31/05/09

Metamorfoses XXIV

Josep Navarro Vives - París (1991)

vacilam as casas sob o império do medo
e em cada desvão há uma noite
que pinta o destino de luz
ou abre uma rosa em segredo

não tenho promessas a cumprir
nem espero o consolo da esperança
se o terror pela rua vier
que traga o cutelo afiado
e quando o fruto cair
com um baque surdo pelo chão
deixem-me vivos os olhos
para que possam ver
a dor que me doer então

dormem perdidos os perdidos
cansados de esperar o que vem
não sabem que é em segredo
que a morte chega
para partir com alguém

Mozart: Don Giovanni- Mi Tradi Contest- Waltraud Meier

Ir para casa

Em entrevista ao Correio da Manhã, Vasco Pulido Valente diz: "Se estivesse no lugar de Sócrates, ia para casa." É evidente que VPV não está, e que José Sócrates não é VPV. Mas ir para casa nem era coisa inédita na família socialista. António Guterres foi para casa porque o país estava a cair num pântano. Mas Guterres tem a desculpa de nunca ter obtido uma maioria absoluta. Sócrates teve o mérito de a alcançar, mas com ela apenas conseguiu que país mergulhasse definitivamente no pântano que Guterres queria evitar. Com Sócrates o problema não é cair no pântano, mas o facto de Portugal se ter tornado um imenso pantanal.

O mistério Daniel Sampaio

Daniel Sampaio dá ao seu artigo de hoje, no Público, o título O mistério da sala de aula. Faz um bom retrato, mostra mesmo aquilo que é necessário, mas quando passa a concretizar as suas propostas dá-nos, mais uma vez, uma perspectiva que o aproxima do mais radical eduquês. Para mim, é um mistério que Daniel Sampaio não perceba que aquilo que defende é uma das causas fundamentais do mal que se propõe combater. Nem sempre o descentramento de quem está de fora é o melhor caminho para perceber a realidade.

Por exemplo, Daniel Sampaio diz: "Nesta perspectiva, há muito que defendo que a "ordem" na sala de aula, o "portar-se bem" de que falam os professores, resultam muito mais se forem elaborados pelo conjunto e aceites pelo grupo, do que impostos por um regulamento não participado e elaborado em gabinetes." Isto é muito bonito, mas em geral não funciona. É preciso uma ordem e uma autoridade prévias, que se façam reconhecer por todos, antes que se possa estabelecer acordos tácitos entre professores e alunos. A autoridade não nasce do contrato. Pelo contrário, o contrato nasce da autoridade e é sancionado por esta. Eu sei que sou suspeito, pois não sou propriamente um crente nas doutrinas contratualistas que a modernidade ficcionalizou para justificar a existência da autoridade política. Então, quando essas doutrinas são aplicadas à escola, numa relação entre adultos e não adultos, o desastre é a única coisa que poderemos esperar.

30/05/09

Metamorfoses XXIII

Felix de la Concha - Parada en la 1 Street - STOP Ahead (1996)

naqueles passeios que orlam as ruas
imagino gente que passa apressada
sem pensar na ignorância do futuro
que as espreita do fundo da estrada

vão breves nesse seu não saber
e cantam a esperança dos sonhos
como se um sonho fosse mais
do que um devaneio a esquecer

melhor que entrassem num bar
e ficassem o dia inteiro a beber
e cansados da vida ou do álcool
esperassem a noite para morrer

Gustav Mahler, Waltraud Meier - Ich bin der Welt abhanden gekommen

Uma sombra negra


Como sempre tornei público não sou cavaquista, nunca votei em Cavaco Silva e já disse coisas politicamente pouco agradáveis sobre ele. Sinto, porém, um enorme nojo pela campanha, uma campanha feita de forma insidiosa, que parece estar a fazer-se contra a sua honradez, aproveitando o caso BPN. Se politicamente não partilho dos pontos de vista do Presidente, se inclusive não o acho com uma visão do mundo suficientemente alargada para a função que desempenha, nunca me passou pela cabeça pôr em causa a dignidade e a honradez da primera figura do Estado. Cavaco Silva representa uma coisa muita desagradável para certos sectores políticos: é um homem honrado e com um currículo limpo, sem rabos de palha que o misturem na ganga que hoje parece ter tomado conta desses sectores . No fundo, há uma mensagem que está a ser passada subliminarmente: é tudo a mesma coisa, nem o Presidente é diferente, portanto, como todos são pecadores... Isso não é verdade. Mas quem ganha com esta tentativa de denegrir a imagem de Cavaco Silva? Portugal está a tornar-se um sítio muito perigoso, demasiado perigoso, um sítio onde a democracia corre riscos muito grandes, apesar de, em aparência, funcionar. O medo instala-se em muitos sectores da população e parece que há agentes políticos que não olham a meios para alcançarem fins. Um maquiavelismo saloio, aprendido nas universidades ou em alguma "jota" partidária, está a corroer a vida democrática. Uma sombra negra começa a cobrir Portugal.

Uma entrevista a não perder


No Público on-line, está uma interessante entrevista com o filósofo José Gil. Uma reflexão sobre o homem-avaliado. Apesar da entrevista não estar editada (parece que a jornalista publicou a transcrição das palavras que gravou, sem trabalhar o texto), merece ser lida. Há uma boa reflexão sobre o homem-avaliado, onde Gil mostra como a avaliação tem por finalidade matar a criatividade. Há também uma boa análise sobre a educação. Por fim, há uma curiosa reflexão sobe o chico-espertismo e como certas atitudes psíquicas dos chefes podem transformar-se em comportamentos socialmente patológicos. A entrevista de um universitário desiludido do socratismo.

Manifestação de professores

Hoje uma nova manifestação de professores. Estão na rua dezenas de milhares de professores. Mas, nesta altura do campeonato, tudo isso pode ter pouco relevo. A esperança de algum bom senso no sector só chegará se, nas próximas eleições, o Partido Socialista perder a maioria absoluta. Caso contrário, caso os portugueses ofereçam a Sócrates uma nova maioria absoluta, os professores bem podem desesperar. O inferno burocrático cairá inexoravelmente em cima deles até que a profissão esteja completa e totalmente irreconhecível. Parece faltar pouco, mas é melhor que os professores comecem a perceber o que os espera com nova vitória socialista. Não vai ser nada de suave, podem crer.

