31/12/09

O livro do entardecer - o fim do ano

chegou o fim do ano
vem adornado de metáforas
e um véu cobre-lhe os cabelos

enrugado transpira de cansaço
e procura na noite uma cama
onde verá a eternidade

um sono leve como o dos pássaros
desejam-lhe os homens
enquanto bebem champanhe
e devoram passas

entre bocejos e libações
o ano prepara-se para dormir
não sabe se tem um destino
ou se as cinzas são a luz
que lhe resta ao partir

Do saudável e do patológico



Não é a questão de saber se a homossexualidade é uma doença que me interessa (ver aqui e aqui). O que é interessante neste tipo de debate público é o papel da saúde e da doença, esses obscuros conceitos que atormentam os nossos sonhos mais agradáveis. Há, certamente, definições técnicas para o que é um estado patológico. A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem uma classifcação internacional de doenças, que definirá a doença segundos critérios técnico-científicos. A questão, porém, é outra. Do ponto de vista da natureza em geral, não existem estados patológicos. Os processos naturais sucedem-se uns aos outros e, de um ponto de vista global, é indiferente que eu vença um determinado vírus ou que esse vírus me mate.

A doença, ou os estados patológicos, é assim uma questão antropológica, um problema do homem. Por isso, a doença e a saúde são sobre-investidos com os nossos preconceitos e aspirações sociais e definidos segundo critérios políticos (os critérios técnicos da OMS são claramente critérios políticos, se consideraramos que, hoje em dia nas sociedades modernas, só são politicamente aceitáveis os critérios definidos de forma técnico-científica), os quais representam esses mesmos preconceitos e aspirações. Se o critério do saudável e do patológico teve um papel fundamental na instituição dos asilos psiquiátricos, por exemplo, ele não desapareceu de então para cá. Continuamos a assistir a uma intensificação da intervenção social fundada nessa separação. Num tempo em que a dominação técnica sobre a natureza humana, nomeadamente através da descodificação do ADN, se tornou avassaladora, a definição do saudável e do patológico vai ser um dos campo essenciais da nossa vida em comunidade, isto é, da nossa vida política.

Retomando a questão do início, a definição da homossexualidade como uma não patologia é tão política como a definição contrária, aquela que a propunha como uma doença, apenas os preconceitos que estribam uma ou outra decisão são diferentes. É evidente que os médicos psiquiatras referidos nos links mais acima jamais reconhecerão que a sua posição é fruto de um preconceito. Jamais um preconceito se reconhece enquanto tal, é esta uma das suas facetas. O que a humildade nos aconselharia seria então reconhecer que há diferentes tipos de preconceitos, e uns são mais úteis em determinado momento social, ou que estão mais de acordo com o espírito da época, do que outros. Contrariamente ao que se possa pensar, este tipo de pronunciamento técnico-científico não é apenas uma forma de luta contra um preconceito em desacordo com o Zeitgeist, é também uma manifestação, de natrueza não consciente, de um sintoma de mal-estar com o novo preconceito. Onde se encontra esse sintoma? Na necessidade de lhe dar, ao novo preconceito, uma fundamentação técnico-científica, tornando-o aos olhos da opinião pública, pouco versada na revisibilidade da ciência, uma aura de verdade definitiva e absoluta.

30/12/09

Libreria Beta - Sevilla



Já há uns anos que não dava um salto a Sevilha, a minha cidade preferida na Península Ibérica, depois de Lisboa, claro. Passei lá duas noites e três dias, como agora se diz. Nunca parou de chover, a não ser hoje quando saí. Os espanhóis convenceram-me definitivamente. Faça chuva ou sol, frio ou calor, as ruas estão cheias de gente, bem como os bares e restaurantes. Há uma grande alegria em viver e um prazer enorme em ser espanhol (eu sei que noutros lados dispensam esta última parte).

Aproveitando a desculpa das chuvas, às vezes bem intensas, lá me meti pelas livrarias dentro. Descobri esta, Libreria Beta. Onde? Num antigo teatro. As fotos (retiradas da Internet) mostram o palco (ao fundo, estão os clássicos da literatura greco-latina, espanhola e universal). Na outra foto vê-se a antiga plateia (do lado esquerdo estão as estantes dedicadas à filosofia, bem recheadas de livros, quase sempre traduções em castelhano). Avista-se também o balcão, todo ele dedicado aos livros de bolso, onde encontramos quase de tudo a preços bem suportáveis. Apesar da Libreria Beta pertencer à maior cadeia de livrarias de Sevilha (existindo também noutras cidades), recomenda-se esta na Calle Sierpes, 25. Um espaço muito agradável e onde se pode respirar.

27/12/09

Descanso

Por motivos de força menor, mas mesmo assim de força, este blogue só volta à vida, se tudo correr bem, lá para o último dia do ano.

26/12/09

O livro do entardecer 8

tivera um corpo e seria poeta
escreveria sob o efeito
dos perfumes da noite
e o meu ânimo treparia a escarpa
que conduz ao lugar
onde o medo nunca dorme

um relâmpago levou-me o temor
e com ele a carne que dizemos corpo

vagueio assim por florestas de pedra
sento-me no portal onde avisto o mar
e por vezes oiço o meu nome

ao virar-me o deserto espera por mim

John Gray - A Ilusão do Progresso



A ilusão do progresso foi, algumas vezes, benigna. Inspirou alguns avanços sociais genuínos, como a abolição da tortura nos processos judiciais. (Ironicamente, como refiro no Capítulo 15, alguns liberais americanos argumentam, agora, a favor da sua reintrodução.) Mesmo assim, acredito que ela [a ilusão do progresso] se tornou perniciosa. Qualquer que tenha sido o seu papel no passado, a crença no progresso tornou-se num mecanismo de auto-decepção que apenas serve para bloquear a percepção dos males que vêm com o crescimento do conhecimento. Em contraste, os mitos da religião são cifras que contém a verdade da condição humana. [John Gray (2004). Heresies Against Progress and Other Illusions. London: Granta Books, pp. 5]
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Como o próprio Gray esclarece, a questão da ilusão na crença do progresso refere-se ao progresso ético e político da humanidade. A ciência e a técnica progridem efectivamente. Há um acumular de conhecimentos científicos e um acréscimo do poder técnico da humanidade. Não há, concomitantemente a este progresso do conhecimento da natureza e dos mecanismos sociais, uma transformação da natureza humana. A realidade humana mantém-se inalterada bem como a sua conduta moral e política. A grande ilusão dos séculos XIX e XX residiu na ideia de uma transformação política da qualidade moral dos homens. Tanto o marxismo como o liberalismo, esses dois irmãos inimigos nascidos das entranhas do Iluminismo, propagaram essa fé, com os resultados que se conhecem.

Parece-me, no entanto, que está a emergir, de forma insidiosa mas nem por isso menos ameaçadora, uma nova abordagem do problema. Gray refere que a crença no progresso [moral e político] bloqueia a percepção dos males que provêm do acréscimo do conhecimento científico, com o poder desmesurado que esse conhecimento confere à capacidade de violência da humanidade. Mas o que se está a passar é algo mais perigoso. O próprio mal moral, e posteriormente o mal político, irão ser colonizados pela ciência. Não uma ciência do mal, mas uma ciência dos comportamentos patológicos. O mal não derivará da liberdade humana e da responsabilidade do agente (uma perspectiva de claro pendor cristão, coisa fora de moda, como tudo o que tenha a ver com a liberdade), mas de uma falta de sanidade.

