29/02/08

O silêncio da terra sombria – 7. Outono azul

A fria luz ensurdece-se
sobre uma indústria esquecida,
naquelas cidades despojadas de mãos,
grávidas de olhos negros,
negros e densos como um outono azul
sobre a seara de pedra,
imortal e luminosa, a fumegar labaredas,

sôfregas labaredas que à morte
roubam a cárie a que chamas vida.

[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Jan Garbarek with Keith Jarrett - Mandala

Andrea Mantegna - La Crucifixion

Ontem foi publicada uma «cópia» deste quadro da autoria de Degas. Hoje temos a obra do próprio Mantegna. Siglos XIV/XV. Gótico/Renacimiento, 1456 - 1459, Musée du Louvre, Paris.

Jornal Torrejano, 29 de Fevereiro de 2008

Nova edição do Jornal Torrejano já on-line. Destaque para a revolta da freguesia de Meia-Via, com a devolução da gestão das escola à Câmara. Referência para a entrevista a Júlio Clérigo da direcção do Choral Phydellius. Refira-se, ainda, a nota a vermelho sobre o possível fim da Comarca de Torres Novas. Para não desesperar do ataque do poder central ao concelho, o melhor é ir até à Barquinha e frequentar o Mês do sável e da lampreia (maldito colesterol).

Na opinião, há, antes de mais, o cartoon de Hélder Dias. Depois, os Borrões de José Ricardo Costa, Peço perdão em nome de Portugal de Santana-Maia Leonardo, A lâmpada de Jorge Salgado Simões, SEDES ou sede? de José Gil Serôdio, Pelo canto do olho de Miguel Sentieiro, Até gastar as calças de Carlos Nuno, Tango azul de Carlos Henriques e O jejum das palavras e das imagens deste blogger.

E assim acabou este pequeno post dedicado ao Jornal Torrejano. Para a semana, senhores ouvintes, se tudo correr pelo melhor, voltará.

Lemos & Benavente

Ana Benavente atacou a política do Ministério da Educação. Já veio o secretário de estado Valter Lemos atacar as políticas de Ana Benavente. O problema é que ambos têm muita razão. Portugal teria dispensado a contribuição de Ana Benavente e de Valter Lemos para o descalabro da educação.

Blogues de professores

O actual conflito entre professores e Ministério da Educação tem trazido para o primeiro plano os blogues de professores. Há muitos, muitos que certamente não conheço. Habituei-me a frequentar, nos últimos tempos, quatro. Em primeiro lugar, uma surpresa, o blogue ramiromarques. O seu autor, Ramiro Marques, é um bostoniano, mas ostenta uma certa distância do eduquês mais fundamentalista de Valter Lemos. Apesar de Boston, parece ser pessoa com muito para dizer com interesse para o sistema educativo.

Em segundo lugar, um dos blogues mais visitados nos últimos tempos, o A Educação do meu Umbigo, de Paulo Guinote. Acompanha de forma sistemática e pertinente a crise da educação desencadeada pela actual equipa ministerial. Refira-se a análise lúcida e independente de programas onde se debateu a educação, bem como das tomadas de posição de «fazedores de opinião» extra-escolares.

Em terceiro lugar, o blogue Ensinar na Escola. Um blogue militante na luta contra a praga ideológica (sustentada por muitos e obscuros interesses) que dá pela alcunha de «eduquês». Uma denúncia contínua do destrambelhamento de uma ideologia perniciosa que tem por objectivo tácito destruir os professores e prejudicar os alunos, ideologia incrustada no Ministério da Educação. A generalidade dos posts são assinados por Anti-Eduquês.

Por fim, o já muito conhecido A Sinistra Ministra. Blogue que ganhou renome nacional na denúncia das opções políticas de Maria de Lurdes Rodrigues. Dá informação sistemática da contestação docente.

28/02/08

O silêncio da terra sombria – 6. Herança

Dou-te em herança esta terra,
os prados de cinza e fogo,
os cavalos inclinados do coração,
disseste.

Será ainda preciso que aprendas
como se olha a maçã
ou incendeia um corpo
ou se suplica a dádiva da morte
no último assalto da vida.

