13/08/07

Interlúdio

Este blogger de triste figura vai ausentar-se para parte incerta até finais de Agosto. O A VER O MUNDO segue dentro de instantes, quer dizer, a partir de 1 de Setembro, caso não haja imprevistos ou motivos de força maior.

Fiquemos então com um pequeno interlúdio. Sempre que por aqui passar clique no vídeo e oiça um excerto de uma das mais célebres peças de Mozart: Eine Kleine Nachtmusik. Até já….


Mármore - VI. A luz

A luz
vermelha de fogo.

No horizonte,
homens e pedras a cavalgar de novo.

Micropoemas, Mármore (1989)

Diário de um banhista - Epílogo

Não há bem que não acabe, nem mal que sempre dure. É com esta referência à cultura popular e ao são senso comum que me despeço deste diário, querido diário, que me tem acompanhado nestes dias de exílio, nesta peregrinação ao santuário de Posídon. Dirá o leitor, o eventual leitor, corrijo, que o provérbio não esclarece se esta estadia é, por mim, banhista, considerada um bem ou um mal, um exílio ou uma peregrinação. Lamento, mas deixarei a interpretação em aberto. Não quero condicionar a leitura destas aventuras e impor uma significação unívoca. Expostas ao mundo, cada um que as interprete como quiser ou como puder. Nelas encontrará vasta matéria para meditação sobre a natureza dos homens e do mundo e, se for mais aberto ao domínio do esotérico, certamente irá passar longas horas em busca da chave cabalística que se oculta no emaranhado destas pobres narrativas.

Saiba, porém, que hoje, o último dia desta aventura, e isto não é despiciendo para a tal chave acima referida, decidi passar a manhã na praia, a passear para cá e para lá, a molhar os pés, a ver os mais afoitos dentro de água. Para quê, perguntar-me-ão. Para nada, respondo. O banhista ideal, ao contrário do banhista real e empírico, é perfeitamente destituído de qualquer interesse e finalidade. Faz o que faz e nada mais há a acrescentar.

Resta-me, agora, arrumar as malas, despedir-me da criançada, que tem mais que fazer do que aturar banhistas em fase de pré-senilidade, e adeus oceano tenebroso, o vasto mundo, a terra firme, espera por mim. Ite, Missa est.

Paisagens Marítimas - XIII


12/08/07

Mármore - V. Pássaro

Pássaro,
pedra que voa.

A morte,
um eco que ressoa.

Micropoemas, Mármore (1989)

Diário de um banhista - XII

O mal sempre vem. Hoje, domingo, ocorreu o que temia na semana passada. Regra da casa: ao domingo, ninguém põe pé na praia, seja esta qual for. Que aconteceu, hoje, domingo? Foi declarado dia de excepção. Por que motivo, Senhor, fizeste tão inconstantes as tuas criaturas? Tudo para a praia; a criançada banhante na vanguarda solar. Criançada quer dizer aqui: gente entre os 20 e os 27 anos. Mas quem será fiel às regras expressas para regulação da comunidade? No dia em que as regras não forem cumpridas por ninguém ainda serão regras? E poderá uma comunidade, pequena que seja, viver sem regras? Não, não, mil vezes não.

Eu, o banhista por antonomásia, decido abdicar do meu prazer da areia, dos escaldões solares, da gratificante companhia dos milhares e milhares de seres humanos que vêm exibir para a praia a sua humanidade, abdico, repito-me, da excelência da sua companhia nas águas onde mergulho e decido, reafirmo, assim e num gesto de puro altruísmo, sacrificar-me pelos valores comunitários. Vão sem mim, digo, com um ar pesaroso e compungido, como se tivesse acabado de sair de um confessionário. Tenho pena de não os acompanhar, faço notar, mas fico por aqui a garantir o cumprimento zeloso das regras, a dar o exemplo que os mais novos, quando forem mais velhos e perceberem o alcance do gesto, reterão e transmitirão à sua descendência, se a tiverem.

Abandonado por todos, sem esperança de uma sardinhada dominical, condenado a uma refeição frugal, o fiel banhista aqui está perante o computador a cumprir a sua missão: narrar a sua gesta, contar aos outros os seus feitos, propagar ao mundo a sua epopeia nas praias de Portugal. É um fresco épico o que o meu ego me pede, um fresco que cale as navegações de gregos e de troianos e até de lusitanos. Sinto-me já o novo Camões anunciado pelo Pessoa. Suave é a carícia das ninfas e o vento da inspiração.

Mas o que resta a quem fica só? A memória, a doce mas infiel memória. A recordação das aventuras tidas, dos banhos tomados, dos mergulhos dados. A única coisa que posso fazer é desfolhar o glorioso livro da minha estadia a banhos e dar a conhecer os extraordinários episódios onde, nestes dias, se revelou a minha essência de banhista. Mas será que vale a pena repetir-me? Não será este diário, fiel acompanhante e confidente querido, a expressão mais viva dessas aventuras? Valerá a pena fazer como as pessoas já entradas na idade e repetir-me até não mais me poderem ouvir?

Não, vou poupar o leitor aos meus acessos temporãos de senilidade e calar-me. Desde que deixei de ir à missa e ao futebol, o domingo sempre foi um dia triste, salpicado de angústia. Remeto-me ao silêncio. Nele, conforta-me o espaço espiritual onde a minha memória, a doce memória destes dias bem-aventurados, me vai consolar. Sim, a rememoração sempre foi a mais doce das consolações. É ela que vai ser o analgésico para a dor de tanto abandono e tanta traição. É duro ser um fiel banhista.

Condor Popular & Ciclone

Hoje publicam-se capas de duas revistas de aventuras (livros aos quadradinhos) muito populares quando eu era aluno de escola primária. Estas revistas são clones uma da outra. Não sei se ambas eram editadas pelas Agência Portuguesa de Revistas, ou se alguma teria outro editor. O que as marca é uma concepção, absolutamente idêntica, onde o preto e o branco das figuras se combina com uma outra cor (rosa, verde, azul, cinzento, laranja, etc.), que vai variando de número para número. Tanto quanto recordo, as histórias erm bastante simples e o número de páginas relativamente diminuto. Uma leitura popular, a preços absolutamente populares. Estes número custavam 1$20, no Continente, e 1$50, no Ultramar. E custaram assim durante muitos anos. Tempo em que a inflação era coisa desconhecida. Lembro-me de "cravar" uma ao meu pai cada vez que ia com ele ao café. Jornal, para ele. Ciclone ou Condor, para mim. Como se prova, os alicerces da minha cultura são mesmo bastante baixos...


