado pelo Correio da Manhã de tudo o que a ministra disse? Que esta acha que em Portugal há demasiados chumbos. Tantos chumbos que até lhe estragam as estatísticas: "Se considerarmos na amostra os alunos que não repetem, os alunos que estão no ciclo adequado à sua idade têm valores iguais à média dos países da OCDE." É difícil perceber como é que a ministra chegou a esta conclusão, mas tomando os dados da Matemática do Estudo PISA 2003 e realizando algumas contas simples chega-se à conclusão que isso significaria que os repetentes teriam nessa prova uma média sensivelmente igual a metade da média dos não repetentes, o que parece exagerado como índice de fracasso. Mas, se não for, então é imensamente preocupante, pois revela que o nosso sistema de ensino deixa para trás, e em péssimas condições, demasiados alunos.

Em contrapartida, o que é que é sublinhado na entrevista do português que acaba de receber um prémio europeu pelo seu trabalho em prol da divulgação da ciência? Que em cada grau de ensino há um núcleo de conhecimentos básicos que têm de ser adquiridos, sob pena de, progredindo sem os assimilar, nunca mais os alunos conseguirem recuperar o atraso. Citando o megaestudo realizado por uma equipa vastíssima e pluridisciplinar que trabalhou sobre as dificuldades do ensino da Matemática nos Estados Unidos, Nuno Crato sublinhava uma das suas conclusões: "O que esse documento recomenda é que em cada momento se encerrem etapas e se passe à etapa seguinte."

O que diz a isto a ministra? Diz que Portugal é "o país onde há mais chumbos" (o relatório de 2006 do PISA não confirma esta afirmação, se bem que estejamos realmente entre os países onde os alunos ficam mais vezes retidos). "[Por isso], o nosso sistema não seria facilitista, seria exigente, mas na realidade é facilitista, porque esta repetência não serve para aumentar o rigor e a exigência, [ficando os repetentes] numa espécie de limbo que depois prejudicam muitíssimo os nossos resultados."

Colocado o problema desta forma, dir-se-á que o problema está nas escolas e nos professores - só neles, nunca no ministério. Na verdade, não faltarão escolas mal dirigidas e professores incapazes ou deficientes, mas muito do que se passa nas escolas é uma emanação directa das ordens vindas do ministério. "Hoje fala-se muito de autonomia das escolas, mas que autonomia é que estas têm, quando até estão totalmente condicionadas nos horários que fazem?", interrogava-se Nuno Crato na sua entrevista ao PÚBLICO e à Renascença.

A ministra confirma, ao sublinhar na mesma entrevista que, por sua intervenção, as crianças agora nunca estão no recreio, estão em aulas ou em aulas de substituição. É de tal forma impensável colocá-las no recreio que, se a professora do famoso vídeo da Carolina Michaelis tivesse optado por expulsar a aluno, em vez de lhe tirar o telemóvel, teria de a) chamar um auxiliar de educação; b) assegurar que este levava a aluna para uma dessas aulas (com o telemóvel) ou para a biblioteca (sempre com o telemóvel), pois é isso que estabelece o celerado Estatuto do Aluno. Ou seja, desistiria de dar o resto da aula. E, ao não ser agredida, nem filmada, permitiria que a ministra pudesse dizer, como voltou a dizer na referida entrevista, que "as nossas escolas são espaços pacíficos". Pois são. É por isso que o ano lectivo passado foram registados em Portugal 390 casos agressões a professores, apesar de tudo não muito mais que o 221 ocorridos no Reino Unido. Como lá há 420 mil docentes e cá 150 mil, a relação de agressões por docente é "só" cinco vezes maior em Portugal. Somos mesmo um país pacífico de crianças bem-educadas e escolas tranquilas, não somos?
[Público de 22 de Abril de 2008]

