27/02/10

Stephan Micus - Midnight Sea

O fechamento em si


As ideias modernas acerca da psicologia da vida privada são confusas. Muita gente , hoje em dia, pretende que a sua vida privada nasce por geração espontânea, independentemente das condições sociais e da influência ambiental. Desse modo, a psique é tratada como se tivesse uma vida interior por si mesma. A vida psíquica é vista como tão preciosa e delicada que definhará se exposta às duras realidades do mundo social. Só florescerá na extensão da sua protecção e isolamento. O self (o “eu” ou o “si”) de cada um tornou-se a sua principal preocupação. Conhecer-se a si mesmo é agora um fim, em vez de um meio através do qual alguém conhece o mundo. E é precisamente porque estamos tão auto-absorvidos que é extremamente difícil chegarmos a um princípio privado, que explique claramente a nós mesmos ou aos outros o que são as nossas personalidades. A razão é que, quanto mais privada for a psique, menos é estimulada, e mais difícil é para nós sentir ou expressar sentimentos. [Richard Sennett (1974). The Fall of Public Man. London: Penguin, pp. 4, trd. nossa]

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A brilhante análise de Sennett da erosão da vida pública nas sociedades ocidentais foi publicada em 1974. Mas o tempo não lhe retirou nem brilho nem pertinência. Em 1974, certamente, a análise não faria muito sentido se lida a partir de Portugal ou de Espanha. Países atrasados no concerto das nações do primeiro mundo, ainda sem democracia, ou em fase de parto, a vivência das sociedades modernas era algo afastado e nebuloso.

Mas a partir da consolidação da democracia e da entrada na normalidade, Portugal começou, apesar de tudo, a parecer-se com os países mais desenvolvidos. Fundamentalmente foi herdando todos os seus problemas. Aquilo que é descrito neste excerto, essa cultura do autismo, uma cultura narcísica de auto-absorção, vi-a nascer e desenvolver-se. Vi-a, fundamentalmente, a partir da escola. Vi como as famílias, levadas pelo espírito do tempo e a propaganda funesta de uma certa casta de psicólogos e psiquiatras, começaram a proteger os seus filhos de forma absurda, evitando ao máximo o choque com a dura realidade social.

Mas o que de mais tenebroso pude assistir foi à intervenção do próprio Estado, através do sistema educativo, na propagação do narcisismo, do autismo, da absorção das crianças e dos jovens em si mesmos. O que é notável neste processo de destruição da vida pública não é o zelo das famílias e o apostolado de certos psicólogos e psiquiatras. O notável é o próprio Estado, que deveria estar preocupado com esta tendência de auto-absorção dos cidadãos, ter sido a principal alavanca do ensimesmamento a que se assiste. A destruição da vida pública nasce pela iniciativa dos responsáveis políticos, como se uma pulsão de morte os habitasse. Não vou perder tempo com exemplos, pois são tantos que o leitor sempre encontrará vários para ilustrar estas afirmações.

Não está já em causa que os responsáveis políticos defendam o bem comum. O mínimo que se lhes exigiria seria que fomentassem o comum, a vida pública, a necessidade dos indivíduos compreenderam a dura realidade do mundo social, com as suas regras e rituais. Ora quando uma civilização se entorpece no fechamento de cada membro em si mesmo, que leitura se poderá fazer? Quando é a própria elite política que promove esta oclusão narcísica dos indivíduos, o mínimo que se poderá dizer é que chegou o fim de um mundo.

Um destino singular


Esta excelente fotografia, de João Henriques, do Público, tira a sua excelência daquilo que ela diz de Sócrates. O fundo negro parece prenunciar o horizonte para onde se dirige. É um facto que ele está de costas semi-voltadas para esse horizonte, mas não é menos verdade que ele o envolve. O segundo traço da fotografia é a singularidade de Sócrates. Esta singularidade, que ele desesperadamente cultivou, no entanto, não significa grandeza. Em primeiro lugar, essa singularidade significa solidão. Sócrates está só, inclusive no seu próprio partido, acossado por uma matilha que lhe ladra às canelas. Ele está a aprender dolorosamente que não se deve tratar os outros como cães, pois acabam sempre por morder. Em segundo lugar, essa singularidade é captada na fotografia pela expressão do primeiro-ministro. Há ali um azedume com o destino. Ele que envolto num ego hiperbólico ansiava um lugar glorioso na História, vê-se agora pura e simplesmente como o primeiro primeiro-ministo obrigado a depor perante a Assembleia da República, lugar aliás onde, tantas vezes, tratou de forma inqualificável a oposição, que agora o obriga a depor. Um destino singular.

A canonização de uma insubmissa


A canonização desta mulher, Mary MacKillop, levanta dois problemas. O primeiro diz respeito à relação de pessoas excepcionais com a hierarquia da Igreja Católica, hierarquia essa composta por gente normal, a maior parte das vezes com uma visão do mundo, da vida, da moral e da religião puramente convencional. Certos religiosos de ordens contemplativas ou de ordens activas, como é o caso de Mary MacKillop, têm um comportamento que ultrapassa em muito a capacidade de compreensão daqueles que possuem o poder na Igreja, numa Igreja que foi criada para a excepção da santidade, mas que, como em todas as coisas humanas, prefere a rotina da convencionalidade. Daí nasce a incompreensão e desta à perseguição vai um passo. Mary MacKillop chegou a ser excomungada. Não deverá ser o primeiro caso em que um excomungado é reconhecido depois como santo.

O segundo ponto é o da necessidade dos milagres para declarar alguém digno da glória dos altares. Mas a santidade, isto é, a excepcionalidade da experiência religiosa de uma pessoa, não se deveria medir pela capacidade taumatúrgica, mas pela vida que viveu, pelos milagres que operou não contra as leis da natureza, mas aqueles que resultaram de uma acção verdadeiramente livre que conseguiu, em certo momento, flectir o curso habitual do mundo e abrir caminhos que os outros puderam trilhar. A santidade é uma luta contra a inelutabilidade do destino, uma afirmação da liberdade contra o peso da necessidade.

26/02/10

Ketil Bjornstad - Prelude 13

O espírito de união nacional


Chegou a altura de fazer a pergunta da qual se foge como o diabo da cruz: os últimos acontecimentos na Madeira têm ou não um carácter político? Aquilo que aconteceu foi apenas devido a uma inesperada violência da natureza ou esta encontrou aliados na forma como o homem organizou e dispôs a sua vida no território?

Agora, em torno do desastre da Madeira, todos brincam à União Nacional. Jardim, em primeiro lugar, mas também o governo e o Presidente. Em tudo isto, porém, há uma falsificação deliberada da realidade. O que se passou na Madeira é um assunto eminentemente político e como tal é um assunto conflitual. Por exemplo, o Expresso chama atenção para um programa da RTP2 que avisava, há mais de dois anos, para aquilo que poderia vir a acontecer (e que infelizmente aconteceu mesmo). Mas já antes disso, cientistas da Universidade de Aveiro (UA) alertavam para o perigo e mostravam as causas (muitas deles devido à intervenção humana) que poderiam conduzir a uma desgraça. Segundo o jornal, parece que esses cientistas foram apelidados pelos governantes madeirenses de "cientistas loucos".

A ser verdade esta história, é claro que há responsabilidade política nos acontecimentos da Madeira. O facto de discutir essa responsabilidade e de conflituar em torno dela não é prejudicial à solidariedade com o povo madeirense. Seria até, contrariamente ao que gostamos de pensar, prova de maturidade cívica e democrática. Mais, seria uma forma de tomada de consciência daquilo que poderá ocorrer em muitos outros lugares devido às mesmas causas apontadas, pelos especialista da UA, para a Madeira. Pensar que a discussão não é feita por reverência aos mortos e respeito aos desalojados é ingenuidade pura. Ela não é feita por medo de Jardim. É desse medo que nasce, neste caso, o nefasto espírito de união nacional.