Ao transformar o mal numa questão de saúde pública, está a legitimar-se a intervenção da ciência. Isso começou já há muito, nomeadamente nas áreas da psicologia e da psiquiatria. A psicanálise, por exemplo, é um momento singularmente importante na escalada da transformação do mal moral em problema de saúde mental ou comportamental. Mas como já está a descobrir-se, este tipo de intervenção é apenas o prenúncio de uma intervenção mais radical e decisiva. A lobotomização, que valeu o único prémio Nobel a um cientista português, é um antepassado remoto do que se prepara. A chave reside no domíno do código genético. Mais tarde ou mais cedo, emergirão projectos de determinação da estrutura genética que, por exemplo, determina comportamentos violentos ou comportamentos socialmente reprováveis.

A tentação subliminar é então a seguinte: fazer com a ciência aquilo que a política não conseguiu: gerar por intervenção científica um progresso moral e político da humanidade. Isso já pode ser pensado e aquilo que é pensado, mais tarde ou mais cedo, é tentado. Por muito rudimentar que ainda seja o saber genético, é já posível surpreender no Zeitgeist a ideia de uma metamorfose da espécie humana. Esta metamorfose não é, nem de perto nem de longe, semelhante àquela que as doutrinas místicas, ou mesmo a filosofia platónica, propõem. Estas são conversões pessoais radicadas na auto-descoberta e num processo de libertação pessoal do egoísmo. Aquilo que  está em jogo, porém, não tem este carácter benigno. Visa uma intervenção na própria natureza humana para a alterar radicalmente, visa o desenho efectivo de uma pós-humanidade, numa espécie que se liberta definitivamente do mito da criação, e dos que lhe estão associados, para uma espécie auto-concebida, isto é, auto-produzida, auto-criada.

25/12/09

Fra Angélico - Natividad


24/12/09

Bom Natal



Esta é a noite em que o absoluto se torna relativo, o infinito devém finito, o divino nasce humano. Um bom Natal para todos os que passem por aqui.

O livro do entardecer 7 - soneto

de que vale a vida
se o perigo não espreitar na clareira
e a floresta for apenas um mar
de palavras secas e exaustas

poucas foram as coisas que amei
uma casa branca a vertigem ante o abismo
o galope das horas na torre da igreja
a promessa de neve nunca cumprida

amei-as no terror que traziam
ou no segredo que crescia
mal o jardineiro as podava para mim –

cortava imagens limpava visões
gritava contra a glória da manhã –
até florescerem na primavera

La Nativité du Seigneur: La vierge et l'enfant (Olivier Latry o orgue)


Botticelli - Natividad Mística (1500)


23/12/09

O livro do entardecer 6 – a casa onde vi a infância

perdi a casa onde vi a infância
levou-a o tempo
com a sua mão de seda
e um gesto de bandeiras ao vento

nada sei do braço magoado
ou das ervas que me inundaram
de luz os olhos
– esqueci e é tudo

apenas vejo uma espada de âmbar
sobre a cabeça de um centauro
e um fulgor de aço na lâmina
que por mim então passou

Olivier Messiaen - Dieu parmi nous


Maestro de la Natividad del Louvre - The Nativity


22/12/09

O livro do entardecer 5

nada sei do firmamento
dessa terra de cristal
onde sonhei nuvens e astros
princesas ao deus-dará

órfão caminho sem destino
e aspiro o pó
naquele lugar onde ouvi
o último bêbado cantar

na vastidão que nos coube
sento-me à espera
do canto da cotovia
ou de um deus que virá

Chris Potter's "Underground" - Ultrahang [2009]


A catolicidade de Shakespeare



Um dia William Shakespeare, talvez farto da sua Stratford natal, decidiu ir dar uma curva. Estávamos no ano de 1585. Só apareceu, em Londres, em 1592. Um mistério de sete anos na vida do bom William. Aventa-se, agora, a hipótese de se ter dirigido a Roma como cripto-católico, num tempo em que os ares não estavam lá muito respiráveis, em Inglaterra, para os papistas. Seja como for, aquilo que fez depois, no âmbito literário, bem pode ser considerado um verdadeiro milagre. Mistérios destes só podem ser resolvidos, porém, por métodos drásticos. Perguntem ao Shakespeare, talvez ele responda. Pelo twitter, claro. Com ida ou não a Roma, ele tornou-se mesmo católico, isto é, verdadeiramente universal.

Clássicos da Política



Clássicos da Política é uma colecção onde se reúnem algumas das obras fundamentais do pensamento político ocidental. Iniciativa conjunta da Temas e Debates e do Círculo de Leitores, estas obras apresentam um tradução cuidada e uma introdução útil. Foram publicadas, desde 2008, os seguintes volumes: O Político, de Platão; Tratado da República, de Cícero; O Príncipe, de Maquiavel; Tratado Político, de Espinosa; Testamento Político, de Richelieu; Contrato Social, de Rousseau; O que é o Terceiro Estado, de Sieyes; Defesa da Sociedade Natural, de Burke. Estão previstos 18 de Brumário, de Marx, e O Estado Comercial Fechado, de Fichte. Outra colecção de textos políticos a não perder. Julgo que alguns destes textos se encontram já esgotados.

Piero della Francesca - La Natividad (1472)


21/12/09

O livro do entardecer 4 - a tarde

entardece
carros passam na avenida
e ao longe avisto a noiva
que um dia abandonei no altar

traz um vestido branco – seda e organdi
na mão o ramo de flor de laranjeira
e uma sombra pela face anuncia
a noite que não chegará

olho as mãos vazias
de onde fugiu a noiva que esqueci
e tenho medo que a tarde acabe
e uma súbita presença de pedra
me abra a porta pela qual nunca saí

Alfred Schnittke - Polka from Gogol Suite - Play Gidon Kremer and Kremerata Baltica


Edmund Husserl - Da pura teoria



Desta atitude universal, mas mítico-prática, destaca-se nitidamente, agora, a atitude “teorética”, não-prática em qualquer dos sentidos anteriores, a do θαυμάζειν a que as figuras maiores do primeiro período culminante da Filosofia Grega, Platão e Aristóteles, reconduzem a origem da Filosofia. Apodera-se dos homens o fervor de uma consideração e de um conhecimento do mundo que se afasta de todo e qualquer interesse prático e que, no círculo fechado das suas actividades cognitivas e nos tempos a elas consagrados, nada mais almeja e alcança que pura teoria. Por outras palavras, o homem torna-se um espectador descomprometido, sinóptico, do mundo, torna-se um filósofo; ou melhor: a partir daí, a sua vida torna-se receptiva apenas às motivações que são possíveis nesta atitude, motivações para novos objectivos de pensamento e métodos, através dos quais se realiza, por fim, a Filosofia e o próprio homem se realiza enquanto filósofo. [Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia]

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Com este texto de Husserl, retorno a um problema recorrente. O da preeminência da prática. Esta preeminência é sublinhada na célebre, e várias vezes citada aqui, 11.ª tese de Marx ad Feuerbach: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.» A perspectiva marxiana da supremacia da prática sobre a teoria é oposta à tradição teorética do Ocidente. O que há de especificamente europeu e ocidental é a consideração teorética e desinteressada da realidade. Foi isso que fez a Filosofia e permitiu o nascimento das ciências particulares. A perspectiva marxiana, por muito que possa surpreender, representa um retrocesso às dimensões prático-míticas; uma desconsideração da razão na sua dimensão teórica, por submissão ao critério da práxis, e a abertura novamento para formas míticas de pensamento, consubstanciadas agora na figura da utopia, que o chamado comunismo representa exemplarmente. Mas não é o contraponto a Marx que me interessa, mas compreendê-lo como um exemplo de uma atitude que se tem vindo a tornar dominante entre aqueles que, no Ocidente, são anti-marxistas e que dominam a vida política, económica e social. A submissão de toda a vida social a imperativos puramente práticos, a própria submissão da universidade aos interesses empresariais, representa um grave perigo para a subsistência da Europa e do Ocidente, tal como eles se constituíram a partir da Grécia clássica. É isto que está a tornar a Europa permeável a formas prático-míticas de pensamento, formas que não se reconhecem na tradição teorético-contemplativa ocidental. Por exemplo, a leitura do conflito entre a cultura islâmica e a cultura ocidental. Quando apenas se vê a questão do véu ou a dos minaretes suíços, não se percebe a dimensão do conflito, que é um conflito entre duas intencionalidades para a existência da humanidade. É aqui que está o problema e é aqui que é preciso discuti-lo.