A morte de Francisco Martins Rodrigues

Estamos em maré de obituário. Agora foi a vez de Francisco Martins Rodrigues. Morreu esta manhã a principal figura das correntes marxistas-leninistas. Martins Rodrigues era, no início dos anos 60, uma das personagens mais eminentes do Comité Central do Partido Comunista Português. Com a cisão, no campo do comunismo internacional, entre russos e chineses, após a morte de Estaline, Martins Rodrigues foi a face portuguesa da tendência pró-chinesa. Abandonou o PCP em 1963 e fundou com João Pulido Valente, em 1964, o CMLP (Comité Marxista-Leninista Português). Este grupo origina os múltiplos grupos ml que enxameiam a universidade portuguesa nos anos 70 e que, após o 25 de Abril, vão originar a UDP e o denominado PCP-R. Martins Rodrigues, devido a um comportamento mais frágil perante a polícia política na sua última prisão, nunca surge como figura de primeiro plano político, mas durante muitos anos é ele o ideólogo e o estratega do campo político a que pertencia. A sua influência no PREC é muito maior do que se pode pensar. Quem, como eu, passou nos anos 70 por essa área política, sabe bem a forma reverencial como, na altura, era tido o nome, quase sagrado, de Francisco Martins. A sua morte vem já num tempo em que os delírios marxistas-leninistas-maoístas estão definitivamente mortos, felizmente.

Adenda: Pode-se consultar aqui e aqui posts sobre Francisco Martins Rodrigues no Blogue Estudos Sobre o Comunismo de José Pacheco Pereira.

21/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Vinte e sete


27 - Gustav Klimt - Waldabhang in Unerach am Attersee, 1917 [Floresta suspensa em Unerach no Lago de Atter]

Vinte e sete

Tudo se torna etéreo, as árvores suspensas
a pedir a leveza do céu e uma água
azul para refrescar as casas que daqui, tão longe no tempo,
ainda vejo. Caminho e as veredas da memória
são pedras duras onde os pés ardem de cansaço.
Vou sob as raízes daquelas árvores
e apuro o ouvido para escutar as palavras,
ao longe ainda as oiço. Estranha língua a dos mortos,
palavras ruminadas eles nos trazem,
como se as sílabas se despegassem umas das outras,
tornando cada palavra mais lenta e as frases
um prenúncio de eternidade.
Ali, na sabedoria definitiva da morte, eles,
os que partiram para onde ninguém quer saber,
dão-nos lições verdes como as ervas do campo
ou as folhas que as árvores ainda sustêm.
Já não caminham, apenas jazem sob a terra
e aspiram a água parada no lago.

Se tudo fosse pálido como a quietude de estar morto
ou se o movimento se fixasse naquele instante onde
o mundo se torna mais veloz, as palavras tornar-se-iam
eternas e na boca de cada um haveria um fiat
e Deus ouviria, replicado no tempo que parou,
a palavra primeira e única que da sua boca saiu.
Casas, árvores, água, flores, tudo ficaria na eternidade
e tudo seria apenas eco e sombra da palavra
que, ao ser assim tão primeira, se repartiu nas mil árvores
suspensas que sob a minha cabeça vagueiam,
como se o espírito as tivesse abandonado
e na deriva que as tomou a vida se tornasse incerta
e as cores, paralisadas pelo pânico da sombra,
se multiplicassem em raios de luz,
da terra o Sol aquecem e iluminam.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Earl Hines in Berlin (1965) - part I & II