Um espectáculo extraordinário

Esta suspeição sobre a Procuradoria-Geral e as afirmações de José António Saraiva no parlamento são mais um sintoma de profunda degradação que atingiu a Justiça em Portugal. À nossa frente desenrola-se o mais extraordinário dos espectáculos, pior que um tornado ou um tsunami, um espectáculo que ameaça não deixar pedra sobre pedra. Mas o mais preocupante deste espectáculo é que ele deixa os espectadores impávidos e serenos, como se a desagregação das instituições (seja pela perversão efectiva da sua acção, seja pela calúnia de alguém demente) não afectasse minimamente a maldita vidinha que nos cabe viver.

Quando no final do século passado, o filósofo francês Paul Ricoeur definiu o fundamental da vida ética fê-lo numa frase lapidar: uma vida boa com e para os outros em instituições justas. Isto significa que faz parte de uma vida boa a nossa existência dentro de instituições, e para que a vida não seja um mero estar vivo mas uma vida segundo o bem é necessário que as instituições sejam justas. O que é preocupante no caso da Justiça portuguesa já nem sequer é a questão de saber se ela é uma instituição justa. Ninguém dá um tostão pelo carácter justo da nossa Justiça. O que os cidadãos começam a perguntar é se ainda existe uma instituição de Justiça em Portugal.

Jornal Torrejano, 26 de Fevereiro de 2010


On-line está a edição semanal do Jornal Torrejano.

25/02/10

Andreas Scholl - Flow my tears (John Dowland)

Previsibilidades e revoluções


Afinal aquela velha história de Kant, provavelmente um mito urbano da Konigsberg do século XVIII, que contava que as donas de casa acertavam o relógio pela passagem do filósofo, pois ele fazia sempre o mesmo passeio à mesma hora, não é assim tão extraordinária. Pelo contrário. Um estudo na revista Science prova que 93% das movimentações humanas no espaço são previsíveis. Sejam pessoas que fazem centenas de quilómetros diários, sejam aquelas que apenas percorrem algumas centenas de metros, todas têm em comum o facto dos seus percursos serem previsíveis.

Este estudo, que pretende ter pertinência para a gestão dos fluxos do tráfego nas cidades, deixa perceber uma coisa bem interessante que não é comentada no jornal nem, provavelmente, foi tematizada pelos cientistas. Os seres humanos são por essência conservadores. Uma parte muito substancial das suas deslocações no espaço obedece a padrões normalizados (a nível pessoal, entenda-se). As rotinas tornam-se hábitos, e estes, como ensinou há muito Aristóteles, são uma segunda natureza. A repetição, a rotina, o hábito são a casa onde os seres humanos se aconchegam para poder viver. A previsibilidade mostra uma certa eficiência na gestão da relação com o mundo. Diminui a angústia do próprio e a desconfiança dos outros. Foi devido à previsibilidade, e concomitantemente à natureza conservadora dos hábitos, que a espécie humana pôde resistir e permanecer no mundo. Foi ela que fundou a política, a economia, a cultura.

A espontaneidade, a imprevisibilidade, a capacidade de inovação, etc. sempre foram vistas como excepção, e como tal repelidas ou santificadas. Por santificação da excepção quero dizer que o excepcional era reconhecido como tal, atribuía-se-lhe mérito, premiava-se, mitificava-se, mas ninguém pensava que a vida normal pudesse ser composta por estados e por actos excepcionais. Por exemplo, ninguém acha que não ter o dom de Cristiano Ronaldo para jogar futebol seja um problema. Ele é uma excepção, mas a vida deve decorrer segundo um princípio da não excepção.

A derrota dos projectos revolucionários em política funda-se sempre no conflito entre a natureza humana, previsível e rotineira, e o estado de excepção que uma Revolução política implica. Por exemplo, a derrota do comunismo não se deve tanto à excelência do mundo capitalista ocidental, mas ao carácter inumano do próprio comunismo. Aqui inumano não se refere apenas ao exercício continuado da violência, sempre necessária para assegurar o percurso político da excepção, mas ao facto de que a revolução tem um carácter que choca com a necessidade dos seres humanos se instalarem no previsível, na rotina, no hábito. Quando há revoluções políticas, seja qual for a sua cor, os homens são expulsos, pelos acontecimentos, da sua própria casa. É assim que se sentem.

Já que se falou no comunismo, poder-se-á salientar que o pensamento revolucionário mais consequente se encontra no conceito de Revolução permanente, criado por Léon Trotsky, um dos chefes da Revolução bolchevique de 1917, na Rússia. Uma revolução, enquanto tal, só o é se permanentemente estiver a revolucionar o mundo, a modificar as instituições, a alterar métodos e modelos de acção, a refazer os caminhos que o homem possui para viver em sociedade.

Esta ideia de revolução permanente, porém, não é apenas central no comunismo. Ela é a essência das sociedades capitalistas. O capitalismo, fundado na natureza agónica do mercado, exige uma revolução permanente na sociedade e no modo de vida dos indivíduos, bem como na forma como estes trabalham. O capitalismo, bem como as ideologias totalitárias modernas (fascismo, comunismo, nazismo, anarquismo), assenta na contínua destruição dos hábitos, das rotinas, daquilo que há de previsível no ser humano. Mas a inumanidade do modo de vida capitalista é mais fina e assenta numa contradição.

Por um lado e segundo a retórica em vigor, os indivíduos enquanto produtores e consumidores devem ser espontâneos, abrirem-se para o inédito, para a inovação, fazer formação ao longo da vida, etc. Devem ser revolucionários, numa palavra. O mundo do trabalho e o mundo do consumo, parte substancial da vida humana, estão submetidos a uma revolução permanente. Por outro lado, porém, as mesmas pessoas, enquanto cidadãos, devem ser absolutamente previsíveis, rotineiras, fundadas em hábitos sociais que possam ser facilmente controlados.

Aquilo que diz respeito ao privado, à casa do homem (o trabalho, a satisfação das necessidades, a própria família), deve estar em mutação contínua (novas formas de trabalhar, novos objectos para consumir, novas formas, sempre moles, de família), enquanto a vida pública deve ser perfeitamente conformista e estereotipada. A inumanidade das sociedades capitalistas assenta neste antagonismo esquizofrénico entre o público e o privado. Mas ainda não é tudo. Esta esquizofrenia social está assente na expulsão do homem da sua casa, ao nível da vida privada (vida familiar, de trabalho e de consumo em permanente revolução), e a única casa que agora encontra é a da exposição no espaço público (é isto que se chama sociedade do espectáculo) onde, de forma conformada, se atém a rotinas e hábitos que permitem aos poderes dormir tranquilos. Tudo está sob vigilância. Que os indivíduos, numa parte do seu dia, tenham de ser revolucionários e inovadores e, na outra parte, gente cordata e absolutamente previsível explica o crescimento exponencial das patologias ligadas ao comportamento. Um inesgotável filão para psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e outros técnicos do género.

24/02/10

Reforma aos 67 anos


Esta notícia do Correio da Manhã só pode surpreender a quem anda distraído. É evidente que a idade da reforma terá de subir. Muito provavelmente, o limite não irá ficar nos 67 anos, como se está agora a estudar. Uma situação económica débil, uma política de aposentação na função pública completamente irresponsável (como pode alguém imaginar como sensato que se ganhe mais quando se deixa de trabalhar do que quando se está no activo?), um aumento da esperança de vida, e, fundamentalmente, a inversão da pirâmide etária e a concomitante inexistência da renovação das gerações, tudo isto, e ainda mais a demagogia, a inépcia política e a cobardia de muitos governos, só podem conduzir a coisas como estas.