[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Justiça e futebol

O que se está a passar no Porto, no âmbito da Justiça e da Polícia Judiciária (cf. aqui), é um belo retrato daquilo em que este país se tornou. Acredito que o magistrado Almeida Pereira não tenha ligações a clubes de futebol, ao contrário do que circula na imprensa. Mas deveria ser regra deontológica e norma jurídica, para quem desempenha funções na política e na área da justiça, a não existência de qualquer ligação ao desporto, fundamentalmente ao futebol. Os interesses económicos são poderosos, mas as paixões desportivas não o são menos. Muitas vezes, contaminam-se.

Birgit Nilsson - Liebestod

Edgar Degas - Copia de la Crucifixión de Mantegna

Siglos XIX y XX. Neoclasicismo/Romanticismo. Copia de Mantegna. 1861. Óleo sobre lienzo. 69 x 92.5 cm. Musée des Beaux-Arts. Tours. Francia.

27/02/08

O silêncio da terra sombria – 5. Sonho

Uma palavra de enxofre e sal
e os olhos escuros são pássaros
brancos no negro vazio da colina.

O horizonte era ainda um lago
de vozes roucas e sufocadas como
um sonho trôpego que caminha
pela vida ou uma fêmea vegetal
a erguer-se plena e deslumbrada
na súbita tristeza da partida.

[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Ramiro Marques - Haverá um objectivo escondido nisto tudo?

Tenho recebido dezenas de e-mails de colegas que afirmam que a crueldade deste processo de avaliação tem um objectivo escondido: infernizar a vida dos professores titulares que têm entre 53 e 56 anos, forçando-os a desistir da profissão por exaustão e a pedir a aposentação antecipada, sujeitando-se a uma penalização entre 30 e 40% do valor da reforma. Com isto, o Governo poderá anunciar que conseguiu reduzir 70.000 funcionários públicos, cumprindo o desígnio da redução da despesa pública à custa dos professores [Ramiro Marques].
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Não gosto de processos de intenção, mas este governo é o mais frio e impiedoso que recordo, e já recordo muitos. A tentativa de destruição da imagem pública dos professores foi metódica e sem contemplações. Nunca um corpo profissional foi tão vilipendiado em Portugal. Também é preciso perceber que muitos desses ataques surgem da «sociedade civil», mas todos sabemos de onde vem a mão. Este governo, dito socialista, fez o que há de mais abjecto: escolheu uma vítima sacrificial para atingir os seus objectivos políticos. Os professores foram, desde a primeira hora, essa vítima escolhida para ser imolada ao esplendor e glória da governação de Sócrates. A coisa não vai parar por aqui. Os algozes, sem o sangue da vítima, temem não aplacar a ira dos deuses. Só pararão se perceberem que têm mais a perder do que a ganhar, caso contrário não hesitarão um segundo. Isto é política, quero dizer: conquista e manutenção, por qualquer meio, do poder.

Thomas Bernhard - DERRUBAR ÁRVORES uma irritação

Falar com jovens não conduz a nada, pensei eu, e quem afirma o contrário é hipócrita, pois os jovens não dizem nada às pessoas já de uma certa idade e aos velhos, esta é que é a verdade; não tem interesse absolutamente nenhum o que dizem jovens a pessoas idosas, absolutamente nenhum, pensei eu, e é a maior hipocrisia afirmar o contrário. Foi sempre moderno dizer que os velhos devem falar com os jovens, porque os jovens têm muito a dizer aos velhos, mas o contrário é que é verdade: os jovens não têm absolutamente nada a dizer aos velhos. Obviamente os velhos teriam alguma coisa a dizer aos jovens, mas os jovens não entendem o que os velhos lhes dizem, porque não podem de modo nenhum entendê-lo e, por isso, também de modo nenhum o querem entender (pp. 165).

Mísia - Garras dos Sentidos

Anton Raphael Mengs - Andata al Calvario

Siglos XVII/ XVIII. Clasicismo. Neoclasicismo/Romanticismo, 1769. Olio su tela. 185 x 185 cm. Madrid, Patrimonio Nacional. Palacio Real.

Os CTT e a DECO

Eis uma excelente táctica. A DECO faz uma avaliação negativa dos serviços prestados por uma empresa. Esta não gosta e acusa a organização da defesa dos consumidores de ter divulgado um estudo difamatório com indícios de má-fé e, como é hábito nestas coisas, toca a ir para tribunal (aqui). Se isto se tornar moda, a defesa consumidores ficará pura e simplesmente paralisada, cheia de processos judiciais. A seguir com muita atenção, pois resultado da demanda não será indiferente à protecção dos consumidores, isto é, a todos nós.