Ruben A. - KAOS

O estatuto exigia que o mais humilde carbonário tivesse uma arma, podia ter mais. Neco sabia do arsenal, apenas ele e o sargento Martins, da total confiança das forças revolucionárias, com a garantia de promoção ao posto de oficial alferes logo no 6 de Outubro. Em cada casa de Lisboa havia um carbonário arma­do, pronto a agir na altura em que o chefe da célula, na rua ou no bairro, desse indicações para manietar o povo. A Carbonária era uma elite misturada com os trabalhadores. A lista incluía emprega­dos do comércio, lojistas, condutores e guarda-freios dos eléctricos, actores, lavradores, estudantes, agentes e guardas da Polícia Munici­pal, oficiais superiores do Exército e da Armada, cocheiros, professo­res de todos os ramos do ensino, empregados dos caminhos-de­-ferro, advogados, médicos, engenheiros, operários, comerciantes, lavradores, funcionários públicos desde contínuos a directores-gerais, activistas secretos nos ministérios, proprietários, regedores. Uma verdadeira família que modernamente se chama máffia e se orgu­lhava de contar PRIMOS de todas as classes sociais. A maçonaria rompera as estruturas de acção pacífica para entrar no campo de obter as rédeas do Poder por qualquer meio, servindo-se agora da clandestinidade dos civis armados.

Manuela Ferreira Leite, Cavaco e Sócrates

Manuela Ferreira Leite apresentou a sua candidatura à presidência do PSD. Caso as incensadas bases estejam para aí viradas, o mau tempo aproxima-se do arquipélago socratista. Não é que Ferreira Leite ganhe as eleições, mas tem um perfil de seriedade que vai conseguir estancar a fuga do eleitorado conservador para o PS e tem muitas hipóteses de reduzir a vitória de Sócrates a uma minoria periclitante. Sócrates bem pode agora rastejar para a esquerda e lambujar as botas do eleitorado que votou nele e que ele desprezou, maltratou e ofendeu publicamente, convencido de que a direita lhe caía aos pés. Essa direita tem agora uma personagem com a credibilidade profissional e académica que Sócrates não tem e isso, para a direita, é muito importante. Cavaco no silêncio faz contas e espera que lá para meados da próxima legislativa, senão antes, convocar novas eleições e pôr no governo a sua gente. Talvez Santana Lopes ou Menezes salvem Sócrates, pensam agora, em jeito de oração, os «spin doctors» socialistas.

Corre, corre, Santana Lopes

Corre o boato de que Santana Lopes está a consultar as hostes pessoais para uma eventual candidatura à direcção do PSD. O homem julga-se tocado pelos deuses e, por isso, terá um destino à espera em S. Bento ou talvez em Belém. Num país normal, a experiência de Santana Lopes como primeiro-ministro era o suficiente para o mandar para a reforma e nunca mais se ouvir falar da sua pessoa. Cá, pelo contrário, a eminência foi vítima da incompreensão do mundo e da má vontade de Sampaio e Cavaco. No PSD, o ridículo e o absurdo são infinitos e lá está o pobre do Santana a fazer aquecimento.

20/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Vinte e seis


26 - Gustav Klimt - Desenho

Vinte e seis

Entrelaçados os corpos
e o rosto para o rosto
inclinado, sobra uma nuvem
no céu que é aquele regaço.
Quando acordarem
serão sereias sem corpo,
pequenas tílias abraçadas
ou dedos esquecidos
no ardor do cansaço.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Grupo Recreativo e talvez Desportivo da Segunda Circular

União de Leiria 4 Sporting 1; Porto 2 Benfica 0. O Benfica, como se sabe, habituou-se a perder, uma pessoa já nem estranha. O Sporting, depois daquela reviravolta contra o Benfica, voltou à sua essência. Levou 4 da extraordinária União de Leiria. Sigam, Benfica e Sporting, o meu conselho e a lição política do Dr. Júdice: vão se fundir. Talvez me faça sócio do Segunda Circular, se tiver teatro amador e passeios ao Domingo.

Charles Trenet - Douce France

Não seria a isto que deveríamos chamar, em tempos, "nacional-cançonetismo"?

CHARLES TRENET - DOUCE FRANCE
Colocado por Francis-Albert

Se Júdice o diz…

Nós já sabíamos, mas agora fomos informados por José Miguel Júdice que o PS é um partido de direita (aqui). Neste blogue, há muito que se sabe que o líder natural do PSD é José Sócrates, mas nunca pensámos que uma tão eminente personagem partilhasse da mesma opinião. Portanto, segundo a douta e judiciosa opinião de Júdice deveriam fundir-se, o PSD e o PS, num único partido de direita. Para quê? Ele não explica, mas eu julgo que sei: talvez para f****, quero dizer: para fundir os portugueses. As voltas que a vida dá.