Não vale a pena sequer protestar contra o actual governo. Qualquer outro teria de fazer o mesmo, inclusive governos daqueles que nunca têm responsabilidade de governação e que se instalam facilmente na crítica acéfala deste tipo de medidas. Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

23/02/10

Salvação



É bem lamentável que esta bela metáfora cristã, «a salvação», seja tão usada e por consequência tão desprezada. Tornou-se um insípido sinónimo de «piedade» e perdeu a sua significação profunda. A «salvação» ultrapassa, aliás, as simples conveniências morais. É um termo que implica um profundo respeito pela realidade metafísica do homem, reflecte o interesse que Deus lhe dá, o amor e o cuidado que Ele tem com o ser íntimo do homem, Seu filho, com tudo o que nele há de divino. Não é apenas a natureza humana que é «salva» pela misericórdia divina, mas sobretudo a pessoa humana. O objecto de salvação é único, insubstituível, incomunicável: é o si mesmo. E este verdadeiro eu interior deve ser retirado, como uma pérola, do fundo do mar, e salvo da confusão, da vacuidade, da imersão no que é vulgar, heteróclito, banal, sórdido, efémero. [Thomas Merton (1963). Semences de contemplation. Paris: Seuil, pp. 36/7]

22/02/10

Hiromi's Sonicbloom - Deep into the Night

A questão é entrar


- Escute, homem! Você quer entar na Politica? Quer. Então, pelos Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionaes, ambos são christãos... A questão é entrar, é furar. Ora você, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o póde embaraçar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices! [Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires; ortografia segundo a regra da época.]

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Não estamos no século XXI. Eça retrata o constitucionalismo monárquico do século XIX. O problema reside no simples facto de não haver qualquer diferença entre o oportunismo político da altura e o actual. Para além de uma vaga reverência ao constitucionalismo e aos valores cristãos, uma espécie de senso comum da época ou, para usar uma expressão em voga hoje em dia, o politicamente correcto de então, qualquer convicção é dispensável às elites políticas portuguesas em períodos de constitucionalismo normal.

Nas sociedades pós-modernas em que vivemos a indiferenciação programática dos partidos políticos deve-se à erosão de alternativas. Pode haver diferentes formas de gerir a coisa pública, mas todas elas coincidem no essencial. A indiferenciação político-partidária portuguesa, porém, não se inscreve apenas nesta perspectiva de ausência de alternativa das sociedades tardo-capitalistas. Ela é uma tradição profunda de ausência de valores políticos sólidos, de convicções sobre o bem comum, de falta de carácter dos protagonistas. De certa forma, Portugal foi pós-moderno mesmo antes de chegar a ser moderno, se é que alguma vez o foi efectivamente. Para as elites nacionais a questão é só uma, a questão é entrar, furar. A monarquia constitucional é um repositório dessas "virtudes" pátrias.

21/02/10

The Astounding Eyes of Rita


Se dissesse que tinha comprado este CD devido ao título, mentiria. A música de Anouar Brahem é uma das que gosto há bastante tempo. A verdade, porém, é que aquela capa e aquele título, mesmo que não conhecesse o músico e o seu percurso, levar-me-iam a ouvir o disco, movido talvez pelo adjectivo astounding, por aquilo que se pensa nele, e pela conexão estabelecida entre o cenário da capa e esse adjectivo.

Olho para a fotografia e vejo a melancolia íntima de uma mulher. Ela olha para fora de si mas é um olhar que fica preso ao interior do compartimento onde se encontra. O mundo da vida, o mundo público onde se desenrola a existência prática, sofreu uma epochê, isto é, foi posto entre parêntesis, foi suspenso. Aquela mulher, só com muita relutância lhe chamaria Rita, está fechada no segredo do seu espírito e é de lá que ela olha.

Como do olhar desta mulher se chega aos olhos astounding de Rita? O que pensamos nós no adjectivo astounding? Pensamos múltiplas coisas. Por exemplo, o estar aturdida, o estar abismada, o estar aterrada, o estar espantada, mas ainda a natureza fantástica, no sentido de excepcional, desse olhar. Os olhos fantásticos de Rita revelam o seu estado de excepção, mas este provém do aturdimento, do terror, do abismo, de tudo isso que provoca espanto.

É aqui que se cruzam os olhos de Rita e aquela mulher que povoa o cenário que encapa o CD. Os olhos fantásticos de Rita são-no, de forma adjectiva, porque o seu olhar provém do espírito, e este é abismo e fonte de aturdimento e de terror. Mais poderoso que o mundo exterior, o espírito é causa de espanto. Os olhos de Rita são astounding, mas o espírito que os move é, verdadeiramente e simultaneamente, substantivo e verbo, é efectivamente astound, se o verbo, to astound, pudesse ser substantivado. A melancolia que vemos no olhar da mulher da foto é o indício da distância que vai do adjectivo ao verbo/substantivo, que vai do olhar ao espírito. A melancolia é sempre o sintoma de uma cisão, de uma separação. Entre os fantásticos olhos de Rita e o abismo que é o espírito há uma distância irreparável.

Será que a música, o universal sem conceito, no dizer de Nietzsche, dirá melhor tudo isto que a palavra fundada em conceitos universais? O melhor será mesmo ouvir.


20/02/10

Justyna Steczkowska & Tomasz Stańko - Egzekutor

A presença da realidade assusta-nos

Esta imagem grandiosa de D. João II, apesar dos espinhos de que sempre se revestiu a sua evocação para alguns, remonta ao século XVI e às crónicas de Rui de Pina e de Garcia de Resende, tal como, aliás, a ideia de um tempo dourado, insistentemente retomada pela posteridade próxima e distante. No entanto, a ponderação crítica do que hoje se conhece sobre o tema obriga, naturalmente, a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal. Em boa medida, como antes se sublinhou, o pioneirismo da expansão portuguesa para territórios remotos explica-se pela pobreza relativa do reino e pela distância face aos centros de poder da Europa da época. O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência, teve sobretudo margem de manobra no fim do século XV e no princípio do século XVI, isto é, nos anos anteriores à estabilização de potências europeias de uma outra escala, como foram as grandes monarquias dos Valois, em França, e dos Habsburgo, senhores de territórios por toda a Europa. [Nuno Gonçalo Monteiro, (2009). "Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 199-200]

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Em primeiro lugar, refira-se o confronto entre o processo de mitificação do reinado de D. João II, (1455-1495) iniciado já pelos cronistas Rui de Pina (1440-1522) e Garcia de Resende (1470-1536), e a história crítica, a qual se sente obrigada "a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal." Esta imagem dilatada da nossa realidade, uma espécie de idade de ouro à qual se reporta continuamente o sentimento de decadência nacional, é um produto onírico. A sua construção não provém da análise racional dos factos mas de processos fundados na imaginação criadora que recria e engrandece a realidade que sempre foi mais ou menos diminuta ("O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência").

Para além da importância efectiva de D. João II e da «viragem significativa» que representou o seu reinado, importa realçar como a reflexão sobre um momento decisivo da história nacional é, desde logo, uma des-realização do real e a produção de um sonho, sonho esse que acaba por ser o padrão contra o qual as gerações seguintes vão ser obrigadas a confrontar-se e a medir-se. A uma imagem hiperbólica do reinado de D. João II, a que se aliavam e continuaram a aliar outras imagens hiperbólicas de reinados anteriores, imagens referentes a um passado irrecuperável e não testemunhável, contrapunha-se e contrapõe-se a realidade efectiva, com a sua pequenez, a miséria geral, as elites prepotentes, egoístas e mais ou menos incultas, o estado de dependência e de impotência da maioria da população. A clivagem entre a imaginação sonâmbula do passado e o peso de cada um dos presentes, que se foram vivendo no devir da história, conduziu a uma patologia da vontade.

O ideal que se persegue em Portugal é de tal maneira elevado que a vontade, impotente para o realizar, se sente fragilizada. Nessa fragilidade, ela apenas encontra forças para subsistir, subsistência essa tão bem caracterizada na expressão popular "a gente desenrasca-se". Ninguém sabe, porém, que o ideal é o produto do delírio da razão. As próprias elites, mesmo se aparentemente cultas, acabam por ser o veículo fundamental desse delírio. Veja-se, por exemplo, as ilusões que perpassam na cabeça das elites políticas, das centrais às municipais, e que se consubstanciam em obras faraónicas e desenquadradas das reais necessidades do país e dos concelhos. No fundo, a vaidade dos indivíduos encontra um sólido álibi numa mitologia nacional construída desde há muito. Para além destas elites, que realizam os seus delírios com o dinheiro vindo dos impostos pagos pelos outros e, no caso actual, da União Europeia, a sociedade vive esmagada pelo sonho e incapaz de recentrar a sua vontade em formas de vida realizáveis e à medida das possibilidades de cada momento.