29/05/09

Beethoven - Fidelio - Waltraud Meier

Talvez esteja a ficar velho

Teens: Oral Sex and Casual Prostitution No Biggie (abc NEWS). Eu não sou propriamente moralista, mas não se terá já ultrapassado um limiar que não se deveria ter franqueado? Ou então sou eu que estou a envelhecer demasiado depressa e já não acompanho o ritmo de modernização das nossas sociedades ocidentais. Há qualquer coisa, e não é a economia, que não está a funcionar. Mas isso sou eu a achar.

Sondagens caminham para a normalidade

Com a aproximação das eleições europeias, as sondagens começam a tornar-se mais fiáveis e a acordar-se com o expectável. Nesta última sondagem, o PS chega aos 35,5%, o PSD aos 32,5%. Uma distância normal para o actual quadro político. Normal é também o PCP reaparecer como terceira força política (9,2%), mesmo à frente do BE (8,8%). Nunca me pareceu que o Bloco tivesse élan suficiente para ultrapassar o PCP. O eleitorado comunista é muito mais fixo do que o volátil eleitorado do BE. Também sempre me custou a crer no anunciado desaparecimento do CDS-PP. Os actuais 6,5% são muito mais realistas do que anteriores sondagens que apontavam para a casa dos 2%. Enfim, caminhamos para a insuportável normalidade.

A roubalheira

Vou ser sincero: nunca simpatizei com o dr. Vital Moreira. Não é da agora. O facto de ele ser um dos poucos apoiantes da ministra da Educação e um dos defensores do conceito totalitário de escola a tempo inteiro também não contribuiu para que eu mudasse de opinião. Mas apesar do enviesamento que a minha subjectividade pode impor ao que penso, julgo que qualquer um reconhece que o professor de Coimbra não tem jeito para a política. Tem uma voz desagradável e diz muitas vezes coisas que estão de acordo com o timbre da sua voz. O dr. Vital Moreira é um catedrático respeitadíssimo, tem uma carreira académica exemplar, por que razão terá ele necessidade de descer a este tipo de confrontos? Aquela história da roubalheira no BPN e a deselegância da referência, mesmo que indirecta, ao PSD são coisas desagradáveis. A palavra roubalheira faz lembrar a análise política do Zé Manel, aquele taxista adepto do glorioso SLB. A referência ao PSD faz-nos logo pensar se o PS não terá telhados de vidro. Nestas coisas, cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Jornal Torrejano, 29 de Maio de 2009


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28/05/09

Metamorfoses XXII

Jane Millares Sall - Paisajes urbanos (1987)

estão podres as maçãs
e a poeira acumulou-se na biblioteca
um cristo cansado olha-me da desolação da cruz
e todo o seu silêncio embaraçado
parece a longa confissão de quem perdeu a luz

os adolescentes adolescem lá fora
e carregam nas hormonas a dor que deus lhes deu
gritam correm berram silvam
pois o corpo pesa-lhes na leveza do vazio
a que dantes chamavam alma e agora cio

vou deixar as sombras flutuar
e contar as mãos não vá ter perdido alguma
agarro uma velha camisa esburacada
onde esboço para deus o itinerário
e descubro uma ponte há muito cortada

Richard Wagner - Tristan und Isolde (Liebestod) - Waltraud Meier

A perturbação do meretíssimo

O juiz do caso da "menina russa" diz-se perturbado com a situação. Muito bem, mostra que é um ser humano e que possui as mesmas emoções que todos nós. Mas para além de ser humano, o meretíssimo é juiz e juiz conselheiro, julgo. Por muitas emoções que as consequências da sua sentença agora lhe produzam, a Justiça em Portugal ficaria melhor servida se ele se tivesse pura e simplesmente remetido ao silêncio. Dos juízes não esperamos emoções, mas sentenças justas. É para isso que são pagos. As emoções devem ser deixadas para as telenovelas e os carnavais televisivos, ou então para os treinadores de futebol.
Adenda: O José Trincão Marques, do Terra Nossa, chamou-me a atenção, e com toda a razão, para o facto de estarmos na presença de um juiz-desembargador e não de um juiz-conselheiro.

O esquecimento da Europa


Os presidentes da CIP e da AIP acusam candidatos de não discutir a Europa na presente campanha. Não se pense, porém, que esta opinião vem apenas dos sectores empresariais. Da esquerda, a voz insuspeita de Manuel Alegre diz o mesmo. Na verdade, nós nunca nos sentimos lá muito europeus. O devaneio colonial flectiu o nosso olhar e inclinou-nos para o mar. Quando o tempo colonial terminou, a Europa foi a solução de continuidade para a nossa vida política. Passado o entusiasmo inicial e os milhões que permitiram "modernizar" o país e enriquecer alguns sectores mais ousados, ou com menos escrúpulos, o incómodo com a Europa lá voltou. Os candidatos não discutem coisas que acham ociosas e a Europa talvez surja aos olhos de muitos portugueses como assunto ocioso. Os candidatos preocupam-se antes em discutir a mercearia nacional, cuidando que isso lhes traga mais votos e de votos é que eles vivem.

Afinal também perdeu a opinião pública

Em 2006, a ministra da Educação atribuiu o elevado insucesso escolar e a pouca qualificação dos alunos ao trabalho dos professores e ao funcionamento das escolas. Foi o ponto alto da escalada do ME contra os seus próprios professores. Pouco tempo depois, Maria de Lurdes Rodrigues, sem qualquer resquício de vergonha ou sinal de arrependimento, proclama que "admito que perdi os professores mas ganhei a opinião pública". Só esta afirmação seria suficiente, numa democracia minimamente exigente, para demitir a senhora. O curioso, porém, é que além de perder radicalmente os professores, a senhora enganou-se sobre a opinião pública. Segundo uma sondagem da Visão desta semana, os principais responsáveis pelo que vai mal na educação são os governantes e o Ministério da Educação, logo seguidos pelos alunos que, segundo a opinião pública, não querem estudar. Os professores, segundo a mesma sondagem, são os menos responsáveis pelo caos em que a educação caiu em Portugal.

Por muito estranho que possa parecer ao iluminismo niilista do Ministério da Educação, há uma profunda sintonia entre a experiência dos professores e a voz do povo. Os principais responsáveis pelo desastre educativo são os governantes, com as suas ideias delirantes, os seus preconceitos pseudo-científicos, o seu desconhecimento da realidade escolar, da realidade portuguesa e da humanidade em geral. A escola portuguesa é o fruto de abstracções produzidas por gente abstracta que vive nas nuvens. Eu até posso admitir que esta gente faz o que faz com boa-fé. Mas se quisessem agir de má-fé, visando destruir o sistema e prejudicar os alunos, não agiriam de outra maneira. A opinião pública, apesar das campanha de intoxicação do aparelho socialista, percebe bem o que se está a passar.