A entrevista da Ministra da Educação ao Correio da Manhã

Já está disponível aqui a entrevista concedida pela Ministra da Educação ao Correio da Manhã. A subserviência do jornalista chega a dar vómitos. Nem a confissão de parcialidade o salva. Os professores deveriam ler a entrevista com toda a atenção e perceberem o que os espera. Os pais também não fariam mal em tentar perceber o que vai acontecer aos seus filhos. Para isso deveriam saber ler o que se esconde por detrás de cada uma das frases, mas isso talvez seja pedir demasiado.

Ministra da Educação: chumbar é facilitismo

A senhora ministra da educação terá dito, numa entrevista publicada hoje no Correio da Manhã (versão papel), “os chumbos são uma forma de facilitismo para resolver os problemas dos alunos com dificuldades, porque os deixa entregues a si mesmos.” (ver resumo aqui) Mais uma vez a ministra atira para cima dos professores o ónus da situação. A existência de uma cultura anti-escolar por parte de muitos alunos e respectivas famílias, as medidas absolutamente delirantes dos múltiplos gabinetes ministeriais, os currículos desadequados a muitos alunos, nada disso tem importância. A única coisa que interessa é atingir, mais uma vez e de forma sórdida, a honorabilidade dos professores. A senhora ministra, mal sai do controlo dos “spin doctores” partidários e fica entregue a si mesma, mostra bem a quem se dirige o seu ódio de estimação. Mas, como nas sociedades totalitárias, não resiste a perverter a linguagem. O facilitismo é agora “chumbar” alunos. Passá-los sem saberem nada, apesar de esforços desperados de muitos professores, isso não é facilitismo. Isso é ser um excepcional professor. Quantos alunos, no ISCTE, terá a senhora ministra, enquanto professora, abandonado à sua sorte?

19/04/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Vinte e cinco


25 - Gustav Klimt - Stiller Weiher im Schloßpark von Kammer, 1899 [Tanque tranquilo no parque do palácio de Kammer]

Vinte e cinco

Onde se reflecte o céu habitam anjos,
tão silenciosos são que se confundem com
as sombras do arvoredo ou a seda azul
com que o céu reveste as quietas águas
ali abandonadas. Se fixamos o olhar, logo
surpreendemos o leve restolhar das asas,
pois eles voam ao de leve na sombra
pálida que cobre como um véu o mundo.
Por vezes, vêm raparigas, despem-se,
escondem as roupas e entram delicadas
nas águas, então aquecidas pelo sol de Agosto.

Logo os anjos ficam suspensos daqueles
corpos tão brancos e incógnitos
protegem-nas a cada mergulho do mal
que sob a água sempre se esconde.
Quando elas partem, corpo húmido
e vestidos colados à pele, voam
em círculos sob a copa das árvores.
Depois, olham o céu e oram para que amanhã,
sob o sol escaldante do verão, elas retornem
e despidas entrem nas águas tranquilas
onde eles habitam e assim as
protejam daquilo que o destino
na beleza do mundo sempre oculta.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

A ministra das novas oportunidades

Uma lição de demagogia construída sobre indicadores e resultados estatísticos correctos (ler com atenção no Sol). As opiniões de Maria de Lurdes Rodrigues sobre as Novas Oportunidades são um dos indicadores mais firmes da irrelevância que para este governo tem uma aprendizagem séria e consolidada. Não há nada a fazer. Entre a classe política e aqueles que exigem seriedade na vida pública e na escola há um abismo intransponível.