Os portugueses são vítimas de um excesso de imaginação, de uma imaginação presa ao passado. Como essa imaginação não é confrontada com o princípio da razão, ela é incapaz de olhar o presente e fazer dele a matéria da vida. A presença da realidade só pode, então, assustar-nos.

Equívocos e soarismos


O artigo de Vasco Pulido Valente, no Público de hoje, diz o essencial sobre o equívoco da candidatura de Fernando Nobre à Presidência da República. Vale a pena ler. Sublinho apenas um aspecto. Mesmo contra sua vontade, a candidatura de Fernando Nobre pode servir a um certo soarismo, eu diria ao soarismo tout-court, para fazer eleger novamente Cavaco à Presidência. Contrariamente ao que se pensa, Cavaco Silva chegou à Presidência por decisão de Mário Soares. A candidatura deste às últimas eleições nunca serviu para outra coisa senão para fazer eleger Cavaco e evitar que Manuel Alegre tivesse alguma hipótese de chegar a Belém. Ou alguém imagina que um homem tão experiente como Mário Soares tivesse alguma ilusão sobre as suas possibilidades de vitória? Foi Soares quem colocou Cavaco em Belém. E não vejo razão alguma para que o mesmo Mário Soares, no silêncio da sua consciência e na silenciosa análise que faz da situação política, não queira que Cavaco lá continue. O resto, isto é, aquilo que se diz que cada um (Soares e Cavaco) diz do outro - o pior possível - não passa, mesmo que seja verdade, de mexericos. Soares sempre se achou dono do regime e assim se comporta velando por ele. E Cavaco é muito mais seguro para o regime que Alegre. Por isso, Soares fará tudo para que Alegre não seja o candidato oficial do PS. Veremos se terá espaço de manobra para não ter de apoiar, da boca para fora, a candidatura do seu velho camarada de partido.

19/02/10

Valentin Silvestrov: silent songs

Vontade de vomitar


Estas declarações de Tiger Woods (aqui ou aqui) sobre as suas infidelidades ou o arrependimento delas enojam-me. Já aquando do processo de Clinton senti o mesmo asco pelo arrependimento público. Se eles se arrependem ou não é um problema deles e das respectivas mulheres. É moralmente inaceitável a sua exposição pública. Não vou falar dos interesses que podem convidar a tanto arrependimento. Mas uma coisa é certa. Uma sociedade que pressiona os indivívuos para este triste espectáculo, por muito que se diga liberal, está longe de ser uma sociedade livre. É uma sociedade que não reconhece a raiz da liberdade.

O pior vem pela patologização do comportamento de Woods. Ele tem estado a receber tratamento. Tratamento? Mas se está a receber tratamento é porque está doente. Se o seu comportamento resulta de uma doença então ele não foi livre. Se as infidelidades de Woods não resultaram da sua liberdade mas de um estado patológico, então não tem de que se arrepender nem merece censura moral. Censuramos uma pessoa por ter contraído um cancro? Veja-se como a liberdade é de novo negada.

Ser infiel não é um acto que afecte a sociedade, afecta apenas a relação entre o infiel e aquele que foi vítima da sua infidelidade. É motivo de quebra da relação, mas nada mais. Fundamentalmente, a infidelidade tem a ver com um acto de liberdade. A vontade pode decidir realizar aquilo que a faculdade de desejar lhe propõe (ter um caso) ou resistir a essa proposição. É aqui que está a liberdade dos homens. Woods não é um homem livre, mas um doente que é obrigado a pedir desculpa pela sua patologia. Quando se acha que a liberdade é uma doença, estamos conversados sobre o tipo de sociedade em que se vive.

Começou


Como era de prever, e aqui se disse ontem, as verdadeiras corporações que colonizam a educação começaram a cair sobre Paulo Rangel. Veja-se como se pronunciam aqui. Se eu estivesse no lugar de Rangel não diria que essa gente percebeu mal. Perguntaria, antes, pela sua responsabilidade no estado a que a educação chegou. Perguntaria, também, que interesse os move. Aquele discurso é bem conhecido de quem anda nisto há muitos anos. Começou a soar forte nos tempos em que Joaquim de Azevedo era secretário de Estado. O resultado está à vista.

Sejamos honestos. Ninguém "quer" que a escola pública funcione com exigência e seriedade. Ninguém suporta ouvir falar em selectividade. Mas todos sabemos que quanto menos selectiva é a escola pública, mais selectiva é a sociedade e menos possibilidade de êxito têm nessa sociedade os alunos da escola pública. Rangel, se for eleito líder do PSD, já comprou uma bela guerra. É um facto que o discurso de Rangel soa a senso comum. Mas os discursos científicos (ou pseudo-científicos) feitos contra o senso comum na educação criaram o caos. Chegou a altura de perguntar se não há que temperar a educação com esse senso comum, que não é outra coisa senão o sentido partilhado por uma comunidade.

Uma nota. Quem quiser alterar alguma coisa na educação não deve deixar amedrontar-se nem tomar uma posição defensiva. Pelo contrário, deve perguntar por que razão os defensores de tão belas teorias deixaram chegar o sistema educativo e a escola pública à inanidade a que ela chegou. No tribunal da Razão, não é Paulo Rangel que se deve sentar no banco dos réus. Mas os seus censuradores.

Jornal Torrejano, 19 de Fevereiro de 2010

On-line encontra-se a edição semanal do Jornal Torrejano.

Livros no domínio público (Brasil)


O Ministério da Educação da República Federal do Brasil disponibiliza um site, denominado Domínio Público, onde o viajante internético poderá descarregar um enorme conjunto de obras, de quase todas as áreas, caídas, as obras, no dito domínio público. Há muitas coisas em português, bem como noutras línguas usáveis, digamos assim. Há mesmo muitas coisas portuguesas, mais que em Portugal. Cheguei a isto através de um daqueles e-mails que se recebem e anunciam uma causa. Neste caso, a causa diz respeito à suposta intenção do governo brasileiro fechar o site devido, diz-se, ao pouco uso. Passo a transcrever parte do e-mail. "Estamos em vias de perder tudo isso, pois vão desativar o projeto por desuso, já que o número de acesso é muito pequeno". Isto foi recebido agora, mas já tinha recebido um semelhante há bastante tempo. Portanto, estamos perante uma de três hipóteses. Primeira, é mesmo verdade e o ME do Brasil, zangado com a falta de acesso a um mercado fundado na graça (tudo é grátis) e não na troca, decidiu, ou quase, encerrar a loja; segunda, é mentira e estamos perante uma daquelas histórias que povoam as mitologias urbanas em tempo de internet; terceira, o governo do Brasil encontrou uma forma sagaz de fazer publicidade ao seu site - um excelente serviço público, diga-se - utilizando a nossa infinita capacidade de indignação com quem está no poder (se for assim, a equipa de promoção está de parabéns).

Seja como for, e como cautelas e caldos de galinha não fazem mal a ninguém, passe pelo Domínio Público, faça o download de umas quantas obras em PDF, já agora leia-as por desfastio, e dê três vivas à lusofonia e um muito obrigado a todos aqueles que disponibilizam o seu tempo ou dinheiro para tornar acessível, segundo uma lógica fundada na graça, uma parte substancial da cultura humana.