O bom-gosto

O bom-gosto ainda é um gosto comum e um gosto comum não é gosto. Ninguém saboreia em comum. Um gosto nasce ali no silêncio e na escuridão que envolve quem abandonou a estrada e, perdido, se aventura onde não há caminho.

26/02/08

O silêncio da terra sombria – 4. Devastado mundo

Cantava o devastado mundo,
a periferia de cardos entre mãos,
o louvor dos dias finais e brancos,
claros de tanta sufocação.

Falava de viagens feridas pela partida
se o tempo era de procissão:
uns anjos safados e sujos, o andor
rodeado por virgens puídas, remendadas
de escamas, linhas de cinza a sucumbir
na vida fria esconsa incessante
da madrugada.

[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Manuel António Pina - Ex.ma sra.governadora civil

O acima assinado, cidadão português e cronista, vem, muito respeitosamente, expor e requerer a V. Ex.ª o seguinte 1 - Tendo o signatário tido conhecimento de que a PSP identificou três professores que, convocados por sms, se reuniram no sábado na Avenida dos Aliados para, supõe-se, não dizer bem das políticas educativas do Ministério da Educação; 2 - Mais tendo sabido que, entre as centenas de presentes, a PSP decidiu identificar (já que tinha que identificar alguém e não levara consigo bolinhas numeradas para proceder a um sorteio) três pessoas que falaram às TV's; 3 - E tendo sabido ainda que tal identificação (e tudo o que se lhe seguirá) se deveu ao facto de as pessoas em causa não terem, em devido tempo, informado V. Ex.ª de que pretendiam ir nessa tarde à Avenida dos Aliados; 4 - Tendo, por fim, conhecimento de que, pelo mesmo motivo, um sindicalista foi recentemente condenado em Oeiras; vem o signatário solicitar autorização de V. Ex.ª para, logo à noite, se reunir com alguns amigos no Café Convívio, sito na Rua Arquitecto Marques da Silva, nº 303, no Porto, a fim de discorrerem todos ociosamente sobre assuntos diversos, entre os quais provavelmente não dizer bem das políticas educativas do Ministério da Educação. Pede deferimento. [Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 26/02/2008]

Educação, um desperdício

Há um sintoma claro da falência da política educativa do governo. Em vez de se discutir, na esfera pública, por que motivo há más aprendizagens ou aprendizagens que não são realizadas, o Ministério da Educação conseguiu fazer convergir todos os olhares para a situação dos professores. Uma política feita de desconhecimento da realidade, fundada em preconceitos ideológicos, sustentada em truques provenientes dos «spin-doctors» governamentais e na mais pura má-fé, gerou a maior injustiça de que há memória entre professores e um caos burocrático indescritível na escola pública portuguesa. Só pelo facto de ter ocultado o essencial (a não aprendizagem dos alunos, repito), esta equipa ministerial mereceria ser despedida rápida e prontamente, e com justa causa. Três anos e uma maioria absoluta desperdiçados. É obra.

Edouard Manet - Cristo escarnecido por los soldados

Siglo XIX. Impresionismo, 1865. Óleo sobre lienzo. 191,5 x 148,3 cm. Instituto de Arte de Chicago. Chicago. USA.

25/02/08

O silêncio da terra sombria – 3. Ave de Rapina

Ramos sufocados, as letras ígneas
suspensas pela evidência da luz, um som
maléfico a bramar no canto escuro da noite,
a acender o bolor na vagarosa leitura do livro.

No alto da cabeça, havia a voz de um deus,
uma árvore de rosas e linho entreaberta
na substância ondulada do caminho.
Sobre a luz da vingança caía a chuva

cinzenta, parda de granizo e uma ave de rapina
planava inquieta, suspensa da sua
plumagem, esperando o ateado fogo,

esperando o suspirado milho, suave e
infame, adormecido e quente sobre
a raiz oca e límpida da terra.


[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Ethan & Joel Coen - No Country for Old Men - AWESOME Trailer!!!!

The Tallis Scholars sings Palestrina

Paul Gaugin - Agony in the Garden

Siglos XIX y XX. Simbolismo, 1889. Óleo sobre lienzo. Norton Museum. West Palm Beach. USA.