Biblioteca de Teoria Política



Em 2008 surgiu a Biblioteca de Teoria Política no catálogo das Edições 70. O livro inaugural, salvo erro, foi A Razão das Nações, Reflexões sobre a Democracia na Europa, de Pierre Manent. É, porém, em 2009 que o catálogo ganha um peso decisivo com a edição de três autores fundamentais. Friedrich Hayek, de quem se publicou O Caminho da Servidão; Léo Strauss, de quem se publicou Direito Natural e História. Robert Nozick, de quem se publicou Anarquia, Estado e Utopia. Todas as obras merecem leitura e estudo atento por quem se interessa pelo fenómeno político. Seja na perspectiva do politólogo (horrível vocábulo), seja para esclarecimento (isto é mesmo um desejo) da acção do militante político, seja, como no nosso caso, na perspectiva do contemplativo, isto é, da filosofia. Fica-se a aguardar, com muita expectativa, o futuro desta colecção. Amanhã falaremos de uma outra colecção, e de outra editora importante de textos políticos.

20/12/09

O problema das compras



Não fora o facto de na pré-história as mulheres passarem o dia a recolher comida de qualidade para alimentar a família e os homens a planear e a matar as suas presas, hoje homens e mulheres fariam compras de formas diferentes do que fazem, com os conflitos conhecidos. Informa-nos o i online, ao dar conta de um estudo da Universidade de Michigan. Veja-se a informação que os prestimosos cientistas decidiram partilhar connosco, a qual enlevados agradecemos: «as mulheres podem passar horas e horas dentro das lojas à procura do vestido perfeito porque a sua preocupação pré-histórica sempre foi com a qualidade da comida, enquanto os homens decidem avançar sobre o que querem comprar, tal como avançavam sobre o animal que queriam matar e, depois de cumprida a tarefa, regressavam a casa.» Vale a pena comentar?

19/12/09

O livro do entardecer 3 - pensamento de uma jovem mulher

que viesse o tempo
e nele como uma oração na noite
a suave tempestade que quebra o corpo
e inclina a alma

esperariam demais os seus dedos
receava
enquanto olhava o vermelho do horizonte
e via uma árvore de marfim
caminhando ao seu encontro

a rosa que tolhia a luz
abriu-se para anunciar a madrugada
e um espinho abandonado cravou-se
no lugar que fora o seu coração

Anouar Brahem - Kashf!


Um mastro de cem metros



De uma coisa podemos estar certos, a criatividade dos presidentes de câmara é um bem inesgotável. No A Origem das Espécies descubro a história, aliás de contornos absolutamente psicanalíticos, do presidente da câmara de Paredes. Anda desejoso de construir um mastro para hastear a bandeira da pátria, presume-se. Até aqui a narrativa é compreensível. Onde não se consegue acompanhar o raciocínio do genial pastor do povo de Paredes (não se pense que esta referência é brejeira e ao gosto popular. Deriva, pelo contrário, da mais clássica das literaturas, da Ilíada de Homero, onde os reis helenos, e acima de todos eles o poderoso Agamémnon, são apodados, a cada momento, de pastores de povos) é na altura e preço da coisa. Cem metros e um milhão de euros. Que sonhos, para além da entrada garantida no Guiness, ou pesadelos atormentarão este nosso eleito autárquico? Talvez não falte por aí gente que gostasse de ter um mastro de cem metros.

18/12/09

O livro do entardecer 2 - último dia de aulas

rufam os tambores na solidão
e o dia vindo há pouco
tinge-se pelas gruas do anoitecer

ali vão a marchar
vermelhos de excitação os tamborileiros
e nas ébrias paredes da ignorância
reflectem-se faces como pedras
a quem pelas costas arrancaram o coração

Gianfrancesco Malipiero: Grottesco, per piccola Orchestra (1917)


Por enquanto...



Como se sabe, a passagem de Santana Lopes pelo cargo de primeiro-ministro, bem como pela presidência da Câmara de Lisboa, saldou-se por um enorme flop. No entanto, os tempos não o fizeram desaparecer. A governação de Sócrates e o estado a que o PSD se reduziu, a própria veleidade do jovem e liberal Passos Coelho, permitem-lhe, a Santana, imaginar-se ainda com um futuro. O Público titula mesmo Santana está de regresso mas afasta candidatura... por enquanto. Por enquanto. Como os tempos estão, Santana ainda um dia destes aparece como uma pessoa credível a quem se possa entregar o país.

Sem-abrigo



Está ali, 30 anos depois de o ter conhecido. Na altura, dava-lhe talvez uns sessenta anos. Era um excesso, certamente motivado pela juventude do meu olhar. Naqueles tempos, era a personagem mais altiva que conhecia, talvez nunca tivesse conhecido ninguém, mesmo depois, tão altivo, supinamente arrogante, de uma pesporrência sem fim. Usava a frieza do olhar azul para colocar o mundo à distância, combinava a estranheza do saber que possuía com o sangue de família para esmagar pessoas como se fossem mosquitos. Os anos passaram, e essa personagem desapareceu, aliás rapidamente, do meu horizonte. Não que a tenha esquecido. Talvez a sua estratégia fosse a de ficar na memória dos outros pelo seu comportamento. Voltei a vê-la há dias. Discurso ainda articulado, mas tudo o resto se tinha desvanecido. Numa conferência, lá estava ela na assistência, agora porém para mendigar uns minutos para falar, mesmo desse lugar exógeno. Até aquele momento nunca tinha conhecido um verdadeiro sem-abrigo.

Jornal Torrejano, 18 de Dezembro de 2009



On-line encontra-se a edição semanal do Jornal Torrejano.

17/12/09

O livro do entardecer 1

sou uma árvore na distância
e a luz que me atormenta
um ramo solto
pela desmedida do vento

espero o fim do inverno
para que voltem as folhas
e no silêncio do céu
as trémulas flores anunciem
a tristeza de um fruto

Andersen, Rypdal, Stockhausen & Héral - Hyperborean


Gente descomplexada



Sócrates quer avançar com cinco regiões. Para perceber a futura evolução da coisa, leia-se com atenção isto: «A independência do arquipélago não está, para já, nos seus planos, salvaguardou, “não porque tenha qualquer complexo em relação a isso ou algum sentimento em relação à República”, mas porque “neste momento não há condições”. Mesmo assim, disse, “a Madeira já funciona como estado regional, embora não gostem”.» Dir-se-á que Alberto João Jardim é habitual neste tipo de coisas, nomeadamente quando se discute o orçamento. Mas o problema é mesmo esse. Mais cinco senhores, cada um com a sua ilha. Não faltará gente sem qualquer complexo.