18/02/10

3. libertinagem e conversão

Para concluir a leitura de Justine, de Marquês de Sade, retomo, aplicando-a a um discurso complexo como um romance, a teoria dos speech acts de J. L. Austin, depois prolongada por John Searle. Esta teoria distingue entre actos locucionários, actos ilocucionários e actos perlocucionários. Muito resumidamente, actos locucionários são os actos de enunciação. Neste caso, por analogia, corresponde ao texto produzido por Sade. Os ilocucionários referem-se ao que fazemos quando dizemos alguma coisa. Posso prometer, avisar, constatar uma certa realidade ou facto, narrar um conjunto de peripécias. Do ponto de vista ilocucionário, a Justine é a narrativa de um conjunto de peripécias em torno da personagem. De certa forma, a dimensão ilocucionária foi analisada nos dois posts anteriores.

Falta a dimensão perlocucionária. Esta refere-se àquilo que o auditório de uma comunicação é levado a fazer pela conjugação das acções locucionária e ilocucionária. Dito de outra maneira, o que pode ser levado a fazer aquele que lê este texto? Aqui retomo uma ideia inicial. Ler o texto como se não soubéssemos mais nada dele a não ser aquilo que ele diz, como se não soubéssemos nem quem foi o seu autor nem qual o desenvolvimento das suas ideias. O texto supostamente libertino que temos à frente pode gerar dois tipos de reacções. Aqueles que se identificam com a lei do mais forte e podem considerá-lo como um manual escolar que instrui na via libertina. Estes serão uma minoria, pois o ser humano, na sua globalidade, é uma mistura de animal e de ser racional e moral. A consciência moral, aquele que Kant supunha presente em todos os homens, sente, porém, perante a narrativa de Sade um asco crescente pelas praxis libertinas.

O carácter totalitário, o despotismo, o homicídio, o estrupo, o aviltamento do mais fraco, tudo isso presente nos quadros que Justine narra, acabam por constituir um choque para a consciência moral e ter um efeito contrário à ideologia libertina, uma espécie de vacina. Ler a Justine pode ter mesmo um efeito religioso. O universo irreligioso narrado é tão repugnante que conduz espontaneamente à atitude contrária, como efeito perlocucionário. Se não se soubesse quem era o autor e o desenvolvimentos posterior da sua obra, desconfiaríamos que se estava perante um livro apolegético do cristianismo. O próprio Sade, no texto, prevê isso, pois a irmã de Justine, uma libertina soft, ao ouvir a narrativa das peripécias pelas quais passa a irmã, e após a morte desta fulminada por um raio, converte-se e entra para um mosteiro. Mesmo que este final possa ter sido estratégico, no sentido de fazer passar um mundo libertino sob a capa de um caminho de conversão, a verdade é que o texto de Sade, mesmo sem esse fim, tem um potencial de conversão religiosa e moral que não é aquele a que habitualmente ligamos as obras de aristocrata francês.

Saberá com quem se está a meter?


Pela primeira vez vejo um político a olhar para a educação de acordo com a realidade que existe e não segundo um conjunto de abstracções. Subscrevo tudo o que Rangel disse sobre a educação, mesmo as coisas mais desagradáveis. E a coisa mais desagradável que disse é que uma criança aos 12 anos pode começar uma escolaridade voltada para o mundo do trabalho. É preciso ter coragem para dizer uma evidência. Se isso já existisse, ter-se-iam salvo muitos alunos, ter-se-ia evitado muito abandono escolar, ter-se-ia despertado muitas vocações práticas. Ter-se-ia evitado que muitos jovens caíssem na marginalidade. As boas intenções daqueles que se vão levantar indignados com Rangel - já estão a levantar-se - valem o que valem, e aquilo que valem é um abandono escolar desmedido, um terceiro ciclo do ensino básico hilariante, um ensino secundário degradado e, fundamentalmente, um mar de ilusões que transformaram a escola portuguesa num exercício de ilusionismo e de burocracia sem fim.

À pergunta "Combatia o abandono escolar introduzindo mais cedo o ensino profissional?" Rangel responde: "Não... aceitando quebrar um tabu! Introduzindo um ensino profissional misto a partir, talvez, do 7º ano de escolaridade. Aceitar esse encaminhamento sem lhes fechar a porta, caso eles queiram regressar a um sistema puramente académico (sublinhados a negrito nossos)." Nestes termos, e precisamente nestes termos, a sua proposta faz todo o sentido.

Agora, porém, Paulo Rangel não se deve iludir. O que diz sobre a educação vai mobilizar contra si muitos e poderosos interesses que colonizam o sistema de ensino e que vivem, no sentido literal do termo, da ideologia dominante na escola. O chamado facilitismo (palavra de que não gosto) e a degradação do ensino não são uma maldade da natureza, são o resultado de interesses que vivem desse facilistismo e dessa degradação, que o promovem, falando sempre em nome do sucesso escolar, para poderem parasitar o sistema educativo. Rangel deverá ter clara consciência do vespeiro onde se está a meter. Esse vespeiro é transversal ao espectro político. Quando se fala em corporações na educação, as pessoas pensam logo nos professores. Desconhecimento e ingenuidade. Há na educação, no silêncio dos gabinetes, de empresas privadas e de certos estabelecimentos do ensino superior, corporações bem mais poderosas do que os pobres 135 mil professores. Essas corporações silenciosas não brincam em serviço, como se tem visto nos últimos anos. Podemos apostar que será pela questão do ensino misto aos 12 anos que começarão os ataques e a defesa desesperada do status quo. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

17/02/10

Avaliação da experiência Kindle 2


Vamos lá, então, a uma avaliação (parece que se vive num tempo de avaliações) da experiência de leitura no Kindle 2, o eReader da Amazon. Escolheram-se quatro categorias. Manuseamento, Leitura, Livros disponíveis e Trabalho. Deixaram-se de lado questões técnicas como o carregamento da bateria ou a audição dos textos (ainda não experimentei esta possibilidade).

Manuseamento­. O Kindle manuseia-se bastante bem, é leve, permite a leitura nas mais diversas situações. A princípio estranha-se o “virar” da página. A tendência é repetir o gesto mecânico inerente aos livros em papel, mas rapidamente nos habituamos a carregar nos botões (PREV PAGE e NEXT PAGE) ergonomicamente situados. A desvantagem reside em ser mais difícil e moroso saltar páginas. Há acesso a um menu que permite ir para um índice, mas muitos dos e-books disponíveis gratuitamente não possuem o índice operativo, isto é, que permite clicar na indicação do capítulo e aparecer no local onde o capítulo se inicia. Nos livros comprados (foram dois) para Kindle, na Amazon, os índices funcionam. Também noutros e-Books gratuitos esses índices funcionam, mas não em todos. O menu permite também ir para determinada localização (location) do livro, mas é necessário saber para onde se quer ir. A sensação ao tacto do aparelho não é desagradável, mas não é papel. É fria e metálica. É também escorregadia, por isso recomendo a compra de uma capa de cabedal. Torna o Kindle mais pesado, mas protege o ecrã e evita que o aparelho escorregue das mãos. Já apanhei, por sorte, o meu no ar, quando experimentava ler sem capa protectora. O miniteclado para introduzir notas e fazer pesquisa é trabalhável. Não estamos a falar de um computador, mas de um livro que permite fazer anotações nele e a partir dele.

Leitura. Incomparavelmente melhor e menos cansativa do que num bom monitor de computador, apesar do ecrã ser pequeno. Tem a vantagem de apresentar seis tamanhos de caracteres à escolha, que vão desde os caracteres para os que vêem bem de mais até aos que precisam de caracteres bem grandes por verem bem de menos. Permite também escolher o número de palavras por linha. Além disto, que para mim é muito mas que encontro no computador, refira-se a qualidade do ePaper e da eInk. De facto, a relação entre o preto dos caracteres e a cor de fundo (que não sei designar) do “papel” é bastante agradável. Não há contrastes que firam a vista. A leitura é, na minha óptica, melhor no Kindle que em papel. Esta é uma grande arma deste tipo de aparelhos relativamente ao iPad, por exemplo. Não sendo retro-iluminado, o Kindle comporta-se como um livro normal. Precisa de luz exterior para ser lido. Ao desaparecer aquele brilho dos monitores de computador a vista é poupada.