Paisagens Marítimas - XII


11/08/07

Mármore - IV. Da terra

Da terra,
a solidão do monte.

O vento,
cidade sem horizonte.

Micropoemas, Mármore (1989)

Diário de um banhista - XI

No outro dia fiquei chocado. Então, não é que os Inspectores da ASAE apreenderam 400, ou terão sido 4000?, Bolas-de-Berlim fresquinhas, daquelas mesmo boas para comer em pleno tempo de banhos. Esta preocupação com a saúde pública parece-me uma manobra das capitais escandinavas para aniquilaram as vantagens competitivas de Portugal. Não percebem que tudo isto é uma forma de indústria caseira, diria mesmo que é o nosso verdadeiro artesanato. Depois da alheira de Mirandela, dos múltiplos salpicões, dos chouriços e dos chourições, agora até Bola-de-Berlim está a ser alvo das arbitrariedades dos inspectores a soldo do governo, que por sua vez contemporiza com as pretensões daquela malta esbranquiçada, educada, ecológica e liofilizada, que habita as regiões do norte deste continente que viu nascer o glorioso banhista que eu sou.

Note-se que não quero aqui denegrir a imagem do nosso primeiro-ministro e acusá-lo de ser agente infiltrado das potências nórdicas adeptas da liofilização geral. Não, saliento apenas que o seu espírito pós-moderno, habitado pela epopeia da sociedade do conhecimento e pelo sonho – verdadeiro desígnio pátrio – do choque tecnológico, não o habilita a compreender o desvelo com que nós, portugueses ignaros, amamos os riscos provenientes da manufactura caseira de alimentos. Que interessam as salmonelas, se as bolas são uma arte caseira, feita com as mãos sujas, mas patrióticas, que fazem um bolo plenamente nacional, apesar daquela funesta referência a Berlim? São capazes de me explicar?

É um facto que sou um banhista. Mais, sou o verdadeiro banhista, aquele onde a essência de banhista coincide com a sua própria existência. Mas isso não quer dizer que não seja patriota e não ame aquilo que todos nós portugueses – deixem-me falar no plural – amamos. Solidário com o Portugal autêntico, levemente desgostado com a deriva tecnicizante do Engenheiro, ao levantar-me hoje, eu que sou por natureza indeciso, tomei uma decisão: nada de praia, vou realizar a minha vocação de banhista para outro lado.

E lá fui em demanda do Santo Graal. Entrava e saía, à socapa, de cafés e pastelarias até que chego ao Templo e entro no Santo dos Santos. Era ali que terminava a dorida busca do cálice com o sangue de Cristo. Miro a vitrina, salivo, sinto o coração a palpitar. Uma Bola-de-Berlim, digo em voz de comando. A rapariga não se amedronta com o meu vociferar, sorri, indulgente quase cativante, e retruque: com ou sem creme? Sorrio também. Sinto-me em casa, no meu Portugal, nada naquela rapariga simples do povo me faz lembrar o Engenheiro Sócrates. Talvez o buço, se o Engenheiro o deixasse crescer, mas não nos desviemos. Com creme, minha amiga – respondo a fazer-me já íntimo –, com creme, que eu sou banhista. Ela não deixou de sorrir e serviu-me uma enorme bola a abarrotar de creme, esplendidamente banhada em óleo – quantas bolas, ó doces bolas, não terá aquele óleo fritado antes desta que irá morrer nas minhas vísceras e contribuir assim para a untuosidade geral do meu querido Portugal.

Ser banhista é mais do que tomar banho, ser banhista é comer Bolas-de-Berlim com creme, ser banhista é ser português sem os desvarios tecnológicos dos engenheiros e dos inspectores que nos engenham e inspectam a cada momento. A ASAE, o governo, o próprio Engenheiro, que fiquem sabendo: resistiremos, não passarão. Que vão para a Finlândia que os deu à luz (como vêem, sou um banhista educado), nós continuaremos com as nossas bolas no sítio que é o delas.

Paisagens Marítimas - XI


10/08/07

Mármore - III. Calcário

Calcário,
cidade sem fim.

A brancura,
morte a erguer-se em mim.

Micropoemas, Mármore (1989)

Diário de um banhista - X

Confortado na certeza de ser o único e verdadeiro banhista, recusei-me hoje a pôr o pé na praia, não vá ele inchar ou tomar-se de urticária. Quem precisar de mostrar que é um banhista que vá a banhos, eu fico-me pela esplanada a enxotar moscas, a ler jornais, a beber cafés e a rodar a cadeira para fugir ao sol. Olho o mar e começo a contar os dias que faltam para, contristado, deixar o lugar idílico a que chamam praia, lugar que o calendário deste mundo infeliz me impõe com a regularidade das estações. Nem uma aventura, mesmo metafísica, tenho para contar hoje neste pobre diário. Estes tempos fritam-me os neurónios, esfriam-me a coragem, e pouco mais consigo fazer do que balbuciar algumas palavras e deslocar-me, entre as sombras mortais que me rodeiam, com o ar desgastado de quem a vida abusou com trabalhos e sofrimentos, lutas e canseiras. Um banhista, mesmo da estirpe dos imortais como eu, não é de ferro. Estou cansado e, como o divino Ulisses, sonho com o regresso à pátria, que o malfadado Posídon não permite. Suspiro, se oiço o vozear das águas a bater nas areias. Quando chegarei a Ítaca, à minha doce ilha, pedaço de terra rodeada de calor por todos os lados?

Música para o fim-de-semana: Keith Jarrett - Koln Concert

Traduzo, aproximadamente, a partir daqui: “O jazz é fundamentalmente a celebração do aqui e agora. Os episódios memoráveis são quase sempre o fruto do milagre de um momento. O resultado de condições favoráveis marcadas por qualquer coisa de extraordinário apresentam-se num instante preciso e não de outro modo. O concerto de Colónia é, nesse sentido, emblemático. Naquela noite, Jarrett não estava nas melhores condições para fazer um concerto, e considerando a situação, seria melhor evitar gravar o que quer que fosse. ” Este preâmbulo serve para introduzir um dos momentos fundamentais da história do Jazz, aquele que ficou conhecido pelo Koln Concert, do pianista Keith Jarrett.

Este disco é daqueles que não pode faltar em casa de quem goste de jazz. Editado pela ECM, em 1975, ano da sua gravação na Koln Opera House, regista o concerto aí dado por Jarrett, nas condições acima descritas. O CD é composto por duas partes, sendo a segunda subdividida em três. O melhor é mesmo ouvir.