16/12/09

Uma aventura



Uma aventura esta história do Magalhães. Quando a coisa surgiu com o nome do navegador, pensou-se que seria uma espécie de metáfora. Assim como o navegador português dirigiu a primeira viagem de circum-navegação, também as crianças portuguesas circum-navegarão a globalização embarcadas no pequeno computador, a caravela dos nossos dias. Mas não. O que está em causa é apenas a dimensão da aventura, entendendo-se esta como uma acção da qual não se sabe ou não se mediu as consequências. Agora, não bastava já a história dos dinheiros da acção social escolar,  a União Europeia está convencida que a adjudição directa dos Magalhães à JP Sá Couto é ilegal. Isto é grave.

Mas nesta aventura, a gravidade maior não está aí, na questão económica. Está no próprio projecto. Distribuir gratuitamente, ou quase, os computadores é um péssimo sinal. Fazê-lo sem que as escolas tenham, de facto, possibilidade de tirar partido do instrumento é ainda pior. O projecto mereceria todo o aplauso se significasse o equipamento de todas as escolas do 1.º ciclo com o Magalhães (um por aluno) e ligação de banda larga à Internet. Ao que se deveria adicionar uma programação da utilização didáctica do computador, nas várias áreas curriculares, e a construção de materiais didácticos a serem explorados em sala de aula. Por exemplo, seria muito interessante que os alunos do 1.º ano aprendessem a escrever ao mesmo tempo no computador e manualmente (embora isso devesse ser primeiro testado em pequenos grupos e só depois generalizado).

Os Magalhães, tal como foram distribuídos, não têm utilidade educativa, pois não existem nas escolas e os alunos que os têm não podem ser obrigados a levá-los para a sala de aula, promoveram, mais uma vez, o sentimento de dependência do estado bondoso que tudo oferece, e desincentivaram o esforço de alunos e famílias. Apenas serviram como propaganda do governo. Uma aventura, cara ainda por cima.

15/12/09

Arvo Pärt - Miserere Part I


Do que não se vê nas imagens



Estas imagens do YouTube são piores, para aquilo que se pretende, que as do Público, mas este não permite a incorporação no blogue dos seus vídeos. Sobre a inaceitável e idiota agressão a Berlusconi já tudo foi dito. Comentar o assunto seria um anacronismo. Mas, ao ver as imagens do Público e depois outras no YouTube, houve uma coisa que me chamou a atenção. Quando lemos uma imagem olhamos para o que a compõe, os elementos que a estruturam, o jogo que entretecem, etc. Mas há sempre qualquer coisa que a enquadra e que raramente é visível. São as imagens arquetípicas, aquelas que uma cultura produziu (por exemplo, a imagem do Che ou da Marilyn Monroe), que dão o horizonte da nossa leitura. As imagens de Berlusconi agredido e a sangrar são enquadradas por dois arquétipos poderosos. O primeiro, enquanto Berlusconi está fora do carro ou é metido à força lá dentro, é a do Conde Drácula. A boca ensanguentada prefigura uma potência infernal, o vampiro, que acaba de espalhar mais um pouco de mal sobre a terra. Mas a estes breves segundos, seguem-se outros diametralmente opostos. Berlusconi recostado no carro, a face rasgada, é uma refiguração de Cristo martirizado, vítima sacrificial, o protótipo do redentor. Aquilo que não se vê é o que permite a leitura da imagem visível. Provávelmente é assim, de ambas as maneiras e em conformidade com o coração de cada um, que o vêm os italianos.

Não foi um acaso


Escola usou alunos para vender cartões de crédito. Por cada cartão, a escola ganhava 20 euros. "Escândalo" acabou após denúncia. Contrariamente ao que se possa pensar, esta escola não agiu contra o espírito do tempo, pelo contrário. Quando se ouve falar de autonomia da escola, a escola aberta à comunidade, etc., é disto que se está a falar e não de outra coisa. Veja-se a reacção benevolente do Ministério da Educação, para não dizer reacção incomodada com a ordem que se sentiu forçada a dar. Mas, para além desta benevolência ministerial, anote-se a concordância, segundo o jornal, da própria Associação de Pais. A retórica sobre autonomia das escolas visa isto, que as escolas se auto-financiem e que se criem condições para o Estado deixar de suportar o encargo. Desengane-se quem pensar que a autonomia das escolas se realciona com o poder de decisão pedagógica e a responsabilidade pelos resultados dos alunos. Isto não foi um acidente, mas apenas um modelo que foi aplicado demasiado depressa.

14/12/09

Gregorio Allegri - "Miserere" à neuf voix


Banha da cobra


Sócrates

Há notícias que me deixam siderado. O i online, a propósito de um best-seller sobre um miúdo autista, noticia que Einstein, Mozart, Sócrates, Stanley Kubrik e Andy Warhol, além de geniais, tinham outra coisa em comum: todos sofriam da síndrome de Asperger, uma forma de autismo que afecta a interacção social. Diga-se de passagem que é relativamente modesto. Há outras listagens que incluem Newton, Wittgenstein e Darwin. Admito que se possa especular sobre Einstein ou Wittgenstein, gente bem conhecida e pública no século XX, para não falar de Kubrik ou de Warhol. Admito mesmo que há suficientes indícios sobre Darwin e Newton, indícios que permitiriam um diagnóstico, o qual, felizmente, nunca foi feito. Mas sobre Sócrates, de quem praticamente nada se sabe, que sentido faz este tipo de inclusão numa lista de nobres deficientes? Não seria antes Platão que sofreria de síndrome de asperger? Ou não teria Platão, genial proto-romancista, desenhado uma figura do mestre que permitisse à posteridade este tipo de exercícios? O que há de interessante nisto é a transformação, no caso de Sócrates, de uma atitude deliberada numa patologia. Ele não agiu como agiu, ele não enfrentou a hipocrisia pública como o fez, não aceitou o julgamento público e a morte, por convicção. O coitado sofria de síndrome de asperger e como não sabia, preferiu morrer por respeito à lei da cidade, em vez de aceitar a ajuda dos amigos e pôr-se a milhas, até que os ânimos se acalmassem. Isto é o que se chama transformar a ciência em banha da cobra.

Uma figura de referência



Quantas vezes os socialistas se terão já arrependido por ter nomeado Guilherme de Oliveira Martins para o Tribunal de Contas? Agora a instituição dirigida por este socialista criticou, por falta de transparência, o modelo de financiamento do cheque-dentista. Seja como for, reconheça-se que Guilherme de Oliveira Martins foi uma óptima escolha. Sócrates, neste caso, estava certíssimo, ao contrário da oposição. Por outro lado, o escolhido, devido à sua acção exemplarmente isenta, vai construindo uma imagem de grande prestígio e é, neste momento, uma das poucas figuras do mundo da política que é olhado com admiração e respeito. É já uma figura de referência. Merece ir mais longe na política do que o mero cargo de ministro, que já ocupou.

Alan Kardec



Ao Benfica parece que não basta Jesus, ele mesmo. Precisa de mais. Agora acaba de contratar Alan Kardec. Talvez por o mestre estar em greve de milagres, como se viu em Olhão, os dirigentes encarnados voltaram-se para o espiritismo (sim, Alan Kardec tem o nome de um dos inventores do espiritismo). Talvez os defuntos comuniquem aos vivos o segredo das vitórias, pois estes, os vivos, já nem sabem o que isso é.