Livros disponíveis. Na Amazon.com há mais de 300 mil livros à venda para Kindle, livros com codificação própria e só legíveis no Kindle. Essencialmente em inglês, mas abrangendo um leque alargado de interesses. Há outros sites que vendem também livros que o Kindle lê. Como disse num post anterior, existem milhares de livros gratuitos que o Kindle lê. Os nossos próprios textos podem ser transformados em ebooks lidos pelo Kindle. Mas o universo de livros disponíveis, nas várias línguas, irá crescer exponencialmente nos próximos anos. Os livros em PDF apresentam algumas dificuldades de leitura. Não é possível fazer zoom sobre eles. No entanto, esses livros, se não forem em imagem mas em texto, podem ser convertidos para linguagem que o Kindle lê normalmente, e por isso permite fazer zoom sobre eles. Também os jornais podem ser lidos no Kindle. O Público já está disponível por cerca de 14 dólares mensais.

Trabalho. Vantagens: podemos escrever anotações, colocar bookmarks, sublinhar. Podemos também pesquisar por palavras ou expressões. Esta é uma grande vantagem. Desvantagens: os livros comprados na Amazon.com para Kindle não permitem fazer scanner sobre eles para os trabalhar no computador (uma técnica que utilizo bastante em textos difíceis, para os analisar). Os outros livros disponíveis na internet, mesmo em linguagem legível por Kindle, permitem através de um programa denominado Calibre, fazer conversão para .pdf ou para .rtf e .txt, formatos que o Word lê. Depois é só trabalhar a parte que se quer e acompanhar a leitura no Kindle. Problemas: os livros comprados na Amazon.com não têm páginas idênticas aos livros em papel. Isto levanta um problema em trabalhos académicos, nomeadamente na localização de citações. No entanto, os ebooks têm aquilo que se chama “locations”. Por exemplo, o livro que estou a ler tem 2471 locations e vou na location 632-37. Isto permite referenciar a citação. Não sei, nem procurei, se existe já alguma norma de referência bibliográfica que contemple os ebooks.

Nota final. Um ebook é um óptimo instrumento de trabalho. Poupa a floresta, evita o crescimento desmesurado das estantes numa casa, é amigo do leitor. É possível, porém, que se esteja apenas no início de uma nova forma de conceber o livro.

16/02/10

O livro do entardecer 40 - entardecer

não sei se o caminho é este
onde canto no silêncio
ou oiço a voz obscura da terra
a zunir num coro de cigarras
se é verão e transpiro de cansaço

não sei a porta por onde entrarás
vestida de vazio e dor
trazendo um vinho já amargo
a pele gasta pelo tempo
que te deixou ser rapariga

nada sei de caminhos e portas
nem de vozes a cantar no silêncio
sento-me na minha cadeira
e é tudo o que tenho para esperar
desde manhã até ao entardecer

Thomas Tallis - Spem In Alium

Vai começar a privatização das escolas



É assim que as coisas começam. O PS dá uns passos, abre umas portas. Quando chegar o PSD, e vai chegar relativamente em breve, fará o resto. Nessa altura, o PS protestará, muito de esquerda, muito ameaçador, mas escudado na maioria de direita que toma a decisão, e secretamente contente com o que ele começou. Enquanto não estiver destruído tudo na educação não estão descansados. Ou alguém imagina que a privatização das escolas públicas secundárias serve para outra coisa que não uns "empresários" da educação embolsarem uns dinheiros à conta do contribuinte e da proletarização dos professores? Haverá alguém tão ingénuo que pense que os alunos vão beneficiar alguma coisa?

O retorno e a imaginação

Portugal estava (século no início do século XV), de facto, entalado entre o poderoso vizinho e o mar, confinado num espaço periférico, um finisterra não apenas em termos do Ocidente europeu, mas até da própria Península. Daí resultava o que chamámos o impasse ibérico do reino. À época, a única via possível para buscar um caminho próprio era o mar. E desde há muito que o mar ocupava um lugar de grande importância na vida do reino. A extensão da costa, a participação directa das populações do litoral em actividades marítimas como a pesca (em largas zonas da orla costeira), a extracção de sal (em Aveiro, no Baixo Mondego, no estuário do Tejo, no Sado) e até a familiarização com o vaivém de embarcações que faziam navegação de cabotagem ligando cidades e regiões costeiras (sendo esse, por vezes, o meio de transporte mais rápido e seguro), tudo concorria para uma relação de proximidade com os elementos marinhos, não só em termos físicos mas também ao nível das representações mentais. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 172]

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Com o fecho do ciclo imperial, em 1974, Portugal volta a uma situação geopolítica idêntica àquela em que viveu até ao século XV, um finisterra europeu e ibérico. A diferença, porém, é que mesmo o mar deixou, com o fim da ideologia colonial e dos respectivos impérios, de ser caminho para o impasse político do país. A partir de 1974, Portugal está perante si mesmo, dolorosamente só. O apelo à razão, isto é, à confrontação com o que somos efectivamente, porém, é substituído, por duas vezes, pelas operações da imaginação que sublimam a nossa situação. A primeira vez que a imaginação opera é nos próprios acontecimentos de 74 e anos seguintes, no denominado processo revolucionário em curso (PREC). A crença utópica numa sociedade socialista, fora do mundo ocidental onde geográfica e culturalmente pertencemos, ocupou uma largo espaço imaginal nesses anos. Estamos ainda longe de poder compreender o efectivo significado colectivo dessa grande configuração imaginária dos anos setenta.

No entanto, para além de razões puramente fácticas - a longa ditadura, clivagens sociais humilhantes, etc., a figura imaginária da revolução surgiu como sublimação de duas feridas narcísicas insuportáveis. Em primeiro lugar, o país tornou-se efectivamente um pequeno país, reduzido a 90 mil km2 na península e a dois arquipélagos perdidos no mar e de dimensões irrelevantes. A história gloriosa e a pátria grandiosa reduziam-se a quase nada. O PREC foi um analgésico colectivo para a dor da perda. Isto dos dois lados da barricada.

Os que eram favoráveis a uma utópica continuação da guerra encontraram nos actores políticos da descolonização o bode expiatório, na figura da traição à pátria dos revolucionários de Abril, para o fim de uma política colonial sem saída. Mas aqueles que, dentro do PREC, tiveram de fazer a descolonização, ainda que ideologicamente favoráveis ao processo, encontraram no PREC um álibi para tranquilizar as consciências perante o que viria a seguir e para não pensar na nova situação do país reduzido à sua dimensão ibérica.

O PREC foi uma poderosa figura do imaginário colectivo que permitiu à direita e à esquerda, bem como à comunidade nacional no seu todo, evitar confrontar-se com a realidade da nova situação e sublimar as dores que efectivamente o fim do império colonial trouxeram para toda a sociedade. Um dos efeitos mais interessantes deste poderoso filtro da consciência foi a integração dos chamados retornados, portugueses que abandonam os novos países nascidos da descolonização. Por muito dolorosa que a partida de cada pessoa e família fosse individualmente sentida, a sua integração no todo nacional foi praticamente indolor.

Se a mitologia do PREC e da construção de uma sociedade socialista entra rapidamente em decadência, tornando-se obsoleta já nos finais da década de setenta, Portugal encontra uma nova mitologia, um novo trabalho imaginário que o vai dispensar de se confrontar com a sua realidade efectiva. A nova figura da imaginação portuguesa estava já pronta e era uma realidade bem racional na Europa. Essa figura é a CEE. A generalidade dos países que integram o projecto dos seis fazem-no racionalmente. Portugal fá-lo, porém, de uma forma imaginária. Seria interessante analisar os discursos dos vários protagonistas políticos no primeiro lustro dos anos oitenta. O inconsciente colectivo recebe a CEE como um novo espaço mítico que, por si mesmo, resolveria todos os nossos problemas. Seríamos europeus, coisa a que estávamos desabituados há cinco séculos, sem outra necessidade do que a da integração.