No vídeo, o Keith Jarrett trio interpreta uma das múltiplas versões de Autumn Leaves.



Keith Jarrett Trio - Autumn Leaves
Colocado por madafonka2

A Volta Portugal - VI Joaquim Agostinho

Joaquim Agostinho, o maior ciclista
português de todos os tempos.

A Volta a Portugal - V Marco Chagas

Marco Chagas correu pelo Águias de Alpiarça e pelo FC do Porto

A Volta Portugal - IV Fernando Mendes

Fernando Mendes um dos grandes nomes do ciclismo do Benfica.

A Volta a Portugal - III João Roque

João Roque um dos grandes nomes do Sporting
e o homem que descobriu Joaquim Agostinho

A Volta a Portugal - II Alves Barbosa


Um dos primeiros grandes nomes do ciclismo de que me lembro de ouvir falar. Corria pelo Sangalhos.

A Volta a Portugal - I José Maria Nicolau e Alfredo Trindade


José Maria Nicolau (Benfica) & Alfredo Trindade (Sporting) - Foram estes homens que fizeram por todo o país o nome dos dois clubes.

Paisagens Marítimas - X


09/08/07

Mármore - II. Pedras

Pedras,
corpos no fundo da serra.

Jazem mortos,
abrindo-se a quem os espera.

Micropoemas, Mármore (1989)

Diário de um banhista - IX

Chegado ao 12.º dia de estadia na praia questiono-me: serei um verdadeiro banhista? Terei o direito de escrever este diário? Esta interrogação não cai do céu aos trambolhões, não. Pelo contrário, há motivos empíricos que sustentam o dilema que me assoberba a razão. Quando tudo estava preparado para rumar em direcção à praia, não é que uma súbita angústia se apossa de mim e me faz dizer: vão, vão, sem mim. Cá os espero. E lá foram e eu fiquei dividido entre as cartas de Schiller e uma ida ao café. Acabei por escolher uma esplanada sobre o mar, onde li duas cartas sobre a educação estética da humanidade, bebi uma italiana – em sentido figurado, note-se – e olhei as águas do mar em profunda meditação metafísica.

Foi perante esta inclinação para fugir a sete pés da areia que o meu espírito se interrogou sobre a minha verdade enquanto banhista. Será que sou um banhista? Em desespero, recorri ao dicionário, o da Porto-Editora, passe a publicidade, e encontrei as seguintes definições de banhista: “1. pessoa que toma banho no mar, no rio, ou em piscinas; 2. pessoa em tratamento em local de águas medicinais”. Como se poderá ver pelas definições dadas, senti-me vítima de exclusão. Então eu que não estou em tratamento num local de águas medicinais, nem tomo banho no mar, no rio, ou em piscinas, nem sequer em albufeiras nem em lagos ou lagoas, não tenho direito ao nome de banhista?

Terei de suportar, neste mundo pós-moderno, séculos e séculos de preconceitos fundados na discriminação social e na divisão classista? A revolução francesa não trouxe a igualdade? Não foi para que todos fossemos banhistas que se cortaram tantas cabeças? Terão sido em vão tantos sacrifícios? Pobre Maria Antonieta, infeliz Robespierre. Nesta profunda angústia existencial, duvidando da minha própria essência de banhista, decido mergulhar mais fundo no dicionário e fazer uma pesquisa em «banho».

Aleluia, aleluia, eis a boa­-nova. Depois de cinco definições literais, denotativas, de banho, surge uma primeira definição figurada. A conotação salvar-me-á, pensei. Banho é “a acção de se impregnar de ou mergulhar em”. Quando vi «impregnar de», desconfiei. Nada de «impregnanços» e ainda por cima equívocos: impregnar de… Meus Deus, de que se impregnarão as pessoas que se impregnam de…? Mas este equívoco, insuportável quando se utiliza o vocábulo «impregnar», tem um carácter salvífico se aplicado a mergulhar em… Esta abertura de sentido mostra, afinal, que eu, aquele que não mergulha em mares, rios, piscinas, lagos, albufeiras e poços, posso (desculpem a cacofonia) ainda assim mergulhar em… e ostentar o glorioso epíteto de banhista.

A meditação leva-me mais longe e revela-me a essência da verdade. Enquanto todos os outros são banhistas de mar, ou de rio, ou de lagoa, ou do quer que seja, eu que não sou banhista de nada em particular, sou um banhista em geral. Pobres banhistas do mundo empírico, enroladas na materialidade das águas, o que sois vós, sombras, ao pé de mim? Eu sou o verdadeiro banhista, a essência de banhista reside em mim, como para Platão a essência do mundo sensível residia no mundo das ideias. Ora se eu sou não um banhista particular e empírico subjugado às especificidades e limitações sensíveis, mas a ideia veraz e imutável de banhista, então não há qualquer razão para a minha angústia. Estou salvo e este diário, de cuja legitimidade eu começava a desconfiar, encontra-se não só justificado de facto, mas também de direito. Ó pobres mortais, vós de banhistas apenas sois a sombra, enquanto eu, aquele que mergulha em…, é o único banhista digno desse nome. Mergulhem onde vos aprouver, que eu mesmo no café já estou imerso em… e nunca deixo, onde quer que esteja, de ser o banhista que sou. A angústia que de mim se apossou é apenas o sentimento de desprazer daquele que sabe o que é a verdade e se vê confrontado com as sombras ilusórias daquilo a que os pobres mortais, de pensamento errante, chamam realidade. Ora, passem bem.

Anglofilia e o caso Madeleine McCann

Há nas nossas elites actuais um tique parolo que as leva incensar tudo o que vem de Inglaterra. Mas se olharmos para as campanhas que os jornais ingleses fazem, a propósito do caso de Madeleine McCann, contra a Judiciária e agora contra a imprensa portuguesa, percebe-se que a idiotice é um bem universalmente distribuído e que os ingleses a armazenaram em quantidades suficientes para que nunca sintam falta dela. Assim como as nossas elites agora anglófilas.