A morte do cónego Melo

Foi anunciada hoje a morte do Cónego Melo, uma das figuras centrais dos sectores mais conservadores da Igreja Católica. O cónego bracarense está associado à resistência ao crescimento das forças políticas de orientação marxista no Verão quente de 1975. Houve tentativas de o associar ao atentado bombista que vitimou o padre Max e a estudante Maria de Lurdes, mas a justiça nunca confirmou a suposição. Inexoravelmente, os protagonistas daquele agitado período histórico desaparecem, como se isso fosse necessário para comprovar que os tempos são definitivamente outros.

Os candidatos do PSD

Os partidos políticos são lugares de tresloucamento, imagens seguras da demência da espécie que nos coube em sorte. Em Portugal, o mais tresloucado desses partidos, logo o mais especificamente humano, é o PSD. Ali não há quem não se julgue à altura de manejar a vara e conduzir a manada. Não bastou Santana Lopes, não bastou ou bastava Luís Filipe Menezes, agora aparece uma chusma de candidatos a líder da sagrada corporação. Aguiar Branco, Passos Coelhos, Patinha Antão. Tudo gente com um extraordinário currículo político, gente que faz o favor de se dispor a tomar conta da casa e, se a fortuna estiver para aí voltada, a pôr a pátria em ordem segundo as excelsas ideias que habitam naquelas cabeças. São estratégias, dir-me-ão. Claro, em Portugal sempre se chamou ideia a uma vaga noção e estratégia a pequenas, miseráveis e patéticas manobras tácticas.

Pacheco Pereira e o beco sem saída

Não, não é do PSD que falava Pacheco Pereira na sua crónica na revista Sábado. Falava dos sindicatos dos professores e do acordo ou entendimento, como preferir segundo a orientação semântica ou partidária, com o Ministério da Educação. Estariam os sindicatos num beco sem saída provocado pela grande manifestação de 8 de Março e, por isso, precisavam de chegar a um acordo. Mas o governo, por questões eleitorais, também precisava de um acordo. E conclui Pacheco Pereira: “Foi por isso que, de repente, se chegou a um acordo que, pelos vistos, os “professores”, citados pelos jornais, entendem como uma derrota e não como a “grande vitória”. Percebe-se porquê: os professores que se manifestavam não queriam, na sua esmagadora maioria, nenhuma avaliação de desempenho, e vai continuar a haver avaliação.

Para além da má-fé de Pacheco Pereira, má-fé fundada na ostensiva ignorância daquilo que opõe os professores ao ME (Estatuto da Carreira que elimina a liberdade pedagógica e divide a carreira de forma arbitrária, o miserável concurso para professor titular, o Estatuto do Aluno e a burocratização desta forma de avaliação e da própria profissão), Pacheco Pereira escamoteia o verdadeiro beco a que se está a conduzir a Educação e que vai atingir o país e os alunos de forma tão ou mais violenta do que atinge, neste momento, os professores. Há toda uma agenda semi-oculta que se orienta para retirar aos alunos da escola pública o direito a aprender, facilitando-lhes até à náusea a vida escolar, como forma de os tornar pouco competitivos no acesso às melhores universidades.

Desde o primeiro ciclo até ao 12.º ano, tudo é uma enorme confusão: currículos, programas disciplinares, práticas pedagógicas, formas de avaliação dos alunos, regime disciplinar. Este é o verdadeiro beco sem saída. Talvez os sindicalistas não entrem nele, mas os professores, os alunos, as famílias e o próprio país estão atolados nesse beco. E é este beco que Pacheco Pereira e muitos outros, mesmo se por vezes reconhecem as razões dos professores, se recusam a ver. Há uma estranha, ou nem por isso, solidariedade de clã, clã que une universitários, jornalistas e políticos, que assenta a sua opinião no desprezo pelo professorado do ensino não superior. É esse corporativismo oculto que não permite a essa gente suspeitar o abismo que se está a abrir, também e muito pela acção do actual governo, na área da educação. A avaliação de professores é apenas um pormenor no mar de problemas. Pormenor que poderia ter sido resolvido com toda a facilidade não fora o caso do governo estar interessadíssimo na confusão que armou.