27/05/09

Metamorfoses XXI

Bill Jacklin - Pacific Place Looking West, Hong Kong (1994)

há em mim uma recordação de lepra nas cidades
as pústulas que cobrem o asfalto e saltam para casa
o barulho da sineta que me bate no peito
e anuncia ao mundo o perigo de contágio

nesses dias eu somava sobre o mapa impérios
e desenhava a estratégia dos exércitos
em grandes folhas brancas onde poisavam moscas –
logo morriam sob o ímpeto desta mão

não havia êxtases nem relâmpagos pelos céus
apenas o desconsolo da vida que corre
a doença que toma conta de cada casa
e escava os alicerces até que tudo na noite grite

assim crescia a lepra nos ombros da cidade
onde me sentava pelo chão à tua espera
ignorando de onde vinhas pois a rosa-dos-ventos
secara quando a noite morreu na madrugada

Michel Camilo y Tomatito - Bésame Mucho (1999)

A irracionalidade da razão

Vi há pouco, na SIC, um programa sobre o estado da justiça em Portugal. Talvez porque esteja demasiado sensível ao assunto, mas o que mais me sensibilizou foi a intervenção de um juiz que lamentava não poder proferir sentenças como o fazem os seus colegas anglo-saxónicos. Uma sentença que lá ocupa duas páginas, cá precisa de centenas. Portugal vive uma paranóia burocrática. Conheço-a muito bem a partir da profissão de professor. A escola portuguesa é irmã gémea dos tribunais portugueses: papéis, papéis, papéis. Isto tem um divertido efeito perverso. Burocracia designa, segundo Max Weber, a organização racional do Estado. Mas em Portugal a burocracia é sinónimo da irracionalidade que se apossou das instituições e da própria sociedade. Decididamente, nós portugueses não temos jeito para a racionalidade. Quando nos pomos a organizar racionalmente seja o que for, o que cresce é a irracionalidade, a paranóia e o devaneio burocráticos. Ao menos, poderíamos ser irracionais sem papéis. Estes, porém, são necessários para nos podermos convencer, erradamente, que somos racionais. Não somos.

A menina russa

A mais recente telenovela jurídica, a da menina russa, teve um importante desenvolvimento político. Os ditos pais afectivos preparavam-se para um episódio em solo russo, a convite de uma televisão russa, as televisões adoram telenovelas. A embaixada russa, certamente por não gostar de telenovelas, não deu o visto de entrada ao pobre casal português. Dir-se-á que é uma atitude pouco democrática das autoridades russas, ainda por cima essa coisa de nacionalismo já não se usa. Mas talvez valha a pena meditar se a atitude russa não representará o futuro das relações internacionais, sem as ilusões bonançosas ocidentais.

26/05/09

Metamorfoses XX

Ken Howard - Morning light, Yemen (1997)

range a mesa onde escrevo
e tudo treme na impetuosa noite
este sonho persegue-me há tantos anos
que dele fiz a minha morada
sem paredes brancas nem trepadeiras nas janelas
casa citadina coberta de fuligem
e do ronco obsceno dos carros na madrugada

o coração bate ao som dos cães vadios
e se em mim ainda ladram recordações
é porque deixei de tomar os medicamentos
o esquecimento foi decrescendo
até a memória se tornar um mar bravio –
inunda as areias escava as arribas
apita-me no sonho como uma sirene portuária

pudesse empacotá-la na dialéctica de hegel
ou converter-me à filosofia analítica
talvez os testículos me doessem menos
e a minha mão deixasse de sangrar
nas tardes onde me sento à janela
para ver passar o rio do esquecimento
na memória que não posso matar

Knabenchor Hannover - Schütz - Opus ultimum

Bode expiatório

O dr. Oliveira e Costa foi ao parlamento falar. Aquilo que ele disse mostra, pelo menos, uma coisa: onde chegou a democracia portuguesa sob a regência do bloco central. Azar o dele, Oliveira e Costa, que está preso. Parece, no entanto, um bode expiatório, uma espécie de cristo que está a ser sacrificado para salvar, talvez mesmo redimir, outros (quantos outros?) que o deveriam acompanhar. A vida é dura.

O período do Terror

Nada melhor para elevar o nível das campanhas eleitorais do que a existência de candidatos cultos. Parece que o professor Vital Moreira, candidato do PS ao parlamento europeu, embevecido com a Ministra da Educação e fiel ao seu passado revolucionário, entoa loas à revolução que vai pela educação. Sei, por exemplo, que o professor de Coimbra adora o conceito de escola a tempo inteiro, conceito absolutamente totalitário e de acordo com os ideais que ele partilhou na sua juventude, e aos quais parece não ter renegado por completo. Mas culto mesmo e dotado de espírito é o candidato Rangel, do PSD. Se Vital acha que estamos a viver uma revolução na educação, então a fase que atravessamos é a do Terror. Engana-se, porém, numa coisa: o Terror não dura apenas há ano e meio. Dura já há quatro longos anos e, curiosamente, começou a ser meticulosamente preparado pela burocracia ministerial no tempo do ministro Roberto Carneiro, quando nos governava o PSD e o professor Cavaco. Cultos, sim, mas de memória curta.

25/05/09

Metamorfoses XIX

John Yardley - Mopeds in the colonnade (sd)

cansei-me de ser culto
e de todos os livros que já li
melhor fora que tivesse gasto a vida
pela areia da praia
ou de cabelo ao vento
personagem de anúncio
de um produto primaveril

melhor fora que não soubesse ler
e ficasse tarde fora a remoer o almoço
ou então perdido num café de aldeia
ouvisse os loucos da minha infância
e com eles aprendesse de cor
a sabedoria da sua loucura

quero lá saber de ideias e de imperativos
rio-me se oiço falar de teorias
acendo o farol para os barcos não naufragarem
e vestido entro no mar
para os peixes não me reconhecerem

sento-me e ponho os pés sobre a mesa
e se vejo um livro que se ateia
logo estremeço
pois já me oiço ressonar

Assanhado - Jacob do Bandolim

Roubo de provas judiciais

Não, não caro leitor, este blogue não se tornou um lugar de reflexão sobre assuntos judiciais. Mas haverá cidadão comum que não ande preocupado com o estado da instituição? Para além da fragilidade que o aparelho de justiça, devido à acção de alguns dos seus agentes, tem dado mostras, agora até a fragilidade física o atingiu: provas judiciais roubadas de um edifício do Ministério da Justiça. Se nem as provas judiciais estão guardadas convenientemente, o que se poderá pensar do resto. A continuar assim, não restará, dentro em breve, pedra sobre pedra no edifício judicial português.