O Portugal do "6 Balas"

Uma das colecções de “livrinhos” de aventuras do oeste editada pela Agência Portuguesa de Revistas era a 6 Balas, aliás já referida num post anterior. Se olharmos para a capa descobrimos uma realidade distinta da dos nossos dias. A referência ao preço mostra um país que acabou há 33 anos. O Continente e o Ultramar. O Ultramar era composto pelas colónias portuguesas de África, mas também por Macau e Timor. Ultramar o que está para além do mar. In illo tempore, não era indiferente dizer ultramar português ou colónias portuguesas. O regime de Salazar e Caetano não falava em colónias, mas em ultramar. Vincava a ilusória continuação de Portugal do Minho a Timor. Já a oposição falava em colónias, para sublinhar o carácter colonialista do regime. Ainda hoje se pode detectar a proveniência ideológica do falante pela maneira como se refere ao antigo império português.

Seja como for, colónia ou ultramar, o 6 Balas era distribuído por todo esse mundo. No Ultramar era mais caro, era o custo dos transportes e o preço da periferia. Ultramar ou colónias, Portugal não deixava de ser na Europa. O resto foi uma aventura cheia de equívocos e ilusões, aliás como a generalidade das aventuras coloniais europeias, algumas bem mais sórdidas que a nossa. Mas sobre tudo isso ainda se está demasiado perto para que a História possa falar com alguma imparcialidade.

Paisagens Marítimas - IX

08/08/07

Mármore - I. Branca cal

Branca cal
rasgada em cinza e sangue.

Caminhos antigos de vida exangue.

Micropoemas, Mármore (1989)

Diário de um banhista - VIII

Decisão e coragem são virtudes maiores de um banhista. A mim, porém, são qualidades que me falecem mal enfrento as águas. Saudoso de aventuras marítimas lá me dirigi para uma das muitas praias que por aqui há. Sugeri que fossemos a outra mais habitual. Perdi a votação. Muito vento, foi o que ouvi como justificação. Parece que aqui se vive numa democracia argumentativa, com direito a justificação dos actos e tudo. Lá fomos, armados de chapéu-de-sol, toalhas, cremes contra os ultravioletas e um livro que escondi entre o atoalhado.

Um banhista que não viva numa barraca tem de aliar à decisão e à coragem a perspicácia geográfica de um fundador de colónias. Como os antigos gregos que saíam da sua cidade natal e iam para a Anatólia ou para a Sicília em busca de território livre e, quando o encontravam, aí fundavam uma nova cidade, colónia da primeira e protegida pelos deuses desta, também os banhistas de chapéu-de-sol e toalha têm de espiar o território, descobrir clareiras, apossar-se com determinação de cada palmo de terreno, delimitar uns metros quadrados, se os houver, de areia, erguer um altar, fazer uma hecatombe, e depois… Bom, depois, mesmo que não haja necessidade de uma oposição determinada a novos colonizadores, é preciso vigiar as fronteiras e exibir o poderio da nova colónia. Como? Erguendo acrópoles de lona defendidas por muralhas de atoalhados turcos coloridos para ofuscar o adversário. Há quem use corta-ventos, mas faço parte de uma geração apostada em novas formas de defesa, mais imateriais e fundadas na vigilância electrónica e no uso de informação via satélite. Adoro planos tecnológicos.

Colónia fundada e defendida, dá-se início à função. Os colonizadores cansados da longa viagem começam a despir-se e exibem-se em roupa interior, com o estranho nome de fato-de-banho, como se alguém precisasse de um fato quando toma banho. Esfregam-se com cremes, esticam os peitos, verificam a consistência dos músculos, se são do sexo masculino acomodam aquilo que os faz ser o que são, se são do feminino tentam tapar os pêlos que sempre crescem onde não devem e que as fazem parecer o que não são. Depois, desatam a correr para a água, os mais decididos, ou avançam lentamente, os timoratos. É o que acontece comigo. Mal a água me cobre os pés, sinto uma dor como se os ossos se partissem.

É aqui que a decisão e a coragem se mostram a as virtudes maiores de um banhista. Respiro fundo, olho o sol e tomo uma decisão: para a Acrópole e já. Debaixo do chapéu-de-sol observo o movimento do universo, e o ir e vir das águas, oiço a restolhadas das crianças e o ganir dos cães de companhia, a maior parte nas respectivas acrópoles, enquanto os seus donos se espojam areia fora. Abro o livro, ponho os óculos de leitura e mergulho nas páginas batidas pelas areias trazidas pelo vento suave. Amanhã levarei tampões para os ouvidos. Para ler, preciso de silêncio.

Cansados de praia, desfazemos a colónia e voltamos à terra pátria. Um banhista não passa de um Sísifo.

Música às quartas - 12 Maria Bethânia - Mar de Sophia

Maria Bethânia faz parte de uma geração notável da chamada música popular brasileira, onde encontramos Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso, irmão da cantora. A voz é demasiado bem conhecida em Portugal para que seja necessário fazer qualquer tipo de consideração. Está apenas mais madura.

Neste CD, Mar de Sophia, de 2006, editado pela Discmedi, encontramos canções de Toquinho, Tom Jobim, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Carlos Drummond de Andrade, entre muitos outros.

Faixas: 1-Canto de Oxum; 2-Yemanjá Rainha do Mar / Beira – Mar; 3-Marinheiro Só / O Marujo Português; 4-Poema Azul; 5-Kirimurê; 6-Grão de Mar; 7-Quadrinha: o Mundo é Grande / Cirandas; 8-Debaixo d'água / Agora; 9-Memórias do Mar; 10-As Praias Desertas; 11-Dona do Raio / A Dona do Raio e do Vento; 12-Lágrima; 13-Noiva: Cantiga da Noiva / Floresta do Amazonas; 14-Portela: das Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de uma Noite; 15-Canto de Nana

No vídeo, quase só um áudio, a faixa 8 deste Mar de Sophia, numa sonoridade não habitual na cantora.


Paisagens Marítimas - VIII

07/08/07

Cesário Verde - VIII. A Forca

Já que adorar-me dizes que não podes,
Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é um peito dum Herodes,

Eu antes que encaneçam os meus bigodes
Ao meu mister de amar-te hei de pôr meta,
O coração mo diz – feroz profeta,
Que anões faz dos colossos lá de Rodes.

E a vida depurada no cadinho
Das eróticas dores do alvoroço,
Acabará na forca, num azinho,

Mas o que há-de apertar o meu pescoço
Em lugar de ser corda de bom linho
Será do teu cabelo um menos grosso.

Cesário Verde, Obra Poética Integral

De Cesário Verde a Mármore

Com “A Forca” acabou uma pequena série de poemas de Cesário Verde. Amanhã iniciar-se-á uma nova série de micropoemas, Mármore.