Por falar em espírito, este contínuo e infindável ruído - refiro-me às milhões de contratações que o clube faz ou podia fazer - que envolve o Benfica é capaz de não predispor o espírito da equipa da melhor maneira. Mas o melhor é mesmo pedir ao Kardec que comunique com o outro mundo para ver se alguém tem opinião espirituosa, ou mesmo espiritual, sobre o assunto.

Projecto Protágoras



Na próxima 4.ª feira, no âmbito do Projecto Protágoras, de Platão, o Professor Trindade Santos proferirá uma conferência sobre Progresso Social e Moral no Protágoras de Platão. Seguir-se-á uma mesa-redonda onde Olga Pombo, João Constâncio, Manuel Rodrigues, António Bracinha Vieira e este blogger dialogarão sobre a conferência do Prof. Trindade Santos e o próprio Protágoras, de Platão. Apresentarão ainda os textos que escreveram sobre este, ou a partir deste, diálogo platónico, textos a editar em livro no próximo ano.

A reflexão deste blogger incide sobre o laço que une os indivíduos numa comunidade política, a partir da leitura do mito presente no texto de Platão e em contraposição com as perspectivas contratualistas modernas e contemporâneas, explorando a natureza ficcional tanto do mito platónico como das teorias do contrato social. A reflexão concluirá com dois excursos. O primeiro, sobre história, razão, comunidade política e imortalidade. O segundo, sobre o papel da educação na fabricação da comunidade política.

13/12/09

Um excesso desnecessário



Apesar de estar na moda dizer mal das crónicas de Vasco Pulido Valente, elas são do melhor que por aí se escreve. Boa literatura e boa análise política. A de hoje, no Público, é presumidamente certeira relativamente ao destino do PSD. No entanto, começa com um equívoco. Diz VPV: «A ironia é que o PSD não se entende com o Portugal moderno ou "modernizado" que ele próprio, no "cavaquismo", criou.» Isto é assim apenas na aparência. Quem criou o tal Portugal moderno não foi o dr. Cavaco nem as luminárias do PSD da altura. Quem criou essa espécie de coisa foram os dinheiros que a CEE enviou para cá com a estulta ideia de nos tornar europeus civilizados. O dr. Cavaco, bem como o eng.º Guterres e a posteridade inominável, a única coisa que fizeram, e mesmo assim com clara deficiência, foi distribuir o dinheiro proveniente do trabalho dos outros. No fundo, tudo afazeres de contabilistas ou de tesoureiros. O Portugal moderno não foi criado por nós, foi-nos imposto de fora, o que faz toda a diferença. Se fosse criado por um governo nosso, sustentado nos nossos e no nosso trabalho, as coisas seriam agora diferentes. Mas como foi receita de médico estrangeiro, não há, por cá, quem acredite um grama que seja na veleidade de se ser moderno. VPV excedeu-se desnecessariamente na bondade relativamente ao cavaquismo.

O meu gene leninista



O filósofo Slavoj Zizek conta, no seu livro Violência (Relógio d'Água, 2009), uma anedota corrente na antiga União Soviética entre estudantes. «A anedota é a seguinte: perguntaram a Marx, a Engels e a Lenine se preferiam ter uma esposa ou uma amante. Como seria de esperar, Marx, bastante conservador no que diz respeito à esfera privada, respondeu: "Uma esposa!" - ao passo que Engels, com o seu lado de bon vivant, optou por declarar que preferia uma amante. Para surpresa geral, a resposta de Lenine foi: "Gostava de ter as duas!" Porquê? Haveria nele um traço de jouisseur decadente, que a sua austera imagem de revolucionário dissimularia? De maneira nenhuma. Eis a explicação de Lenine: "É que assim podia dizer à minha mulher que vou ter com a minha amante, e à minha amante que tenho de ir ter com a minha mulher..." - "E ia para onde, então?" - "Para um lugar isolado, para estudar, estudar e estudar!"» Esta história sublinhava a verdadeira fixação do dirigente da Revolução de Outubro no estudo. Conta ainda Zizek que, aquando da catástrofe de 1914, Lenine refugiou-se na Suíça, onde em vez de se entregar a um desbragado activismo, se entreteve a estudar, estudar, estudar Hegel. E não pensem que se entreve com a Filosofia do Direito, ou com os ensaios sobre a História ou sequer com a Fenomenologia do Espírito, com a sua análise do Terror na Revolução Francesa ou a dialéctica do senhor e do escravo. Dedicou-se ao estudo daquilo que Hegel escreveu de mais abstracto, mais árido e mais difícil, a Ciência da Lógica. Mas o que gostava de sublinhar é a diferença desta atitude contemplativa de Lenine relativamente à conhecidíssima 11.ª tese de Marx ad Feuerbach: «Até agora os filósofos têm interpretado o mundo de diversas maneiras, mas o que verdadeiramente importa é transformá-lo!» Como é que um contemplativo, um homem que afinal estava interessadíssimo em interpretar o mundo, se tornou no responsável por um dos maiores acontecimentos históricos do século XX? Contrariamente ao que se pensa, não são aqueles que fazem muitas coisas que mudam o curso dos acontecimentos. Quantas mudanças históricas dependem do simples acto de estar quieto e pensar. Mas mesmo que não mude o mundo, aquele que pensa tem uma vantagem sobre os activistas, não cria desordem pela sua acção.

Pat Metheny and Michael Brecker - What do you want - 2003


Insuportável



Casas-abrigo para mulheres e crianças não chegam para as encomendas. O que se passa em Portugal é absolutamente insuportável. A violência dentro da família ou das relações ditas amorosas é uma doença social gravíssima, mas também um sintoma claro sobre a masculinidade desses heróis que batem desalmadamente e matam pessoas mais frágeis. Chegou a altura de o assunto ser tratado de outra forma. Em primeiro lugar, há que reconhecer que ainda está longe de ser um estigma social bater numa mulher, pelo contrário. Muitas vezes o herói em vez de ser visto na cobardia que o constitui é olhado com aprovação, quando não mesmo com respeito. Sempre é um "homem que sabe pôr as gajas no devido lugar". Este saber é especialmente apreciado nos lugares mais inusitados. Não se pense que isto se passa apenas nos sectores deprimidos socialmente ou sem instrução. Não passa. Em segundo lugar, a lei deve endurecer, mas mais do que isso a acção da justiça deve ser revista. Muitas vezes, e apesar dos alertas que a vítima vai emitindo, só quando ela é assassinada é que a polícia e a o aparelho judicial intervêm. Há que tornar insustentável esta cultura degradante e cobarde. No fundo, uma cultura de homens que não gostam de mulheres.

12/12/09

Brad Mehldau - Paranoid Android


Não me parece que...



O empate com o Marítimo, a derrota em Braga, a forma medrosa como empatou em Alvalade e o empate hoje com o último, Olhanense (2-2), é o outro lado das goleadas. Este Benfica ainda está longe de ser consistente. As goleadas podem encher de ilusões muitos adeptos do clube, mas estes pontos perdidos são demasiado significativos para que não se olhem bem de frente. O campeonato não vai obviamente ficar definido no próximo domingo, mas Benfica e Porto vão mostrar o que efectivamente valem. Como benfiquista, ainda que quase desisteressado do futebol, estou longe de estar tranquilo.