A triste história da integração, desde as narrativas delirantes do pelotão da frente até ao descalabro actual, passando pelo pântano, tornam evidentes à saciedade de que a nossa integração nunca correspondeu a um trabalho da razão, mas à sedução proveniente das figuras da imaginação. A CEE serviu para evitar a dor proveniente do confronto com a nossa pobreza ancestral, a falta de recursos, o desprezo pela inteligência, a fragilidade e egoísmo social das elites.

E tudo isto assenta de tal maneira em processos imaginários que o nosso elemento de referência, aquele que foi uma solução para a escassez endémica com que o país sempre se debateu, refiro-me ao mar, foi recalcado, esquecido, abandonado, fora do seu aproveitamento turístico. Com a adesão à CEE, a frota de pesca desapareceu. O que serviu a outros para racionalizar, a nós serviu para destruir, como se a relação com o mar não fosse mais do que um mero sonho. No século XV, o sonho levou-nos mar fora, para outras paragens. Hoje, o mar implica não a fuga, mas a razão, o trabalho, a diligência. Por isso o abandonámos, preferimos alugar camas e a servir refeições a quem passa por cá para olhar o mar com melancolia.

15/02/10

O livro do entardecer 39 - carnaval

dançam dançam dançam
remadores do rio da morte
dançam braços pernas ao vento
à chuva pesada e fria
dançam na melancolia
dançam no inverno
corpos a baloiçar
a pender do patíbulo
enquanto a vida foge pelo mastro
de onde cristo algum ressuscitaria

A Igreja e a sexualidade


A reunião de Bento XVI com a hierarquia da Igreja irlandesa por causa de práticas pedófilas encobertas pela própria hierarquia local (aqui ou aqui) mostra um problema que está longe de se circunscrever à Irlanda (ver, por exemplo, aqui). Esta generalização da descoberta de uma praxis repugnante e hedionda não deve ser apenas pensada pela Igreja do ponto de vista do pecado e do crime individuais. Não estou a dizer que todos os padres devem pagar por aquilo que alguns fizeram. Os actos comprometem os que os praticaram, mas também aqueles que calaram e encobriram. Mas a Igreja deve ir mais longe e interrogar a relação da casta sacerdotal católica com a sexualidade.

Em muitas religiões, inclusive em confissões cristãs, a casta sacerdotal não é obrigada, a não ser em caso de vocações muito específicas, ao celibato. A hierarquia e o clero da Igreja Católica são compostos por homens comuns e nada nas suas funções implica a negação da sexualidade própria. O recalcamento da sexualidade bem como o afastamento dos padres de uma vivência familiar com filhos acaba por os tornar insensíveis a estes problemas e a pactuar com o diabo, para falar eufemisticamente. Se compararmos, pelo menos ao nível daquilo que se conhece publicamente através da comunicação social, os cleros das várias confissões cristãs, é praticamente apenas na confissão católica que o problema da pedofilia atinge as proporções absolutamente dramáticas que se estão a conhecer. Isto não quer dizer que o celibato conduza à pedofilia, nem quer dizer que não haja pedófilos casados e pais de família. Mas dever-se-á, pelo menos, perguntar se não haverá uma correlação entre a exigência do celibato pela hierarquia e este tipo de crimes, se o celibato coercitivo não perverterá a sexualidade de alguns padres e tornará outros insensíveis ao problema? A Igreja Católica precisa de repensar muito claramente a sua relação com a sexualidade, se quiser viver e ter ainda alguma influência sobre o mundo.

José Afonso - Moda do Entrudo

Morrer de frio

Esta notícia mostra que aquela ideia peregrina de que Portugal é um país de clima temperado não passa de uma valente idiotice. Idiotice essa que, durante muito tempo, dispensou os construtores de casas de as prepararem para o frio. Mas a notícia é ainda o espelho de uma outra coisa. Espelha a miséria endémica e uma sociedade absolutamente desequilibrada, que nem os dinheiros provenientes da União Europeia conseguiram disfarçar. Portugal, um dos países da União onde mais se morre de frio.

Carnaval


Não desesperemos! As cinzas de quarta-feira já não estão longe.

14/02/10

O livro do entardecer 38 - nenhum sentido havia

nada sei desse nome soberano
sobre a vida se ergue
e um caminho de pedra rasga
onde tudo era água e areia
ou fogueira onde se aqueciam
as doces raparigas
junho as trazia no regaço

se era triste a tristeza
e o vento falava com a sua voz de sopro
nenhum sentido havia
a não ser o tempo a correr
enquanto o coração batia
aos frágeis indícios
de um inverno por anunciar

Charles Aznavour - La Boèhme

É um retorno, julgo. Mas não cansa. Isto pertence a uma geração anterior à minha, mas ainda é do meu tempo, como se dizia.

Uma educação liberal


Raramente estou de acordo com o que escreve João Carlos Espada (JCE). Não é, porém, o caso de hoje. O seu artigo, Os grandes livros e a educação do carácter, no jornal i, toca no que é essencial na educação universitária. A universidade não pode ser aquilo em que se está a transformar. A educação universitária deve ser uma educação liberal. Liberal aqui deve ser entendido, como o próprio João Carlos Espada refere, como o era na Idade Média, em contraponto com a servidão. Nessa educação liberal o fundamental é a conversação e o contacto com as grandes obras, os clássicos, e também com grandes professores. A universidade deve servir para formar, como afirma Burke na citação feita por JCE, a aristocracia natural que existe em todos os povos. Iria mesmo mais longe, toda a educação deveria servir para formar o que há de naturalmente melhor em cada um dos indivíduos. Deste ponto de vista, toda a educação deve ser aristocrática. Embora, a partir de um certo grau de ensino comum, os percursos se devam diferenciar conforme as aptidões de cada um. Mas desde que uma criança entra na escola deve-se-lhe propor como horizonte o tirar de si aquilo que tem de melhor, seja uma vocação política, científica, técnica ou outra dentro do que é determinado como socialmente aceitável. Só esta educação, que é verdadeiramente uma educação do carácter através da aquisição de um currículo, pode tornar os homens livres e empreendedores. Só uma educação aristocrática é capaz de gerar respeito pelos valores da democracia. E é nisto que o Ocidente está a falhar, desde a escola básica à universidade. Em vez de homens livres, está a formar escravos. Escravos dos seus próprios desejos, já não habituados a uma satisfação diferida, como escravos dos outros a que se venderam por falta de carácter e incapacidade de resistir a si mesmos.

Uma nota final sobre a referência que JCE faz a Platão. Muitas vezes JCE, embora não tenha lido muito do que ele escreveu e possa estar a ser injusto, refere-se a Platão, na esteira de Popper, para o integrar nos advogados de regimes totalitários. Hoje, porém, escreveu algo de mais essencial e de menos anacrónico sobre o autor da República. «Mas seria com Platão e Aristóteles que a ideia de educação liberal viria a receber total consagração intelectual.» Eis uma afirmação com a qual estou plenamente de acordo. A educação dos homens livres é aquilo que visa a filosofia. Diria mais. Sem educação filosófica, não há educação livre nem para a liberdade.

13/02/10

Desespero


A isto chama-se desespero. Por muito que o PS desminta ter originado a convocatória da manifestação espontânea, quem acreditará, mesmo que seja verdade? Quando os ventos mudam, e eles já mudaram há uns tempos, nada corre bem. Se ao menos Sócrates se pudesse calar, talvez ainda encontrasse forças para resistir à maré. Mas como poderá ele ficar calado agora, se sempre falou de mais?

2. A lei da natureza e a virtude infeliz


Retomemos a leitura de Justine, de Marquês de Sade. No post anterior foi sublinhada a natureza totalitária dos universos descritos por Sade e referida a sua função arquetípica na história da Europa contemporânea. Esses universos são, por seu turno modelados, na caverna platónica. Em cada uma das situações onde Justine se vê envolvida, tanto as vítimas como os algozes libertinos estão, como os prisioneiros da caverna de Platão, presos, submetidos à força. As vítimas submetidas à violência da coacção física, os libertinos, à violência do desejo.

