18/06/09

Da arte de cumprimentar

Depois de o Zé Ricardo ter escrito isto e isto, espero não lhe retirar matéria para nova incursão na sociologia das relações interpessoais, digamos assim. Um tormentoso problema atravessa certas áreas da sociedade portuguesa. Como cumprimentar, com um ou dois beijos? Consta que a tradição dos dois beijos é de influência francófona, que se teria disseminado nas aristocracias ibéricas. O problema dos dois beijos reside na sua popularização e, hoje em dia, não há cão nem gato que não use dois beijos para saudar alguém do sexo oposto. As famílias aristocráticas, refugiadas em Inglaterra durante as guerras liberais, trouxeram para cá a forma de cumprimentar seca e rápida dos círculos aristocráticos ingleses onde se moviam, um beijo. É este cumprimento que agora começa, também ele, a democratizar-se. Contrariamente ao que pensa uma certa casta social que julga diferenciar-se do poviléu pelo facto de se saudar apenas com um beijo em vez da popularizada e democrática saudação com dois, a sua forma de cumprimento está irremediavelmente contaminada pela mimésis popular. Há muito que o beijo único na face deixou de fazer parte de círculos restritos e caiu nas mãos, quero dizer nas faces, dos que gostam de macaquear as famílias bem. Daqui até ao uso generalizado é um passo.

Seja como for, a decisão por um beijo ou dois não deixa de ser uma decisão complexa numa situação tão rápida e evanescente quanto aquelas que ocorrem na grande-área e exigem o juízo instantâneo e preclaro do árbitro. Esta complexidade é atestada por quem menos se espera. Não deveria o embaixador do reino de Sua Majestade, a Rainha Isabel II, saber qual o cumprimento a usar em cada momento? Se acha que sim, então está enganado e deve ler este post, do embaixador britânico, Alex Ellis, no seu blogue Brandos Costumes. Se nem um embaixador britânico se sabe orientar em tão espinhoso e melindroso, quão importante, assunto, o que se poderá dizer dos pobres plebeus que vivem naquela fronteira entre o popular "dois beijos" e o em vias de popularização "um beijo"?

No mundo profissional, julgo que se está a expandir, mesmo entre mulheres, um cumprimento mais adequado: o aperto de mão. Desde que seja uma aperto de mão formal, seco, nem demasido mole nem demasido rígido, nem exessivamente rápido nem excessivamente longo, julgo que a alternativa é adequada, pelo menos não é tão má quanto as pessoas andarem a trocar beijos, seja um ou dois, nos locais de trabalho. Aliás o único local de trabalho onde se pode trocar beijos é na escola pública portuguesa, mas são beijos na boca até os participantes, vulgo alunos, perderem a respiração. Mas, como se sabe, a escola em Portugal não deve ser entendida como um local de trabalho, mas um parque de diversões e uma estância de férias prolongadas para muitos dos alunos.

Esta história de nos saudarmos com contacto corporal é coisa que acho dispensável. Por que razão as faces das mulheres que eu encontro têm de levar com a minha de raspão? Por que motivo temos de andar a apertar as mãos uns aos outros, alguém é capaz de dizer? Nada melhor do que usar uma pequena vénia. O homem passa por uma mulher, inclina levemente a cabeça, ela semicerra os olhos, eventualmente esboça um leve sorriso, e cada um vai à sua vida. Entre pessoas do mesmo sexo, bastava um pequeno cumprimento oral, quero dizer um bom-dia ou boa-tarde, um olá, um viva, um como está?, um bem obrigado, etc. Depois, do ponto de vista erótico, nada pior que os cumprimentos que utilizam beijos. Numa vénia ligeira e distante pode desenhar-se todo o espaço do jogo amoroso, que, como se sabe, precisa de espaço e de distância para que, como todos os jogo, se possa desenrolar. Portanto, nem um beijo, nem dois, nem aperto de mão. Uma vénia ligeira e discreta. Para todos? Seria o ideal, mas poderiam começar os sectores mais diferenciados da sociedade. Enquanto o povo se empanturra de beijos, as classes com mais capital simbólico, chamemos-lhe assim, começavam a usar a vénia com esperança de que o seu exemplo civilizasse a turba e tudo se tornasse um pouco mais discreto ou menos boçal.

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