Cavaco e o TGV



Pequena é a memória dos homens, ou a sua capacidade para interpretar os factos. O TGV está para José Sócrates como as auto-estradas estiveram para Cavaco Silva primeiro-ministro. Na altura, muitas foram as vozes que se levantaram contra a política do alcatrão, salientando que ela não representaria uma aposta no futuro, mas serviria apenas para alimentar um país fundado na mão-de-obra barata. Cavaco, porém, não hesitou e fez o que pôde em matéria de vias rodoviárias. Agora, quando os socialistas apostam em obras como o TGV ou o aeroporto, Cavaco acha que iniciativas dos jovens em matéria de inovação são mais importantes que o TGV. Como a quase totalidade dos portugueses, não faço a mínima ideia se a construção do TGV é uma boa solução para a economia do país ou não. Pela complexidade das variáveis em jogo, tenho dúvidas, inclusive, que alguém o saiba, efectivamente. O que julgo, todavia, interessante é esta nova posição de Cavaco. Mas se ele governasse, qual seria a sua opção? Alguém duvida?

Um pequeno Blair



Houve um tempo em que simpatizei com a figura de Tony Blair. Não tanto pela sua terceira via, escorada nas perspectivas do sociólogo Anthony Giddens, mas por me parecer alguém determinado. Percebi mesmo que, de um certo ponto de vista, ela não tinha outra solução senão seguir George W. Bush na questão iraquiana. Hoje, porém, haveria da sua parte grandeza em não tentar ocultar o enorme desastre a que a política seguida no Iraque conduziu. Aquilo que diz, porém, mostra pouca capacidade crítica. Perante o flop da história das armas de destruição massiva, continuar a defender a bondada da invasão. Seja por que razão for, parece-me irresponsabilidade excessiva e sintoma de uma enorme pequenez política.

Esbjörn Svensson Trio - Behind The Yashmak (live)


11/12/09

Jornal Torrejano, 11 de Dezembro de 2009



On-line encontra-se a edição semanal do Jornal Torrejano.

Um equívoco semântico


Aquilo a que hoje se chama universidade só por equívoco tem esse nome. Segundo os dirigentes empresariais, os jovens licenciados correspondem cada vez mais ao que as empresas procuram. Merece ser lido o artigo do i. Ele é, apesar da aparência em contrário, uma demonstração da tese que se defende aqui. A universidade, contrariamente ao que se pensa, não deve servir para fornecer mão-de-obra, mesmo que de carácter cognitivo, às empresas. A universidade significa o lugar onde se educa alguém para se elevar a um ponto de vista universal. A preparação para o mercado de trabalho, para as empresas, é apenas uma preparação particular para funções particulares, mesmo que estas sejam amplas. Não se está aqui a argumentar a favor do desaparecimento dessa formação. Pelo contrário, essa formação deve ser ainda mais ampla, abranger mais pessoas e ter melhor qualidade. Não lhe chamemos, porém, aquilo que ela não é. A universidade, por seu lado, deveria encolher drasticamente, concentrando-se nas actividades de produção de saber. As universidades não se devem aproximar das empresas, devem mesmo fugir delas a sete pés, caso não queiram perverter o seu sentido. No entanto, as instituições de ensino que preparam jovens para serem engenheiros, economistas, gestores, designers, etc. devem estar em íntima relação com o mundo empresarial.  Chamar-lhes, porém, universidades é um lamentável equívoco semântico, cujas consequências serão a destruição do que resta da verdadeira universidade. É o que acontece no mundo ocidental, onde a universidade, aquela que ainda trata de questões universais, se rege agora pelo particularismo das empresas privadas. Um dia destes, aquilo a que se chama universidade não será mais do que uma espécie de prolongamento das antigas escolas industriais e comerciais.

Já não se pode ter calor



Numa escola americana, a James Madison, um contínuo (agora em Portugal acho que se chamam técnicos operacionais de educação) encontrou duas professores nuas numa sala de aula. Nuas, mesmo, sem uma roupinha a cobrir a pele. Anda tudo intrigado com o motivo de elas terem confundido a sala de aula com o velho éden, o paraíso da nossa mãe Eva e do nosso pai Adão. Ignorantes, as autoridades instauraram um processo disciplinar por atentado ao pudor. Meu Deus, já ninguém pode ter calor.

Como destruir o que resta



Perante a gravíssima crise que atinge o país, o partido do governo não sabe o que mais há-de inventar para fingir que faz política. Agora lá volta o sacrossanto tema da regionalização. Esta gente não descansa enquanto não esfrangalhar o que resta do país e o entregar a 5 clones dos senhores Jardim e César. Eu que, em princípio, seria favorável à regionalização, como forma de governar e ordenar o país e fazer frente às assimetrias existentes, quando olho as experiências das regiões autónomas e as dos municípios, só posso esperar o pior. Tendo em consideração a cultura geral da classe política e a debilidade estrutural da Justiça, a introdução das regiões será a a vitória daqueles que acham que a política é um meio para enriquecer e dos que desejam, mais ou menos inconscientemente, rasgar a velha unidade nacional. As regiões serão apenas um primeiro passo, uma espécie de supermucipalização do país, mas aberta a porta, quem sabe o que por ela vai entrar?

10/12/09

Sebald - o meu avô



Hoje, porém, releio sempre as histórias do almanaque, provavelmente porque, como observou Benjamim, uma marca da sua perfeição é que facilmente as esquecemos. Mas não foi somente a etérea fugacidade da prosa de Hebel o que, ao cabo de um par de semanas, me levou a querer saber se o barbeiro de Segringen e o alfaiate de Pensa ainda existiam; o que me faz voltar constantemente a Hebel é também o facto, inteiramente fortuito, de o meu avô, cuja linguagem em muitos aspectos fazia lembrar a do amigo da casa, ter o hábito de comprar todos os anos um calendário Kempten no qual anotava, a lápis de tinta, os dias da festa onomástica de parentes e amigos, a primeira geada, o primeiro nevão, a irrupção do föhn, as trovoadas, granizos e similares, bem como, nas páginas para notas, uma qualquer receita para o fabrico de vermute ou de aguardente de genciana. [W. G. Sebald (2009). O Caminhante Solitário. Lisboa: Editorial Teorema, pp. 12]
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Volto a um dos meus autores preferidos, W. G. Sebald. Esta minha preferência talvez se deva à partilha do seu culto pela memória. Educado filosoficamente numa tradição que vai da reminiscência platónica à rememoração de Ricoeur, passando pela memória como presente do passado, de Agostinho de Hipona, com o passar dos anos, e o crescimento inusitado das memórias, fui ficando cada vez mais sensível aos exercícios mnésicos na literatura, chegando a pensar, muitas vezes, que toda a literatura não é outra coisa senão um imenso exercício memorial.

O meu culto de Sebald, porém, não se deve apenas a essa atenção comum à memória. Deve-se à destreza como ele convoca e entrelaça as memórias para narrar uma história, uma história que, sendo-me absolutamente estranha, parece ser a minha história. Neste pequeno excerto, Sebald começa por falar nas histórias de almanaque de Johann Peter Hebel (1760-1826), um dos grandes escritores de língua alemã, famoso precisamente por essas histórias, mas logo deriva para a memória do seu avô, dos seus gestos e da forma como regulava o mundo.