Diário de um banhista - VII

Continua a nortada, apesar da temperatura por aqui ter subido. Olho a praia sentado numa esplanada, vejo veraneantes infelizes a segurar chapéus, a correr atrás disto e daquilo, o vento a tudo empurra. As águas ainda estão bravias e a bandeira vermelha, imagino. Mais um dia sem por pé na areia.

Como mortal, este triste banhista submete-se aos imperativos do corpo. Há que satisfazer os impulsos homeostáticos. Triste sorte a dos humanos. E lá me desloco ao hipermercado, que não é assim tão hiper, mas enfim, se temos de comer…

Foi assim que me vi mergulhado num mar de pessoas, a ulular em torno de prateleiras e bancas, os olhos vorazes e as mãos como garras a encher cestos e carros, numa orgia de sacos de plástico, dinheiro de plástico, chinelos de plástico a sonhar comida de plástico. Alumiou-se então o cérebro e percebi, nesse instante, o sorriso de plástico do nosso primeiro-ministro, o Eng.º Sócrates. Numa democracia de sacos de plástico, num povo cada vez mais plastificado, quem melhor para dirigir a plastificação geral?

Vem uma pessoa a banhos para descobrir a essência da nação. Portugal é um país de plástico. Um dia até a areia será de plástico. É o plano tecnológico, cheio de inovações e projectos para desenvolver a pátria. Haja engenheiros, pensei enquanto passava o cartão no terminal da caixa. Recolho ao lar e oiço, ao fundo, o bater das ondas e o sopro do vento. Éolo continua indisposto, Posídon não está melhor. É duro ser um banhista numa pátria de marinheiros. Melhores dias virão.

Tempo de touradas

Verão é tempo de touradas. Embora não seja um aficionado encartado, não vá às praças ver corridas de touros, nunca deixei de gostar da Festa Brava, como se diz no Ribatejo. Quando havia apenas a televisão do Estado, as noites de quinta-feira eram dedicadas aos touros. Depois havia a corrida da RTP, sempre com grandes cartéis, como então se dizia e, julgo, ainda diz. A primeira corrida que vi foi na antiga Praça de Touros de Santarém. Na minha memória sobre esse mundo, há nomes como Luís Miguel da Veiga, José Mestre Baptista, Pedro Louceiro, João Branco Núncio, David Ribeiro Telles, há também a rivalidade entre os grupos de forcados de Montemor e de Santarém. Nas lides apeadas, recordo Diamantino Viseu e José Júlio. De Manuel dos Santos a imagem que tenho é mais débil, apesar de ele ter deixado de tourear apenas em 1972.

Como diria Pascal: há razões que a razão desconhece. Não consigo ser contra as touradas, pelo contrário. Contra certos movimentos que afirmam que a corrida de touros não é arte, nem cultura, a minha razão diz-me o contrário: a arte dos toureiros sustenta ainda uma longínqua cultura onde o homem domina a natureza, a besta que há em si e da qual o touro é um mero símbolo. As touradas, contrariamente ao que se pensa, são um combate à violência, a vitória do artificio sobre a força bruta.

Reprodução do quadro “Toros”, de 1933. Autor: Benjamin Palencia, pertença do Museu Reina Sofía.

Rititi – O Blogue Rosa Cueca

Continuemos em blogues no feminino. Depois do amável e delicado Miss Pearls, agora um que ostenta o desígnio da acidez. Rititi é O Blogue Rosa Cueca e nem sempre está para amabilidades e delicadezas. É assim a vida feita de multiplicidades. Há quem sonhe com o uno, eu prefiro o múltiplo. O Blogue Rosa Cueca, eis todo um programa, pertence a Rita Barata Silvério, adepta do Atlético de Madrid, seja lá isso o que for, e distingue-se por um português verrumante. Por exemplo, há uns dias que as mamas são tema e num post desaforado – adjectivo meu – de 2 de Agosto último reza assim: “Que fascínio é este dos gajos com as mamas? Lembranças da mãezinha, do quentinho do leite, do alimento grátis, do aconchego? Será que todos querem voltar ao útero? Até quando, santo deus, teremos que levar com essa obsessão com dois pedaços de carne? Quanto maiores, melhores, para quê? Acaso vão montar um talho, fazer delas uma almofada, forrar um sofá? Os peitos, as tetas, as mamas, cá por mim que os gajos não evoluíram assim tanto e estão um degrauzinho mais abaixo que nós lá na escala da humanidade.” E a humanidade, como se sabe, já ocupa uma subcave, de uma subcave, de uma subcave...

O melhor mesmo é clicar aqui e ir para o Rititi, que vos seja de bom proveito. Não o perco desde que o descobri.

Paisagens Marítimas - VII

06/08/07

Cesário Verde - VII. Frígida I

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singulizar beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

Cesário Verde, Obra Poética Integral

Diário de um banhista - VI

Frívolo banhista, quem te manda a ti tentar os deuses? Mal sabes tu que eles concedem aos mortais aquilo que estes mendigam. Então, não foste tu que ontem falaste em tempo cinzento, aragens frescas, ventos a cortar a face? Então, toma, aí o tens. Hoje levantei-me decidido a cumprir o meu estatuto de banhista, homem que corta as ondas, lobo-do-mar. Feitas as abluções matinais, tomado o pequeno-almoço, logo exclamei: para a praia. Olharam-me com comiseração. Vi estampado nas faces um juízo irónico sobre a minha sanidade mental, mas ninguém disse o que quer que fosse. Se é para ir à praia, então toca a andar. E lá se foi…

O pior foi sair do carro. Uma nortada das antigas. Não cortava a face, não, cortava o corpo todo, varria os banhistas da praia, levantava ondas de areia, acastelava as águas, semeava um reboliço que mais parecia um terreiro de feira corrido a varapau. Agora, vamos, sussurraram-me. Gaguejo, conto aquela história do anúncio da Sagres – ao mar, ao mar, ao mar; ao bar, ao bar, ao bar – mas ninguém acha graça. Para a praia, para a praia, exclamam, isto não é o Moledo, sugerem-me. A humanidade tem destas coisas.

Como quem paga uma promessa, ou como se fôssemos um cortejo de penitentes, lá marchámos em direcção ao santuário. Bandeira vermelha, alguns surfistas e uma solidão maior que o mundo. Está frio, comento. Olham-me com desprezo. Acrescento: ao menos vamos a casa vestir umas calças e uns corta-ventos. Sorriem. Qual o quê? Toca a marchar e lá me levam a dar uma volta pela ventania, até que alguém exclama: já chega. Chegou. Sinto risos nas minhas costas, olhares malévolos, desconfio de um pacto com Éolo. Gosto de vento, mas o vento norte podia ser menos frio e cortante, concedo. Amanhã, a saga do banhista continua, se tiver mesmo de ser… Que os deuses me protejam.