Que lei rege estas cavernas platónicas? O próprio texto a explicita claramente. Desde ladrões e valetes de quarto a aristocratas, passando por burgueses, religiosos e homens de ciência, como o médico incestuoso, pedófilo e assassino, todas enunciam a mesma legalidade, a de um universo social regulado pela lei da natureza. Esta ao fazer uns fracos e outros fortes estabelece o padrão do que cabe a cada um na vida social. A uns fez fracos e vítimas e a outros, fortes e carrascos. O desejo ou a luta entre desejos, num prolongamento da filosofia de Hobbes e antecipando Hegel e Freud, é crucial na visão de Sade. O desejo liga os homens à natureza e entre si, tornando uns senhores e outros escravos. O desejo é, contudo, a manifestação da razão. A razão natural que se inscreve na capacidade e poder, físicos e intelectuais, com que cada um se apresenta ao mundo. Um prolongamento de certos concepções sofísticas contra as quais pensaram Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Esta concepção da lei da natureza permite, então, perceber como os universos totalitários se instituem e como se regula a ordem que os estrutura. Concomitante a isto é, por seu lado, a demonstração de que qualquer comportamento virtuoso é fonte de logros e um caminho para a sujeição. O subtítulo da obra – os infortúnios da virtude – mostra a conexão entre a aspiração à virtude e a infelicidade que ela produz. Numa leitura aparentemente crítica das concepções de virtude que provêm do platonismo e do cristianismo, as personagens libertinas tentam, a cada momento, mostrar que o mundo está feito de tal forma que só o vício é recompensado. Um tema que terá impressionado a imaginação do final do século XVIII. Deus ausenta-se do mundo, e a virtuosa Justine passa uma vida de sujeição até que a própria natureza, através de um raio, a aniquila. Na caverna onde os homens habitam, uma caverna constituída por mil outras cavernas, só a astúcia, o ardil, o embuste, a violência são verdadeiramente virtuosos, isto é, nos tornam excelentes na sobrevivência e permitem a satisfação dos desejos com que a natureza nos dotou.

12/02/10

Carinhoso (Pixinguinha/Braguinha) - Paulinho da Viola e Marisa Monte

Uma sociedade doente


Esta notícia mostra a insanidade a que se chegou em matéria de sexualidade e o tresloucamento que vai na cabeça do legisldor. O rapaz, de facto, portou-se mal ao fazer um filme de um acto sexual privado, uma felação, e o ceder a uns amigos, que fizeram o favor de o espalhar pela escola. Mereceu pagar a indemnização à parceira, mereceria ainda uns bons açoites. Mas a acusação que o levou ao banco dos réus, acusação de acordo com a lei em vigor, revela a doença mental que atravessa as nossas sociedades. O rapaz foi a julgamento, e condenado a uma multa, por crime de pornografia de menores. Ele tinha acabado de fazer 16 anos. Ela tinha 15. Quem faz estas leis? Uma sociedade que instiga, a partir do próprio poder, à sexualidade, à educação sexual nas escolas, que permite todo o tipo de exibição do sexual, depois acha que uma filmagem de um acto sexual consentido entre dois miúdos é pornografia de menores. Se o rapaz fosse condenado por violação da privacidade, seria compreensível. Isto mostra apenas que estamos intoleravelmente doentes. Diga-se, em abono da verdade, que a justiça foi, contrariamente a outras situações, até bastante responsável. Mas o legislador...

Quem és tu romeiro?


Um equívoco com cinco anos. Nunca o Partido Socialista teve uma oportunidade tão generosa para fazer alguma coisa do país como a primeira maioria absoluta alcançada por Sócrates, na esteira da triste governação que foi a de Santana Lopes. Mas se este estava pouco preparado para governar, Sócrates ainda estava menos. Mas o pior nem é isso. O pior é que Sócrates e a cultura que tomou conta do PS, um partido sempre frágil na sua relação com os princípios, foi pensar que se podia fazer sempre política através de truques e de leituras apressadas de Maquiavel. Em democracia, o maquiavelismo funciona se houver substância, se se souber o que se quer e se se tiver alguma coisa de sólido para oferecer à comunidade. Mas se apenas existe habilidade para o truque, se não houver consistência e solidez nos princípios, e se não se tiver um rumo para onde se quer conduzir o país, então as leituras de Maquiavel são inúteis. Em vez de um príncipe glorioso, temos um romeiro. Quem és tu romeiro, pergunta-se no Frei Luís de Sousa, de Garrett. Ninguém, responde o romeiro. Quem és tu romeiro? Eis a pergunta que assedia a cabeça de Sócrates.

Jornal Torrejano, 12 de Fevereiro de 2010


On-line encontra-se já a edição semanal do Jornal Torrejano.

10/02/10

O livro do entardecer 37

a que distância ficam os teus olhos
se a noite cai
e tudo se cala
no fulgor da tempestade

a tardia luz
desce sobre ti
e os teus dedos
são uma colónia
de mágoa e esquecimento

Elis Regina - Águas de Março

Um discurso inteligente


Um discurso inteligente. Um sábio equilíbrio entre o mercado e o Estado. Uma afirmação da importância da autoridade e da decência das instituições. Nenhuma oferta de ilusões. O país precisava de ouvir isto. Paulo Rangel falou para a direita, mas também para o centro-esquerda, para as pessoas da esquerda democrática que já não suportam a situação onde se chegou. Há muito que não se ouvia, vindo da área dos partidos da governação, um discurso tão sólido, um discurso que não oferece nada, mas propõe um combate para recuperar a decência e a esperança. Resta saber o grau de sanidade do PSD. Vai escolher este caminho difícil ou vai embarcar em experimentalismos liberais que acabarão por abrir ainda maiores clivagens na sociedade?

Mau sinal para Sócrates


O que significa a candidatura de Paulo Rangel à liderança do PSD? Significa apenas que toda a gente já percebeu que o reino de Sócrates está por um fio. Estivesse Sócrates forte e Passos Coelho iria a jogo sozinho. Agora, porém, que o poder espreita de uma janela já meio aberta, os pesos pesados aprestam-se a ir a jogo. Belém, por seu turno, começa a sorrir. Depois da trapalhada da inventona das escutas, a esfinge presidencial olha, de longe, para Sócrates e contempla-o na luta de morte que trava consigo mesmo. Em Belém está um homem paciente. Paulo Rangel a correr para o PSD? Mau sinal para Sócrates.

Um incómodo


Tornou-se um incómodo para o próprio partido. Quando Jaime Gama se mostra sibilinamente preocupado com a credibilidade do primeiro-ministro, isso significa que a credibilidade de Sócrates está a tornar-se tendencialmente nula. Sócrates deixou de ser solução para o quer que seja. É um problema. Problema para o país e um problema para o seu próprio partido. A falta de solidariedade interna, que o primeiro-ministro diz sentir, está inscrita na linha de orientação que ele próprio impôs ao partido e à governação. Os fortes não devem preocupar-se com os fracos. Nunca pensou que o fraco seria ele. Aqueles que o estão a abandonar são exactamente os mesmos que o apoiaram quando era poderoso. Portanto, pode esperar o pior. Seja como for, o problema do PS não é bem Sócrates, mas a cultura política que ele representa. Muitos Sócrates existem no PS. Apenas esperam a sua hora. Porém, o PS e o país bem precisavam de aniquilar a cultura socrática e do grupo que o apoio ou apoiou. Portugal precisa de um partido da esquerda democrática. Que seja democrático e que não tenha vergonha de ser de esquerda. Fundamentalmente que respeite os cidadãos e os valores essenciais da liberdade e da democracia.

09/02/10

O livro do entardecer 36 - ave

desfigura-se a casa onde
o coração poisou
a janela aberta
vidro partido
e a ave que um dia chegou
tem nas asas a força do vento

imóvel é uma sombra na parede
o desejo à espera do momento