Eu, que nunca tive um avô, pois morreram ambos muitos anos antes de eu nascer, vejo-me a recordar esse avô que não tive, e recordo-me dele a anotar o seu calendário, talvez uma vulgar agenda, a anotar os dias de aniversário de filhos e netos, os acontecimentos climáticos significativos, o dia que nevou, ou aquele em que o fogo devastou o pinhal à saída da aldeia. Chego a vê-lo a consultar as suas anotações sobre receitas de aguardentes e licores. Sei bem que toda esta recordação é imaginada, mas só em parte. Conheci várias pessoas que faziam algumas daquelas coisas que regulavam a vida do avô de Sebald, mas a história que o escritor me conta permitiu sintetizá-las numa única figura, aquela que nunca conheci, o meu avô. E este meu avô comove-me, como se tivesse existido e me tivesse passeado e mostrado as estrelas e os campos. Um grande escritor é aquele que me faz ter o avô que nunca tive.

René Girard - Imitação



Não há nada ou quase nada, nos comportamentos humanos, que não seja aprendido, e toda a aprendizagem reenvia para a imitação. Se os homens, de repente, cessassem de imitar, todas as formas culturais desapareceriam. Os neurologistas lembram-nos frquentemente que o cérebro é uma enorme máquina de imitar. [Girard, René (1978). Des Choses Cachées Depuis la Fundation du Monde. Éditions Grasset & Fasquele, pp. 15]
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Eis o conceito central da aprendizagem, imitação. Daí a importância do mestre, a quem discípulo deve imitar, até ao dia que, capacitado, pode "matá-lo" e tornar-se assim em mestre e exemplo a imitar. O conceito de mimésis, já em Aristóteles, era um conceito complexo. A real imitação nunca é uma reprodução mecânica do modelo. Este, porém, constitui-se no conteúdo noemático, para falar à maneira da fenomenologia, que a intencionalidade do discípulo visa. Esta intencionalidade implica uma configuração complexa, de gestos e atitudes, para lograr a imitação, implica um trabalho árduo para alcançar o modelo. Este trabalho, porém, tem uma função surpreendentemente libertadora. Aquele que trabalha arduamente para imitar vai descobrir as suas próprias forças e o seu próprio caminho. Assim, se libertará do modelo.

Aquilo que no ensino de hoje se propõe, porém, é o contrário disto. A imitação, e o concomitante trabalho árduo, foram banidos. A criança e o jovem não devem imitar. Terão de ser criativos e de ser inovadores. Não há maior armadilha que se possa fazer a uma criança ou a um jovem que exigir que ele seja criativo e inovador (fazem-me rir as idiotices - repito para que não restem dúvidas, idiotices - que se encontram em muitos documentos de avaliação de alunos, paridos por escolas, professores e organismos do ministério, sobre avaliar criatividades e espíritos de inovação). A criatividade e a inovação só podem nascer após um longo processo mimético. Como pode um sistema de ensino que baniu os modelos a imitar, que desprezou o acto mimético e o complexo trabalho que ele requer, exigir, com tamanha falta de pudor e de probidade intelectual, que crianças e jovens sejam criativos e inovadores?

09/12/09

Uma estranha pátria



O desafio. Ser racional e desconfiar da razão. Viver racionalmente na conduta social e privadamente descobrir os limites dessa racionalidade. Será a razão filha da política? Resultará essa faculdade do exercício do cálculo na relação com o outro e da necessidade de agir segundo a justa medida? Será ela um produto da praxis? A tradição ocidental pensou o homem como animal racional. Nietzsche pensou-o como uma ponte entre o animal e o sobre-homem. Mas se o homem é uma ponte, que coisa nele fará com que seja essa ponte. Não a condição animal, pois essa é uma das margens. Resta a conclusão: a razão é uma ponte. As pontes ligam o aquém e o além. O aquém da razão todos conhecemos, são os afectos, as emoções, as pulsões. Mas o que será o além da razão? O que será a sobre-razão? Para além da ponte está a não ponte. A sobre-razão só pode ser uma não-razão. Qual o território dessa não-razão? A infra-razão, o aquém da razão, tem por território a necessidade natural, físico-biológica, a razão habita o território da necessidade social, pois não é ela a filha da praxis política? À sobre-razão resta-lhe um estranho território, o da liberdade. Onde cessam as necessidades naturais e a sociais, começa o país da liberdade. A razão ainda é uma prisão para aquele que se quer aventurar nessa estranha pátria. Não basta, para ser livre, desconstruir as estratégias do corpo como pensou Platão e a tradição ocidental com ele. Não basta opor a razão ao corpo, o espírito à matéria. Não basta sequer perorar contra os dualismos, cartesianos ou outros. O corpo encerra a razão, a razão encerra a liberdade. A sobre-razão talvez seja a faculdade de abandonar ambos os cativeiros. Mas como será possível uma sobre-crítica dessa sobre-razão que lhe assinale os direitos e os limites? Talvez o território da liberdade não tenha limites e o que penetra nele esteja libertado de direitos e de deveres.

A mistificação das competências



Graças à leitora Alice N, tive acesso a este documento. É uma interessante e reflexão e desmontagem do chamado ensino por competências. Torna evidente os interesses que se escondem na retórica educativa do ensino por competências e mostram como esse ensino desvaloriza o saber e promove a desigualdade social, ao contrário do que o discurso político anuncia.

O papel essencial de Cassandra



Eu sei que da parte do governo, e mesmo da oposição, se olha com complacência as tomadas de posição de Medina Carreira. São diatribes de um velho que perdeu o contacto com a realidade, pensa-se, dentro da classe política, para aliviar o peso da consciência, se ainda há algum. No entanto, aquilo que o antigo ministro das Finanças diz faz todo o sentido (ler aqui ou aqui). A crítica radical que faz ao programa Novas Oportunidades só peca por ser demasiado benévola. Aquilo é, para o país, bem pior do que uma simples «aldrabice» e uma simples «trafulhice». Também a crítica que faz à educação é demasiado benevolente. A educação não está uma «miséria». A educação está pervertida. Os princípios que a orientam estão completamente errados. Também a crítica ao parlamento e aos parlamentares, apesar da contundência, acaba por ser suave. O problema não é só o facto de ninguém, com medo do chefe partidário, não miar. O problema central é que os representantes deixaram efectivamente de representar os representados. Isto significa que a democracia representativa está morta. Seja como for, o papel de Cassandra que Medina Carreira decidiu vestir é social e politicamente fundamental, pese o desagrado das múltiplas Clitmnestras que por aí há.

Escola e Sociedade - a Deriva da Razão



No âmbito do Fórum Cidadania, organização conjunta da Escola Secundária Maria Lamas e da CIVILIS, este blogger proferiu a 23 de Novembro pp., a conferência com o título Escola e Sociedade - a Deriva da Razão. Publica-se aqui e agora o abstract. Quando o texto desenvolvido da conferência estiver disponível on-line, far-se-á daqui o respectivo link.

Discute-se a sociedade que se está a construir a partir de uma visão da relação entre escola e sociedade. Tomando como ponto de partida uma descrição fenomenológica dos valores dos alunos relativamente à probidade do desempenho escolar, faz-se uma descrição das figuras sociais dominantes na sociedade portuguesa actual – a esperteza sem regras morais e cívicas, o desânimo e fuga dos melhores, a lamentação dos altos responsáveis. Assim caracterizada a sociedade, argumenta-se criticamente a ideologia da escola aberta à comunidade, nomeadamente a visão da escola como continuidade da família, a sua permeabilidade aos valores e sub-culturas locais, e o imiscuir, na instituição, dos poderes fácticos estranhos ao ethos escolar. Argumenta-se, depois, a necessidade de caracterizar a escola como espaço público fechado. Parte-se de um argumento de Michael Walzer sobre a escola japonesa do pós-guerra e de uma descrição fenomenológica da axiologia escolar, para defender que a escola deve ser esse espaço público fechado devido às características específicas da instituição (um lugar onde menores e maiores se encontram para os primeiros se elevarem à universalidade da razão) e à necessidade de preservar o currículo a transmitir da influência dos interesses privados, sejam familiares ou de natureza económica, social e política. Por fim, propor-se-á as linhas gerais de uma política conservadora de resistência e insistência que vise conservar o papel primordial da razão perante a deriva niilista actual.