Colecção COW-BOY

Há um momento em que se dá a transição da leitura de histórias aos quadradinhos (livros de cow-boys) para histórias em texto corrido. Mais do que as aventuras da Enid Blyton, a colecção Cowboy, que apareceu em 1961, ainda antes de aprender a ler, fez essa mediação entre a literatura de raiz popular e as leituras eruditas. A colecção Cowboy era composta por livrinhos com 64 páginas, páginas pequenas, e 6 ilustrações. Li dezenas de historietas destas, não apenas da colecção referida, como de outras que apareceram a partir do sucesso desta. Lembro-me da colecção 6 Balas e Fúria de Bravos. Penso que ainda havia uma outra, mas já não me recordo do nome.

Eram histórias do oeste, marcadas por um problema fundamental: o da justiça. Havia sempre um cow-boy justiceiro, um bandido, por norma, pessoa influente, e uma rapariga que casava, quando casava, com o herói. Era um mundo simples o daqueles dias. Às vezes, confundimos a simplicidade com a bondade, mas não é a mesma coisa. Naqueles tempos, não havia professor que não franzisse o sobrolho se descobria um aluno a ler este tipo de literatura.

Paisagens Marítimas - VI

05/08/07

Cesário Verde - VI. Ó Áridas

Ó áridas Messalinas
não entreis no santuário,
transformareis em ruínas
o meu imenso sacrário!

Oh! a deusa das doçuras,
a mulher! eu a contemplo!
Vós tendes almas impuras,
não me profaneis o templo!

A mulher é ser sublime,
é conjunto de carinhos,
ela não propaga o crime,
em sentimentos mesquinhos.

Vós sois umas vis afrontas,
que nos dão falsos prazeres,
não sei se sois más se tontas,
mas sei que não sois mulheres!

Cesário Verde, Obra Poética Integral

Diário de um banhista - V

Domingo. Hoje não há saga do pobre banhista. Os banhos de mar, quer dizer, as visitas à praia, estão, cá por casa, proscritos nos dias que outrora eram os do Senhor. É questão de sanidade mental, oiço dizer. Concordo. Mas uma regra não é uma lei, e há que desconfiar: quando chegará o dia em que a regra dá lugar à malfadada excepção?

Curiosamente, hoje que me levantei tarde, deu-me um súbito desejo de ir à praia e fazer jus à minha condição de banhista ou de pré-banhista. Tempo cinzento, uma aragem fresca, ameaça de chuviscos. É em dias assim que o corpo me puxa para o mar. Sonho com praias vazias, o vento a bater as águas e a cortar a face, o sol oculto por nuvens escuras e o extenso areal libertado da presença humana. Mesmo para os humanos a humanidade é um problema. Hoje, domingo e tempo incerto, será possível?

Comprar os jornais, tomar café, dar um giro e ver as praias. Ingenuidade minha, a humanidade oferece-me o esplendor dos seus corpos sobre as areias, dentro de água, corpos que se agitam como se temessem a imobilidade eterna. Resigno-me e, melancólico, penso que ainda não será hoje que a excepção toma o lugar da regra. Vou fotografar naturezas mortas, materiais inúteis, lixos, a sombra projectada pela humanidade.

Balanço: oitavo dia junto ao mar, idas à praia = 1 (uma), banhos de mar = 0 (zero). Não há razão para queixas. Nada melhor que os tempos de praia.

Provedor de Justiça e professores titulares

Nascimento Rodrigues, Provedor de Justiça, criticou o concurso para professor titular. Sublinhou alguns aspectos injustos do concurso. Mas esse é apenas um aspecto do problema. Pior é aquilo que é seleccionado para se ser professor titular. Um atentado contra a qualidade da escola pública.

Colégio de D. Diogo de Sousa

Este colégio de Braga está agora nas bocas do mundo, devido às excelentes notas obtidas pelos seus alunos nos exames do 12.º ano. Ouvido pelo Público, o director do Colégio, Cândido de Sá, diz estar orgulhoso do trabalho excepcional dos alunos e fala de exigência, rigor e disciplina para obter estes resultados. O segredo, diz o director, é “o trabalho dos alunos e a competência dos professores”. Claro e distinto. Não foram precisos professores titulares, nem os devaneios da Prof.ª Lurdes Rodrigues e dos seus acólitos. Mas não será para evitar que isto aconteça no ensino público que trabalha, há muito e, com este governo, mais afincadamente, o Ministério da Educação?

Paisagens Marítimas - V

04/08/07

Cesário Verde - V. Lágrimas

Ela chorava e muito, aos cantos,
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos,
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,
Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos:
- “Tu pareces nascida na rajada,
“Tens despeitos raivosos, resolutos:

“Chora, chora, mulher arrenegada;
“Lacrimeja por esses aquedutos…
- “Quero um banho tomar de água salgada.”

Cesário Verde, Obra Poética Integral

Diário de um banhista - IV

É dura a vida de um banhista. Estava ontem muito descansado quando um telefonema lançou o pânico. Para amanhã, a visita de uma amiga. O mundo turva-se, isto de mulheres e praia conjuga-se com tal perfeição que já estava a ver-me arrastado, em pleno Sábado, imagine-se, para um areal pejado de corpos espojados pelo chão, alegres trinados das criancinhas – sim, sim, dessas mesmas que o divino Mestre dizia para deixarem ir até Ele, mas Ele, sábio que era, não ia à praia, mesmo aquilo no Jordão não foi um banho, mas um baptizado, leram bem, um baptizado e esse só acontece uma vez na vida, pois uma pessoa não anda sempre a mergulhar nas águas para lavar pecados, não haveria João Baptista que chegasse, e se querem lavar a alma que vão ao confessionário, não à praia –, a ver-me arrastado, dizia, para o espectáculo dos portugueses em roupa interior, há quem lhe chame fatos de banho, portugueses exuberantes, desejosos de mostrar o viço e a peitaça e o coxame e a celulite e o pneu. Era este programa audiovisual que já se desenhava no horizonte da pobre imaginação que me coube em sorte. A coisa foi de tal maneira impressiva que passei a noite a sonhar com praias cobertas de portugueses e eu entre eles a caminhar, como sonâmbulo, a exibir a tristeza da minha figura, metido nuns boxers vermelhos a que toda a gente teimava chamar calções de banho.