Evolução na descontinuidade...

Quarenta anos de reforma educativa chegaram aqui. Em França, como em Portugal. Este cartoon explica à evidência o que ninguém quer ver: o que significa introduzir os pais na escola. Contrariamente ao que prometia Marcelo Caetano, durante a sua primavera política, por sinal em 1969, na educação não houve evolução na continuidade. A descontinuidade foi tão radical que tudo na escola se inverteu. Em Portugal, o desastre começou mesmo com Marcelo Caetano.

24/05/09

Metamorfoses XVIII

Virginia Lasheras - Entrada al laberinto (1987)

sob o jugo das paredes caminha o herói
traceja linhas e chama-lhes esperança
mas tudo no corpo o trai
as vísceras revolteiam enfadadas
pois o cheiro a decomposição
vem fazê-lo mergulhar num mar de asco
como se a terra não fosse mais
do que aquele labirinto sulfuroso
a metáfora moribunda do inferno

os músculos desagregam-se com lentidão
mas cada passo é mais incerto
e a coragem que enchia o peito
joga-a agora o vento pelo chão

não se lembra das terras sombrias
nem da enseada onde a mãe o gerou
caminha quase parado
e desespera dentro da couraça de ferro
não há deus que por ele venha
nem porta que para a luz se abra

tão imenso caminha o herói
e não sabe ainda o desenlace fatal
a cada volta do labirinto enegrece o destino
e quando a besta horrível cai
é a sua pele que vê rasgada
e o grito animal que pelo mundo ecoa
é apenas o seu próprio ponto final

Fisher-Dieskau/ Richter - Schubert Lieder - 1: Am Fenster

Humanização do trabalho


Bento XVI defendeu hoje, em Cassino, Itália, a humanização do trabalho. Humanizar o trabalho não sei se será uma boa ideia. Sob o conceito de humano pode esconder-se tanta coisa que até o Arbeit macht frei (o trabalho liberta), que os nazis colocavam à entrada dos campos de concentração, lá cabe. Talvez recuar a Kant e pensar em tratar os trabalhadores como pessoas, isto é, sujeitos racionais para com os quais as entidades empregadoras têm o dever de os tratar enquanto tais, isto é, enquanto fins em si mesmos e não meras mercadorias ou simples coisas. Mas não basta a moralidade. É necessário que a lei, isto é, o direito positivo, se acorde com estes princípios morais. A dignidade do trabalhador não é apenas um problema moral, é também um problema jurídico-político.

Na nossa sociedade tem-se assistido, nas últimas décadas, a um esforço de promoção de direitos (das crianças, das mulheres, dos homossexuais e até dos animais, como se estes pudessem reivindicar direitos), ao mesmo tempo que os direitos concretos de quem trabalha (homens, mulheres, homossexuais, heterossexuais) têm sofrido várias revisões tendentes a eliminá-los.

Bento XVI é uma figura bem curiosa e rica. É o homem que, enquanto prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, mandou calar os teólogos da libertação (promotores de uma espécie de marxização do cristianismo na América Latina), dialogou, enquanto intelectual, com Jürgen Habermas, filósofo da escola de Frankfurt, onde a presença de Marx é indiscutível. Talvez ele seja o Papa indicado para abrir a doutrina social da Igreja aos contributos de correntes filosóficas ateias ou agnósticas, como o kantismo, o marxismo e as suas revisões contemporâneas, mas que pensaram e pensam a situação concreta do homem no mundo. Poderia assim a Igreja contribuir para a necessária revisão da forma como a condição do trabalhador é politicamente vista nas sociedades contemporâneas e fazer parte daqueles que querem obviar à tendência existente para eliminar os direitos dos trabalhadores.

Contas da bola

Se as dívidas dos clubes de futebol são assim em Espanha, imagine-se como serão, com a devida proporção, em Portugal. E se a falta de controlo da Liga Espanhola é aquela que é referida, como será no nosso país? Às vezes, acho que o mundo dos negócios e o mundo da bola não fazem lá um casamento muito razoável.

Não basta ser


Definitivamente, a Justiça não tem caminho. A degradação que atingiu a educação é enorme, mas aquela que inundou a Justiça não lhe fica atrás, pelo contrário. A propósito do julgamento do processo Apito Dourado, a opinião pública é brindada com mais umas achas para a fogueira da falta de credibilidade da instituição. Desde as suspeitas do procurador até à linguagem que usa (ver Jornal de Notícias), tudo indicia um doença crónica e prolongada. Há uma coisa que os senhores procuradores e os senhores juízes não conseguem já evitar: ninguém acredita que a Justiça seja independente dos interesses políticos e dos interesses futebolísticos. Pode ser mentira, mas à mulher de César não basta ser honrada, é preciso parecer.

23/05/09

Metamorfoses XVII

François Legrand - La puerta (sd)

desta porta avista-se um traço de rancor
as janelas abertas sobre a paliçada do medo
os vidros partidos pela inclemência da música
e a calvície que tomou conta das casas

não vale a pena olhar para os astros
e saber se a conjugação dos planetas era favorável
o barco foi aparelhado e já voga mar dentro
sem marujos de papel ou capitão que o dirija

mandei derreter a bússola para poder cantar
os últimos mapas entreguei-os num bar
em troca de vinho e da ternura de uma puta
que me aquecesse por instantes o coração

por isso já nada quero saber da história
mesmo quando a cerveja me tolda a cabeça
queimo extático cada um destes livros
para ver a carícia do fogo no papel a arder

depois em descuido sopro para o chão a cinza
e espero que me insultem ao virar da esquina
sempre queimei três mil anos de labor humano
ao menos podia usar o papel para limpar o cu

Carlos Paredes - Coimbra e o Mondego

Belenenses ao fundo

O Belenenses é o meu segundo clube, depois do Benfica. Agora caiu, mais uma vez, na Liga de Honra, se é que uma liga secundária se pode chamar de honra. É pena, o Belenenses faz parte da história do futebol português e a liga principal sem ele fica mais pobre. Mas o Belenenses é um exemplo de como um clube grande (eu sou do tempo em que o Belenenses era considerado um dos quatro grandes) se pode tornar pequeno, até no número de simpatizantes. Espero que volte depressa. O Benfica deveria meditar nisto.