08/12/09

Alexandre del Valle - Eurabismo e a morte do pai



Segundo Bat Ye'Or, o eurabismo ambiciona libertar a Europa cristã das suas bases judaicas e respectivas raízes bíblicas. Assim como os nazis queriam arianizar o cristianismo e os islâmicos quiseram palestinizá-lo, assim como determinadas igrejas do Médio Oriente pretenderam criar uma espécie de síntese islamo-cristã, assim também estará a dar-se - afirma Bat Ye'Or - uma islamização do cristianismo por via da palestinização. Trata-se de uma estratégia teo-geopolítica partilhada por personalidades como René Guenon, que sonhava, como certes nazis viriam a sonhar, com a possibilidade de fazer regressar às fontes um ocidente em declínio, islamizando a Europa e cristianizando o islão, movimento que designava por regresso salvífico ao oriente. Assim, e ainda segundo Bat Ye'Or, a propensão que diversos dirigentes europeus eurabianos - de que são exemplo, nomeadamente Jacques Chirac e José Luis Zapatero - mostram ter para a glorificação do passado arabe e islâmico da Europa, e a corte que fazem às nações mais radicalmente inimigas de Israel, são indícios de uma atitude mais ou menos consciente de rejeição do pai hebreu, ou seja, da origem fundamentalmente judaica da civilização cristã. [Alexandre del Vale (2009). A Islamização da Europa. Porto: Civilização Editora, pp. 41]

Conspirações


Portugal aqueceu 1,2 graus nas últimas décadas e vive fenómenos extremos como chuvadas intensas, ondas de calor e vagas de frio prolongadas. A responsabilidade deste incremento da temperatura é, segundo Adérito Serrão, presidente do Instituto de Meteorologia (IM), da acção humana, nomeadamente das consequências da revolução industrial, que intensificou as emissões de dióxido de carbono.

O mais curioso nesta história do aquecimento global é a emergência de teses negacionistas. Aparentam ser um exercício da razão crítica e lançam a confusão entre o senso comum destituído de capacidade analítica e de informação. No fundo, são exercícios próximos daqueles que negam o holocausto dos judeus. Muitas vezes os defensores destes teses negacionistas são os mesmos. Tentam denunciar estranhas conspirações que moldam as teses do holocausto e do aquecmento global, mas na verdade quando se começa a puxar o fio dé ambos os negacionismos encontramos interesses políticos comuns na sua origem. Quem defende a inexistência do holocausto de judeus na II Grande Guerra? Quem tem petróleo para vender e provocar mais emissões de CO2? Como se vê, é fácil montar uma nova teoria da conspiração.

07/12/09

Um pensamento falacioso



A extraordinária centralização e concentração de capital, a formação de gigantescos monopólios que, isoladamente ou em aliança, dominam ramos inteiros da produção, do comércio e serviços e das finanças, os próprios mecanismos de regulação internacional do capitalismo, são expressão de reais processos de socialização que mostram a necessidade do socialismo, como solução racional necessária à desumana anarquia e concorrência capitalistas. A solução dos grandes problemas que afectam toda a Humanidade, a começar pelo problema da paz, mas também os problemas dos recursos naturais, da energia, do ambiente, da pobreza e outros, exige a utilização de métodos racionais de planeamento inerentes ao socialismo." [Resolução Política do XVIII Congresso do PCP, aprovada em 1 Dez 2008]
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No post anterior tinha escrito que nem sempre se pode estar em desacordo com o PCP. Referia-me à crítica que o partido faz à mercantilização do suposto direito de poluir. Mas, ao olhar para os comentários dos leitores à notícia do Público sobre o assunto, deparo-me com este excerto de um documento do PCP. E logo encontro matéria onde esse acordo desaparece de imediato.

1. Não se compreende a ligação lógica entre "A extraordinária centralização e concentração de capital, a formação de gigantescos monopólios que, isoladamente ou em aliança, dominam ramos inteiros da produção, do comércio e serviços e das finanças, os próprios mecanismos de regulação internacional do capitalismo são expressão de reais processos de socialização" e "que mostram a necessidade do socialismo, como solução racional necessária à desumana anarquia e concorrência capitalistas". Estamos, antes do mais, perante a denominada falácia do falso dilema. Dá-se a entender, de forma falaciosa, que só há dois pólos de escolha. Se um gera uma situação crítica, então deveremos optar pelo o outro. Isto é falso, do ponto de vista lógico. Mas não estamos apenas perante a falácia do falso dilema, estamos perante uma outra falácia denominada non sequitur, que se refere aos casos onde, num argumento, a conclusão não se pode deduzir das premissas. Mesmo que a premissa seja verdadeira, não há conexão entre o que ela diz e aquilo que se afirma na conclusão. Da situação actual do capitalismo, por exemplo, não posso deduzir a necessidade do socialismo, como o faz o texto do PCP.

2. Mas o desacordo não é apenas lógico. É também ontológico e metodológico. Os métodos racionais de planeamento já foram testados no chamado socialismo real. O resultado foi desastroso. O potencial de criatividade humana foi abafado, a capacidade de gerar produtos para a satisfação das necessidades e desejos dos homens era mínimo, a liberdade era inexistente. Depois, neste tipo de pensamento há uma presunção desmedida, a presunção de que a razão planificadora consegue calcular tudo o que é necessário à vida dos homens. O capitalismo é, do ponto de vista económico, muito mais eficaz que o socialismo planificador. Só que esse capitalismo terá de ser regulado e não deve ocupar as áreas da vida social que não sejam económicas. Esta crítica ao capitalismo não visa a sua destruição, mas pô-lo ao serviço dos homens e limitar os aspectos mais insociáveis do egoísmo que lhe é inerente.

3. Voltando à questão ambiental, assunto do post anterior, não se pode afirmar que os problemas ambientais produzidos pela economia capitalista tenham por solução "a utilização de métodos racionais de planeamento inerentes ao socialismo". Para além das falácias contidas no raciocínio, existe aqui uma falta de verdade histórica. As economias socialistas eram muito mais poluidoras que as capitalistas e muito menos interessadas nas questões ambientais.

4. Eis como se pode estar muitas vezes de acordo com o PCP nas críticas que faz, e raramente com as soluções que propõe.

Recusar a mercantilização do ambiente



Nem sempre se pode estar em desacordo com o PCP. Por exemplo, a posição dos comunistas perante o comércio da poluição parece-me bastante justa. A crítica à mercantilização do ambiente e à privitização da atmosfera é essencial para afirmação sobre elas de um direito público internacional e evitar que, devido ao talento das equipas jurídicas ao serviço das grandes multinacionais, a defesa do ambiente e a protecção da atmosfera se venham a reger pelas leis do mercado e da economia, e não da política. A atmosfera bem como o ambiente do planeta são bens comuns partilhados por todos os seres que habitam a Terra, não podem estar sujeitos à lei da oferta e da procura, nem ao jogos dos interesses privados, por muito amplos que estes sejam.