Quando me levantei, bem cedo e mal dormido, a coisa piorou: estava um céu azul e um sol esplendoroso. Ergui as mãos ao alto e disse Senhor tem piedade das pobres florestas, olha as ignições, ajuda este país malquisto, apieda-te da lavoura, das plantas e dos animais, manda nuvens e chuva e tempo fresco. Nada. Eis o verdadeiro sentido da derrelicção. Senti-me abandonado, desprezado, humilhado. É por estas e por outras que as pessoas deixam a Igreja, esquecem as missas, mandam ao diabo os mandamentos, salvo seja, t’arrenego, ó belzebu. A manhã caminha por aí fora, toma-se café, compra-se os jornais, e uma voz insidiosa diz ó tanto calor, está mesmo bom para ir à praia, respondo ó tanto calor, está mesmo bom para ficar em casa. E ali se fica naquela indecisão, vai não vai, vais tu, fico eu, e eis que aquela amiga, a que haveria de vir, liga a dizer que sim, que vem, mas não está disposta para a praia. Respiro fundo, agradeço ao Senhor, sento-me comovido. Talvez sejam incompreensíveis os caminhos do Altíssimo. Salvo in extremis. É dura a vida de um banhista.

Paisagens Marítimas - IV

03/08/07

Cesário Verde - IV. Noites Gélidas (Merina)

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada.

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com o seu passinho curto e em suas lãs forradas,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.

Cesário Verde, Obra Poética Integral

A esquerda do Dr. Júdice

O que está hoje a acontecer, (…), é o surgimento de novas gerações a liderar a esquerda europeia para as quais já não faz nenhum sentido (nem sequer afectivo) o marxismo, o socialismo e o messianismo angélico, para as quais a propriedade privada não é mais uma realidade condenada no futuro e só em programas de humor negro afirmariam em que o Estado produtor é a antecâmara da sociedade sem classes. (José Miguel Júdice, Público, 3 de Agosto)
-----
Em tudo isto, JM Júdice tem razão numa coisa: no surgimento de novas gerações de líderes de esquerda para os quais o marxismo não faz nenhum sentido. A grande questão, porém, é se essas lideranças são de esquerda. Julgo ser insuspeito relativamente ao marxismo. Passei entre 73/74 e 77 por organizações marxistas, das quais me afastei e disse adeus, definitivamente, à política partidária. A universidade e a filosofia, feitas posteriormente, já entrado nos 20 anos, mataram em mim qualquer resquício de marxismo. No entanto…

O marxismo é um guião inútil para a acção, mas tem virtualidades do ponto de vista teórico que devem ser meditadas. Essa meditação não implica a análise do real a partir do esquematismo marxista, mas implica detectar alguns elementos fundamentais que constituem o substrato ético do marxismo e que estão na base da análise que Marx faz da sociedade do seu tempo.

Este substrato ético pode determinar-se pelo valor da igualdade entre os homens e conformar-se num conjunto de imperativos que visam essa igualdade. O que a esquerda deve fazer não é abandonar o marxismo e uma certa eticidade que lhe é inerente, mas contrapô-los à visão liberal, num processo sem fim – isto é, sem comunismo – de equilíbrio e luta permanente. É isto que permitirá gerar sociedades equilibradas (onde as desigualdades são aceitáveis e sentidas como justas). O marxismo aqui não visa a utopia, mas é um auxiliar do consenso que faz com que as comunidades nacionais possam subsistir em certa harmonia, onde os homens que delas fazem parte continuem a afirmar que querem pertencer ao todo.

Aquilo que defendo não é o igualitarismo marxista-leninista, mas uma certa compreensão do Estado-nação como uma comunidade ao mesmo tempo baseado no consenso e no conflito. O conflito não é o caminho para a supressão da outra parte, como o comunismo o fez, mas a via do consenso comunitário. Aqui o pensamento marxista tem ainda fulgor suficiente para iluminar novas meditações que descubram novos caminhos para esse conflito que visa o consenso. É isto o papel da esquerda. Eu sei que para muitos isto é pouco, mas para mim é o suficiente, pois visa a justa medida, o meio-termo, que é essência da vida política, segundo Aristóteles.

A esquerda do dr. Júdice, aquela que desdenha – eu diria, que desconhece – o marxismo já não é esquerda. Por exemplo, não se pode confundir a praxis de Sócrates com a de Soares, mesmo quando este, acertadamente, decidiu pôr o socialismo na gaveta. Foi um ministro dele que fez o serviço nacional de saúde, por exemplo. Esta esquerda moderna de que fala Júdice não serve para nada, a não ser fazer aquilo que a direita gostaria de fazer e não tem coragem. Para que serve uma esquerda que faz exactamente aquilo que a direita gostaria de fazer? Para nada. Apenas acentua os desequilíbrios sociais e os factores de desagregação da comunidade política.

Em Portugal, esta esquerda moderna do dr. Júdice – leia-se: o socratismo – não teve pejo nenhum em entregar ao PCP e ao BE os mecanismos políticos que visam o equilíbrio social, deixando milhões de pessoas sem representação ou nas mãos de uma representação mais ou menos radical.

Cavaco e o estatuto dos jornalistas

O veto de Cavaco Silva veio mostrar que, apesar dos lamentos do próprio Cavaco Primeiro-ministro, o sistema de contrapesos é útil e deve funcionar. Manifestou ainda outra coisa: se as pessoas fazem a função, também a função não deixa de fazer as pessoas. Embora não fosse seu inimigo, Cavaco nunca expressou uma particular simpatia pelas liberdades. Foi tíbio no caso Charrua e noutros idênticos, mas agora foi claro e fez o que competia: defender a liberdade atacada no estatuto dos jornalistas. O cargo de Presidente tem um peso e esse peso é o da defesa da constituição e da liberdade. Cavaco fez apenas o seu dever. Não é pouco.

Diário de um banhista – III

Que venham as burkas, burkas afegãs, daquelas que vão da cabeça aos pés. Não, não me converti ao Islão, mas começo a compreendê-los. Hoje, ó dia nefasto, quando me levantei, tudo estava ensolarado, fazia calor, e lá me arrastaram do café em direcção à praia, não sem antes, ainda em casa, note-se, me besuntarem de cremes por causa dos ultravioletas. Ele são cremes para a cara, cremes para o corpo, protector 30 e 40, numa conversa cabalística que mais parecia as deambulações esotéricas do Fernando Pessoa. O creme cai, olho-me ao espelho, apetece-me ulular e fazer a dança da chuva. Sinto-me um pele-vermelha. Contenho-me, haja decoro.