Os advogados e o Zeitgeist



Por que será que ao lermos isto, mais isto, mais isto e ainda isto ficamos com a nítida sensação, mais uma vez, de que Justiça, em Portugal, não passa de uma mixordice inqualificável? Na luta que atravessa e parte a Ordem dos Advogados, por mais explicações marxianas que se possam adiantar, ficamos com a sensação de que todos têm razão. Em quê? No mal que cada protagonista diz dos outros. Já nem os advogados são como antigamente... Parece que também eles entraram num reality show. Pelo menos, têm a vantagem de se terem adaptado ao Zeitgeist.

A simples mercadoria

Karl Marx

A mais baixa e a única categoria necessária de salários é aquela que provê à subsistência do trabalhador durante o trabalho e a um suplemento adequado para criar a família a fim de que a raça dos trabalhadores não se extinga. Segundo Smith, o salário normal é o mais baixo que for compatível com a simples humanidade, isto é, com uma existência bestial.

A procura de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a oferta excede por muito a procura, então parte dos trabalhadores cai na penúria ou na fome. Assim, a existência do trabalhador encontra-se reduzida às mesmas condições que a existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se urna mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar um comprador. E a procura, de que depende a vida do trabalhador, é determinada pelo capricho dos ricos e dos capitalistas.
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Este texto retirado dos Manuscritos Económico-Filosóficos, de Marx, revela o fundamento ético que estruturou todo o pensamento posterior do autor. Há aqui toda uma influência subterrânea da moral idealista de Kant que convém tornar clara. O que Marx compreende muito bem é que o ser humano, na figura de trabalhador, fica reduzido à categoria de mercadoria. Como se sabe, as mercadorias são coisas que se compram e se vendem, são coisas que se trocam. Uma mercadoria não tem um valor absoluto em si mesma, ela é apenas um meio para atingir outros fins. Ora Marx percebe então que a humanidade do trabalhador, em regime capitalista, significa apenas que ele não passa de uma mera coisa, um simples meio para que outros atinjam os seus fins.

Mas o que tem isto a ver com a moral kantiana? Em primeiro lugar, porque Kant considera os seres racionais como pessoas e as pessoas, por serem dotadas de razão, são fins em si mesmas e não meras coisas. Em segundo lugar, devido à fórmula do imperativo categórico que manda respeitar a humanidade tanto na minha pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como um fim em si mesma e nunca apenas como um simples meio.

Quem deslegitimou moralmente a situação do trabalhador no mundo liberal não foi Marx, mas a moral kantiana. A lógica do mundo capitalista assenta, como depois Marx bem viu, na transformação do trabalhador em mera coisa, numa mera mercadoria. Para quem se tenha esquecido disto, basta observar o que se tem passado nas relações laborais durante estes últimos 20 anos.

Pode dizer-se que, no remédio marxista para o problema, foi pior a emenda do que o soneto. É verdade, mas isso não permite extrair a conclusão de que o problema não existe. O comunismo foi uma péssima solução para um problema real. Discute-se muito as relações laborais, a eficiência da economia, a liberdade de contratação. O problema moral, porém, continua: será legítimo tratar seres humanos como meras coisas, isto é, como simples mercadoria? Um dos problemas que a esquerda política, aquela que não se converteu à ideologia do homem como mera coisa ou mercadoria, é a necessidade de ultrapassar a sombra sob a qual ainda vive: um desejo claro ou recalcado da utopia, ou distopia, comunista. Há um problema moral no estatuto dos homens enquanto trabalhadores. Isto merece pensamento e merece novas formas de acção e representação políticas. Uma sociedade que vive dependente desse estatuto, o qual reduz a humanidade de parte substancial dos homens à situação de mercadoria, é uma sociedade imoral.

Afinal não era só a esquerda...


Afinal não era só a esquerda que ameaçava matar pessoas, durante o período quente da revolução do 25 de Abril. Quando, por vezes, se ouvem certos sectores políticos mais extremados, ou às vezes mesmo alguns sectores moderados, à direita, pensa-se que só a esquerda fez ameaças, como o célebre dito do chefe do COPCON que proclamava a necessidade de pôr a reacção (quantas pessoas com menos de 40 anos saberão o que significa esta palavra?) no Campo Pequeno. Segundo o Expresso de hoje, o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal, organização de extrema-direita) condenou à morte o tenente-coronel Melo Antunes, o moderado ideólogo da transição à democracia em Portugal. Aquilo que se pergunta de imediato é se Melo Antunes teve a honra de ser condenado à morte pelo MDLP, quantos mais portugueses esse movimento não deve ter condenado à mesma pena capital? O que vale é que não somos muito dispostos para a acção, e a transição à democracia, apesar do folclore de 74 e de 75 e um certo ajuste de contas com o passado, lá decorreu mais ou menos bem e, apesar de alguns assassinatos políticos, sem rios de sangue.

22/05/09

Metamorfoses XVI

Angél Orcajo - La complicidad del arte (1992)

tudo se desvanece nesta hora de cinza
a mão que estendias e as grandes palavras
– um dia deram-mas como se fossem um deus
ou colírio contra a indigestão talvez o mau-olhado –
e também a esperança de um crepúsculo
ou de uma manhã pintada de glória
num daqueles mausoléus onde dormem os pardais

foi assim que eu pensei a cadência das estrofes
enquanto meditava no calor e cuspia para o chão
esperando que o polícia me prendesse
e se tornasse pública a minha irrisão
eu rei de todas as sarjetas e buda da estrumeira
declaro a minha santidade nos cantos de cada prédio
ou na espiral de vento que me arrasta o cérebro

já nem postos de gasolina há pela cidade
onde comprar combustível para incendiar roma
ou aquecer-me nas noites invernosas a vir
fosse eu o anjo da história e ter-me-ia suicidado
para que os homens cantassem o sossego das horas
mas deus riu-se do desejo e aliviou-me da cruz
para que morra ao rebolar-me inerte pelas lixeiras

Kenny Garrett in Paris with Miles Davis

Que saudades...


Ao tempo que não falava deste símbolo do regime. Que saudades... Também é verdade que a senhora ministra da Educação tem andado calada. Mas agora, não sei por que razão, a senhora decidiu oferecer-nos alguns dos seus pensamentos.

Por exemplo, vem dizer-nos que a avaliação de professores é uma reforma ganha. Eu estou de acordo com a senhora ministra. O ME soube recuar naquilo que era para ele acessório (a qualidade do ensino e o aproveitamento real dos alunos) e manter o essencial (avaliar os professores pelo trivial: a relação com a escola, a relação com a comunidade, etc.). A senhora ministra tem razão. Este tipo de avaliação está em vigor e será este modelo que irá permanecer no futuro, com mais ou menos negociações com os sindicatos, com mais ou menos alterações. O essencial pretendido pelo ME está alcançado. A escola será mais trivial e o ensino será pior. A avaliação de professores encarregar-se-á de que isso aconteça. Em termos futebolísticos, poderemos dizer: ME 1 - Ensino em Portugal 0.

