14/06/09

Metamorfoses XXXIV

Gyorgy Ligeti – Atmospheres

um súbito terror no desvão da noite
os mitos rasgados e atirados por terra
a longa espera a olhar os céus

a chuva não cai mais
e a terra é um deserto de cactos cansados
areia negra
a sombra de algum corvo

se eu me sentar e abrir as mãos
de nada servirá o gesto
a ferida sangrará
e não haverá lenço para estancar o sangue

deixo vir a intermitência das imagens
inundar-me de escoriações
lacerar-me como nos dias em que havia história
e todos dobravam o joelho
na capela onde os deuses se vendiam

mas mataram o anjo numa esquina de rua
aboliram-lhe a presença no crepúsculo
arrancaram-lhe a carteira onde guardava
o dia claro e a noite transfigurada

roubaram os mitos roubaram a história
fui desapossado da herança

o campo que me resta
não tem luz nem sombra nem treva
as areias inertes o coração débil
e a fonte seca onde bebia água pela tarde

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