Lá vou, cantando e rindo, levado, levado, sim... Quando chego, piso a areia, os pés formigam. Anoto – mentalmente, não vá alguém pensar que levo o portátil ou aquele caderninho de capas pretas onde registo os ditos infelizes que me ocorrem – anoto, dizia, bandeira verde, maré baixa, pouca gente. A coisa não está completamente insalubre. Não sou banhista de barraca e lá se pousa o saco e toca a caminhar à beira-mar. Parece que faz bem aos músculos das pernas e da barriga e também à circulação. Melhor que os rebuçados do Dr. Bayard para a rouquidão. Uma pessoa caminha, caminha, os pés dentro de água, a areia molhada e dura, a água que vai e vem, como se não fosse esse o seu destino, e lá vou eu olhando os circunstantes, homens, mulheres, crianças, o sol bate-me no pescoço, nas costas não, pois o pólo é coisa que não dispo – há que poupar a humanidade à minha miséria – e continuo a anotar tudo, mentalmente, e sinto-me inclinado, cada vez com mais intensidade, para o Islão. Que venham as burkas, para homens, mulheres e crianças, que escondam os tristes espectáculos que ali se me apresentam. Desespero da humanidade.

Ao menos, penso contristado, fosse obrigatório o uso de fatos de banho do princípio do século passado, elegantes e frívolos, mas a esconder o excesso de humanidade que há em todos nós, mais nuns de que em outros. É isto que este pobre banhista pensa enquanto anda, anda, para fazer bem aos músculos e à circulação e à rouquidão. Paro, melhor, paramos. Vão ao banho e eu fico a ver, a olhar gaivotas, a contar barcos, a sonhar com sereias e a descobrir baleias. É nesse momento que alcanço a utilidade universal da burka, esse achado maior da humanidade, supremo conceito onde a igualdade se realiza e nos torna a todos menos infelizes.

Que coisa mais adorável é a praia.

Música para o fim-de-semana: Manuel Cardoso - Requiem

Para este fim-de-semana um CD de Manuel Cardoso. A música do Renascimento português tem vindo, nos últimos anos, a ser reavaliada e descoberta a nível internacional. E aquilo que se tem descoberto é de estarmos perante não uma música de segunda ordem, mas de uma “escola” de elevada qualidade musical, a ombrear com a música europeia da época.

Manuel Cardoso, nascido em Lisboa, em 1566, é a principal figura da música renascentista portuguesa. Cardoso foi um carmelita e formado em música coral e litúrgica. Teve como patrono D. João IV, rei e músico (intérprete e compositor).

O CD apresenta o Requiem para 6 vozes, editado em 2004, pela Gimell. Interpreta o The Tallis Scholars, dirigido por Peter Phillips.

Não se encontraram vídeos disponíveis, infelizmente.

Jornal Torrejano, 3 de Agosto de 2007

On-line está a edição semanal do Jornal Torrejano. Na primeira página, há referência a um primeiro balanço dos fogos florestais, o ano mais calmo desde 2000. Referência ainda para o festival de folclore, em Alcanena.

Na opinião, Jorge Salgado Simões continua os seus Paralelos inusitados, Miguel Sentieiro escreve O triângulo perfeito, Carlos Nuno, Os caciques, A. Pinto Correia, Para acabar de vez com a subserviência e este blogger, Professores titulares.

O Jornal Torrejano on-line vai de férias e só regressa a 7 de Setembro. Quem puder que leia em papel e este blogger-cronista também está de férias croniqueiras.

Paisagens Marítimas - III

02/08/07

Cesário Verde - III. Sardenta

Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada,
Tens o linfáctico aspecto
Duma camélia melada.

Cesário Verde, Obra Poética Integral

The Tallis Scholars sings Palestrina

Já que falei em Giovanni Pierluigi da Palestrina, aqui fica um pequeno vídeo com música do compositor, na interpretação do excelente The Tallis Scholars.

Diário de um banhista - II

Continua a minha aventura no reino de Posídon. Hoje levantei-me cedo, olhei para o céu, um sol esplendoroso, fiquei em pânico. Será hoje? Uma volta por aqui e por ali, visita ao blogue, o primeiro post do dia. Propícios, os deuses cobrem o céu de nuvens. Respiro mais facilmente. O tempo melhora a olhos vistos, penso. Pego nas Metamorfoses, de Ovídio, acabadas de sair, na excelente colecção da Cotovia, em tradução de Paulo Farmhouse Alberto. Perco-me nas transformações. Ingénuo, ingénuo que eu sou. Os deuses são caprichosos, mas enviam-nos sinais. Metamorfoses não de humanos em aves ou vacas, mas transformações do tempo. O que tinha amanhecido ensolarado metamorfoseara-se em nuvens escuras e densas, mas nada neste mundo mutável é seguro. As nuvens dissiparam-se e lá veio o sol. Não tardou muito para me perguntarem, insidiosamente, se não ia à praia, a emoção tomou conta de mim. Fiz-me despercebido. Prefiro o Ovídio, mas calei-me. Lá foram pisar a areia e tomar banhos de sol e mar. Fiquei nas Metamorfoses e na música de Giovanni Pierluigi da Palestrina. Lá fora o silêncio deixa vir até mim o marulhar do mar. Adoro a praia.

António Arnaut - 2

Eis a natureza da gente que tomou conta do PS. Não é que eu tenha particular afeição pelo termo «camarada», mas não pertenço à congregação. Compreendo a dor de António Arnaut, é uma questão de fidelidade e de autenticidade. De novo, a entrevista à Visão, de 26 de Julho.

O PS do seu tempo está muito calado…

Alguns estão afastados, mas o Alegre, às vezes, levanta a sua voz. Eu ando por aí, na rua, no autocarro, falo com as pessoas. E elas tratam-me à maneira antiga, chamam-me camarada… Você sabe que às vezes ligo para o partido e me tratam por senhor doutor e professor?! Há tempos, irritei-me e disse: «Mas ouça lá, eu não estou a ligar para o PS?! Estou? Então trate-me por camarada!» A telefonista até rejubilou, mas disse-me: «Sabe, eles agora querem ser todos tratados por doutor e professor…»

-------

Deve ser a execução do plano tecnológico. Não haverá por lá ninguém que queira ser tratado por engenheiro?