A senhora ministra também veio dizer que, apesar dos muitos percalços, a distribuição a esmo dos Magalhães foi uma boa medida. Mais uma vez, não esclareceu para quem? Para o ensino em Portugal? Para a cultura cívica e a formação de homens livres? Para a propaganda do Partido Socialista? Como já estamos a descobrir, a distribuição de Magalhães vai ter um efeito idêntico a certos fundos europeus que foram distribuídos pela formação profissional. Essa excelente medida também teve resultados brilhantemente a tender para o zero absoluto. Resultado final: ME (e da propaganda) 2 - Ensino em Portugal 0.

Jornal Torrejano, 22 de Maio de 2009


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21/05/09

Metamorfoses XV

Irma Morassi - Invierno en Venecia (1987)

não me lembrava que em veneza havia
um inverno branco a cantar sobre o regaço
de quem perdido entre carros adormecidos
caminha deserdado para o anoitecer

nessa terra não há frutos maduros
nem uma praia marejada por canaviais
o último construtor de herbários
retirou-se exausto para longe do mar

que deuses do prazer invocaremos agora
se as portas dos bares estão fechadas
e nos hotéis restam apenas alguns hóspedes
presos à caligrafia de um sonho derradeiro

sonâmbulo rastejo entre semáforos
e entrego a pele febril ao nevão do dia
não espero nem lua nem sol
nem que respondas à minha pergunta

pudesse ser uma âncora sobre a terra
ou um vómito azedo ao crepúsculo
pudesse ter uma gota de sangue nas veias
ou um punho decepado pela noite

Bodhisattva in metro

Morte e falecimento


Confirmei, mais uma vez e a propósito de João Bénard da Costa, que em Portugal ninguém morre. No nosso país, falece-se bastante, mas nunca se morre verdadeiramente. Confesso, como se estivesse num confessionário, que cometo um pecado social grave, quem sabe se mortal, pois nunca utilizo as palavras falecer, falecimento, etc. Tenho uma dificuldade intrínseca com elas. Para mim o meu pai não faleceu. Morreu de morte pura e dura. Custa? Custa, mas é assim.

Interrogo-me sobre tanto falecimento e nenhuma morte. E descubro, também aí, mais uma vez aquele característico traço de ser português: enganar a realidade. Quando as pessoas dizem faleceu ou falecimento fazem-no para tornar menos irremediável o irremediável da morte. É como se dissessem: bem faleceu, coitado, mas ainda bem, não está morto, apenas falecido. É aqui que descubro o meu pecado mortal social. As pessoas fazem isto por uma questão de educação. Eu, nem por educação, consigo utilizar o faleceu.

Se eu digo morreu ou morte, digo a realidade do acontecimento. É definitivo, nas palavras morte e morrer nada mais se pensa do que no fim da vida. Mas não será isso que acontece também no falecer? Não! Falecer provém do verbo latino fallescere, que significa faltar. Faltar é já uma boa metáfora para o morrer. Afinal fulano não morreu, apenas faltou ao encontro. Mas no verbo latino fallescere pensa-se ainda outra coisa. Pensa-se o enganar, o induzir em erro, etc. Daí o termo latino fallacia (engano, ardil, etc). Os portugueses, ao substituir o verbo morrer pelo falecer, não estã apenas a dizer que o morto, i. é, o falecido, as enganou, mas que elas próprias estão a ver se enganam a morte, lhe diminuem o seu carácter definitivo, aligeiram as consequências, como se fosse possível instaurar um pacto com a rainha das trevas, para que tivesse, também ela, brandos costumes e os seus éditos fossem como as nossas leis: são para cumprir, mas logo se vê. Não consta, porém, que o coração da velha megera, por mais falecer, falecido e falecimento que os portugueses usem, tenha tido qualquer estremecimento de piedade.

Paisagem e despovoamento


Temos todos uma miríade de conhecidos. Desses, há alguns com quem falamos, trocamos opiniões, de quem, eventualmente, nos tornamos amigos para a vida ou para parte dela. Há outros conhecidos, porém, com quem nunca falámos, mas que fomos lendo, fomos sabendo deles através do que escrevem, do que pintam, do que compõem, ou por outro motivo qualquer. Conhecidos conhecidos e conhecidos desconhecidos fazem parte da nossa paisagem, compõem um médium que nos liga ao território. Dessa paisagem fazia parte João Bénard da Costa, a sua ligação ao cinema, as suas crónicas no Público. Agora já não faz. Ou talvez comece a fazer parte de outra paisagem, a da memória que se inscreve sobre o esquecimento.

Este tipo de acontecimentos, faz-me recordar o sub-título desse estranho romance de Carlos de Oliveira denominado Finisterra. O sub-título é o não menos estranho paisagem e povoamento, como se um romance fosse uma narrativa geográfica ou mesmo geofísica. Mas a experiência que, a partir de certa altura da vida, vamos tendo não é a de povoamento. Pelo contrário, a nossa paisagem despovoa-se, os conhecidos, incluindo aqueles com quem nunca falámos, abandonam-na e temos muita dificuldade de introduzir novos conhecidos na paisagem. Com o passar dos anos a paisagem vai-se tornando cada vez mais desértica até que, um dia, cansados de areia a deixamos também. [Aqui, uma pequena nota biográfica sobre João Bénard da Costa]

20/05/09

Metamorfoses XIV

Rita Rutkowski - Interior-exterior (1982)

foi assim que encerrei o ciclo das cores
deitado no chão e comendo a poeira
ou bebendo a água estagnada nas ruas

inventei um universo de vidro
e em todas as chagas fiz jorrar o álcool
para poder gritar enquanto olhava
a cidade carbonizada pelo esquecimento

nada sei do plástico destas cadeiras
nem da estrutura atómica da melancolia
caminho de mão estendida
mas o olhar nunca foca um horizonte

acumulei tanta sabedoria
para agora vir proclamar o esquecimento
entre pequenos incêndios que alastram
e uma precária paixão tardia

Chet Baker - Almost blue

A Igreja e o sexo

Agora é na Irlanda. A Igreja Católica está a braços com mais um escândalo sexual. Não seria altura da Igreja rever a sua moral sexual? É muito interessante discorrer contra o uso do preservativo, proscrever as relações sexuais antes do casamento, glorificar a virgindade e mais umas quantas regras do género sobre o sexo. Mas, depois, os armários da Igreja estão cheios de esqueletos. Os abusos que agora são relatados e todos os outros que se foram conhecendo e talvez muitos outros que nunca conheceremos não serão motivo suficiente para pôr em causa a moral sexual propagandeada pela Igreja? Entre a perversidade destes abusos e defesa perversa da abstinência sexual não haverá nenhuma ligação?

19/05/09

Metamorfoses XIII

Sofía Madrigal - Gruas (1998)

as gruas perdidas pela cidade
ó ruínas de um tempo que anoiteceu

houve um dia que os homens amaram
o ferro e o aço
e sonharam vulcões
onde construíram a eternidade
ao som de uma fanfarra de metal

mas o patíbulo chegou
e os corpos balançam agora
nus e hirtos
em gruas esquecidas
a entupir o trânsito
à hora de ponta matinal

não se fale mais em extinção
nem se pronuncie a palavra
que esquecemos

que os corpos baloicem
ao vento
e como cristo
os mortos aos mortos deixai

Flagstad and Melchior - Tristan and Isolde "Love Duet" (parte)

Remédio para a crise de vocações


Aqui está um remédio para a crise de vocações na Igreja Católica. Se as séries tipo CSI desencadeiam a procura, por parte dos jovens, de cursos de criminologia, também se poderá pensar que umas séries televisivas onde os sacerdotes fossem uma espécie de heróis na luta contra o mal poderia ajudar a repovoar os seminários. E, tendo em conta a idade da maioria dos padres e a falta que há deles, saída profissional, mesmo num período de crise religiosa, não faltaria. E não proteste o leitor pela analogia estabelecida entre as duas vocações, pois são insondáveis os caminhos do Senhor. Por outro lado, nem seria uma coisa particularmente inédita. Já Chesterton criou uma espécie de Sherlock Holmes de sotaina, o famoso padre Brown.

18/05/09

Metamorfoses XII

Francisca Muñoz y Manuel Herrera - Frankfurt (1982 - 1997)

não haverá colheitas este ano
as sementes lançadas à terra coalharam
e no lugar da vida cresceu uma cidade de cristal
aí os vagabundos encontram pela noite
camas de pedra onde dormem se chove

mas já não estamos em tempo de nostalgia
aqueles que aqui vivem apenas a cidade sabem
e o luar que vêem nunca os recorda
aquela lua amarela contra as trevas do céu
ou o rumor do vento na sombra das árvores

há uma vasta arquitectura grafitada em papel
um risco de saliva lembra a infância
onde a noite vinha sempre enfeitada de néon
e um barulho surdo era tudo o que havia
para oferecer à futura melancolia do passado

uma lâmpada ilumina assim o meu fracasso
e traz-me todo para esta cidade sem paisagem
os olhos encovados contam prédios desertos
e abandonado entre carros apodrecidos
faço o mapa vazio de cada lugar que perdi

Immanuel Kant Song

A magna questão de dizer obrigado


Li em diversos sítios a indignação de muitos professores por terem de dizer aos alunos, ao recolher as provas de aferição, "obrigado pela vossa colaboração". É nestas indignações sem sentido que a energia se esgota. Mas por que razão ou razões aquilo está no manual do aplicador das provas de aferição?

Em primeiro lugar, porque esses são os procedimentos internacionais adoptados neste tipo de prova. Por norma, é escolhida uma amostra de alunos e estes são voluntários. Ninguém pode ser obrigado, num país democrático, a participar num estudo. Mas não são estas provas obrigatórias? Aparentemente sim, mas o que acontece ao aluno que faltar? A resposta torna de imediato evidente que a realização das provas é obrigatória, mas...

Em segundo lugar, e em tendo em conta o que se disse antes, os alunos estão de facto a colaborar com o sistema e a sua avaliação, não estão a ser submetidos a nenhum dever para obter certificação escolar. O obrigado pela colaboração pode ser justificado por isso mesmo.

Em terceiro lugar, porque esse obrigado faz parte das regras de cortesia que deverão imperar nas relações em meio académico. Eu uso-o muitas vezes com os meus alunos, até como modelo do que deve ser o comportamento deles.

Não é útil para a causa do ensino em Portugal que os professores contestem este tipo de coisas. Por norma, essa contestação radica no desconhecimento do que está em causa. Útil seria concentrarem-se naquilo que é substantivo. Por exemplo, por que não avaliar efectivamente os alunos? Por que razão não se transformam estas provas em exames nacionais com incidência no percurso escolar dos alunos? Por que razão só a Língua Portuguesa e a Matemática são sujeitas a estas avaliações externas? Mesmo dentro do âmbito da realização da avaliação aferida, os professores deveriam questionar a avaliação aplicada a todo o universo, pois sabe-se que uma avaliação por amostra, além de ser infinitamente mais barata, fornece ao sistema os mesmos resultados gerais. Há questões tão essenciais que perder a face porque se tem de cumprir um norma de boa educação não me parece lá muito interessante.

17/05/09

Metamorfoses XI

Lisa Milroy - Finsbury Square (1995)

na esquadria da folha ou no rectângulo ao centro
na imagem que se tem da periferia
ou no sonho que se ergue pela noite
– diante de um espelho manchado pelo fumo –
descubro o meu cansaço de homem moderno
cheio de razões de papel e de quadrículas
onde inscrevo as rodas de carvão
que alumiam as mãos ensanguentadas

sou o mais moderno dos modernos
aquele que caiu para além de toda a modernidade
e sigo a velejar teorias ou a sulcar um mar de névoa
para descobrir o destino e nele nada encontrar
nem um deus nem um homem nem um pássaro
apenas casas de pedra de onde roubaram
o colmo que cobria como se fora um telhado
as pequenas histórias sem heróis nem vilões

que faziam do mundo a paisagem vazia
farta de progressos cansada de revoluções
apenas um amontoado de canas junto à estrada
dobradas pelo ar deslocado dos carros em fúria
enquanto nós sonâmbulos cantávamos
de esquina em esquina um cântico cruel
e abraçávamos fiéis as poucas putas
que deus como um sinal nos enviava

Benedictine monks of Ampleforth Abbey - Night Prayer

Provas de aferição


Vai pela blogosfera um grande banzé por causa daquilo que os professores devem dizer nas provas de aferição do 4.º e 6.º ano de escolaridades. Há instruções absolutamente padronizadas, que os professores devem seguir rigorosamente à letra, sem sequer as interpretar. Como é público e notório, eu não tenho qualquer tipo de simpatia pela equipa dirigente do Ministério de Educação, mas convém perceber o que se está a passar com o assunto em causa.

Em primeiro lugar, as provas de aferição não são exames, mas um estudo à escala nacional do desempenho do sistema educativo e das escolas que o compõem. Os professores também não são vigilantes de exames. São aplicadores de um instrumento de medida (os testes de Língua Portuguesa e de Matemática). Esta é a realidade teórica da coisa.

Em segundo lugar, não foi esta equipa ministerial nem o Ministério da Educação português que inventou este tipo de procedimentos padronizados e estereotipados. Eles são a regra dos estudos internacionais sobre os sistemas educativos. Existem, por exemplo, no PISA e nos Estudos Internacionais de Matemática e Ciência (lembro-me, até porque fiz parte das equipas de controlo da aplicação desse estudo, de Portugal ter participado no TIMSS - Third International Mathematics and Science Study). Estes procedimentos não têm natureza pedagógica mas "científica". Visam uma uniformização da aplicação dos testes, para evitar que condutas subjectivas dos aplicadores possam introduzir um enviesamento nos resultados. Neste caso, não há qualquer falta de consideração pelos professores, como vi escrito por aí. É uma medida epistemológica, digamos assim.

O principal problema é mesmo a existência destas provas. O sistema não precisa destes estudos (aliás, uma amostra relativamente pequena seria o suficiente para o sistema se avaliar), mas de um nível de exigência mais elevado. Esse só viria com a reintrodução de exames, nas várias disciplinas, nos finais de ciclo. Ora isso é o que nenhum político quer. Exames com consequências para o percurso escolar dos alunos implicam reprovações e a permanência de muitos alunos mais tempo dentro do sistema. Implicariam também a selecção dos percursos de formação. Ninguém está interessado nisso. Todos gostamos de fingir que as coisas vão o melhor possível. As provas de aferição são uma espécie de fait-divers para os alunos e, mais tarde ou mais cedo, servirão para avaliar os professores, dentro da lógica invertida que o actual ministério inventou.

O vate político

Acabou-se o suspense sobre o destino do vate político de Águeda. Deu em nada como era de esperar, pois Alegre não tinha nada para dar. Ser uma espécie de consciência ética de esquerda dentro do Partido Socialista é ser rigorosamente nada.

Eu continuo a acreditar que há uma diferença entre a esquerda e a direita, mas essa diferença precisa de ser pensada à luz dos acontecimentos das últimas décadas. Ora, como é público e notório, Manuel Alegre não pensa rigorosamente nada sobre o assunto e não tem nada a dizer sobre o mesmo. E, no entanto, há coisas a dizer e a fazer que o Partido Socialista, devido à sua deriva jacobina, nunca será capaz de o dizer e ainda menos de o fazer. Essas coisas também não serão ditas nem feitas pelo PCP e pelo BE, cujos imaginários são anti-liberais, anti-capitalistas e revolucionários. Manuel Alegre teria aí a sua janela de oportunidade, que agora fechou definitivamente para gáudio de Sócrates e do aparelho jacobino socialista.

Apesar de tudo isto, não deixo de simpatizar, enquanto pessoa e representante de um certo ethos cavalheiresco, com Manuel Alegre. O seu principal problema reside, porém, no facto de ele se portar na política como um vate e na poesia como um político. O que não é bom nem para o político nem para o poeta.

16/05/09

O futuro da pátria


Não, não estamos perante uma montagem onde José Sócrates olha para o seu holograma enquanto jovem. Aquele rapaz existe mesmo, julgo que se chama Duarte Cordeiro, é o chefe da JS e um dos mentores da introdução dos preservativos nas escolas secundárias (ver o post mais abaixo). É assim, nesta amena cavaqueira - salvo seja -, que a pátria recruta e forma os seus ditosos líderes. E ainda dizem que não há clonagem humana.

O lupanar da Juventude Preservativa

Anda indignada a Juventude Socialista com o conservadorismo de muitos deputados, incluindo uma percentagem considerável de socialistas. Num assomo de consciência, os senhores deputados acham que distribuir preservativos na escola é excessivo. Eu só posso estar de acordo com esta rapaziada que pulula na jota do PS. Se o seu governo destruiu a escola enquanto local de saber, se transformou os professores, como diz o Zé Ricardo (o seu a seu dono), em meros auxiliares de acção educativa, se entregaram a direcção das escolas à voragem das caciques municipais, e até os regedores de aldeia querem mandar no ensino, podemos dar um passo em frente.

Criatividade é coisa que não falta nas juventudes partidárias. Portanto, não será difícil à JS discernir o sentido para onde tudo se encaminha. O passo a seguir será, já que é na escola que os jovens se encontram - argumento extraordinário aduzido para justificar a distribuição aí de preservativos -, exigir a construção de quartos, com serviço de apoio, para que os jovens não tenham que sair da escola para utilizar os preservativos distribuídos. Como, segundo a lógica da política educativa socialista, escola não é um lugar onde se ensina mas onde se desenvolvem competências, as salas de aulas deverão ser transformadas em quartos. Deverá haver quartos de casal e quartos mais amplos, para o caso dos jovens lhes apetecer uma orgia. Assim, se desenvolvem competências socialmente úteis e os jovens aprenderão a aprender. Os professores sempre podem assegurar o serviço de quartos, organizar uma biblioteca de livros pornográficos, eróticos, peço desculpa, e assegurar a compra de filmes adequados ao lupanar em que esta gente transformou a escola.

Sim, não é por se distribuir preservativos que a escola se transformará num lupanar. É por a escola ter sido transformada, pela pedagogice niilista ancorada no Estado e renovada pelos governos, num lupanar, que agora há que distribuir preservativos. Gloriosa Juventude Preservativa.

15/05/09

Metamorfoses X

Angel Baltasar - El Rascacielos (1992-1993)

chegaram os dias difíceis
as estrelas andam por aí
perdidas ao deus dará
cansadas de iluminar a terra
ou de nortear quem ao mar vá

enternecidos os delinquentes
começaram por empilhar pedras
e logo nasceu um rio de serpentes
a vaga sensação de leveza
que ao céu roubava fronteira

vidro aço as asas de um anjo
o coração fremente
naquele itinerário sem fim
e de repente a manhã vem
e despede-se de mim

lá em baixo rente ao chão
há bancos vazios
e os pássaros sem asas
sobem cantando para o céu
roucos pesados frios