24/02/08

O silêncio da terra sombria – 2. Céu Perdido

Um ponto cavado e sonoro, puro
como a chama de uma candeia,
é agora um barulho deserto ou
uma alcateia de zinco pela estrada.

Nessa lâmpada obscura arquitecta-se
uma raiva escrita na paisagem verde,
verde de tanto silêncio ou naquele
céu perdido e esfaimado de pássaros

e nuvens a clamar vingança,
a vingança gravada no horizonte
dos dias ansiosos e exactos,

agora lúcidos de semente e fumo,
lúcidos como uma maçã descascada,
oferecida a uma boca seca de tanta inércia.

[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Um comunista em Chipre

Um comunista eleito Presidente da República, ainda por cima de um país da União Europeia, quem diria? Dir-se-á que foi no pequeno e divido Chipre. É verdade, mas os ventos liberais de teor fundamentalista acabam por criar condições para coisas deste género.

A duplicidade de Marcelo

Há pouco, na RTP 1, Marcelo Rebelo de Sousa elogiou o documento de avaliação de professores, nomeadamente a diversificação dos itens de avaliação. Mas concluiu a análise dizendo que o processo de avaliação proposto acabará por fazer com que os professores deixem de ter tempo para o essencial: ensinar. Mas não é essa hipotética qualidade, baseada na diversificação da avaliação, que inquina todo o processo e vai aniquilar o ensino na escola pública? Voltámos ao tempo do Marcelo/Gato Fedorento.

Ignacio Zuloaga y Zabaleta - El Cristo de la sangre

Siglo XX. Vanguardias Históricas/Realismo. También conocida :" La Hermandad de Cristo Crucificado". 1911. Óleo sobre lienzo. 248 x 302 cm. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía. Madrid. España.

Crianças em risco de pobreza

Uma em cada cinco crianças portuguesas vive, segundo relatório da União Europeia, em risco de pobreza (cf. Público). O risco abrange tanto as crianças que vivem com adultos desempregados como aquelas que vivem com adultos empregados. Neste caso, Portugal só é ultrapassado pela Polónia. Eis um retrato claro e distinto do país. Sócrates não é o primeiro responsável. Antes dele há outros. Mas com a triste experiência, para não dizer outra coisa pior, do socratismo o problema acentuou-se e, mais grave, nenhuma esperança ilumina o caminho dos portugueses. Todos sabem que alguns enriquecerão muito e os outros, a larga maioria, empobrecerá. É este já o resultado do reformismo governamental. Não é o mercado, é a política.

As manifestações de professores contra a irracionalidade

As manifestações de professores, não enquadradas politicamente, ocorridas ontem em Leiria, Caldas da Rainha e Porto são apenas a ponta, uma pequena ponta, de um enorme iceberg de descontentamento que lavra entre os docentes portugueses. Basta frequentar a sala de professores, de qualquer escola, ou conviver com quem exerça a profissão para perceber que o mal-estar é absolutamente generalizado. Mas o que querem os professores? Talvez aquilo que os una neste momento é o que não querem.

O que não querem é uma escola absolutamente irracional, de onde o velho senso comum desapareceu substituído por uma espécie de revolução permanente à velha maneira trotskista. Os estatutos da carreira docente e do aluno, a nova forma de gestão e o que se conhece dos documentos para avaliação de professores configuram uma escola em permanente mobilização. Mas mobilização para quê? O problema reside aqui. A mobilização não tem em vista uma maior qualidade científica do ensino, nem um maior grau de exigência.

A mobilização visa-se a ela mesma: os professores passam a vida em reuniões, a preencher grelhas, a traçar planos e a promover projectos para serem avaliados. A escola do Engenheiro Sócrates e das gentes que tomaram conta do Ministério da Educação não visa ensinar, mas pura e simplesmente avaliar-se e avaliar os professores, não pelo que ensinam, mas pelo grau de mobilização na vida burocrática da escola. O que une os professores é o total desespero perante a irracionalidade que tomou conta da profissão desde que o actual governo chegou. O que une os professores é a convicção, certamente desprezível para o governo, de que a sua missão se centra na transmissão do saber e não em qualquer outro lado. O grito dos professores é um apelo dramático para que não destruam definitivamente a sua profissão e, assim, as novas gerações possam ainda ter acesso ao saber.

Por estranho que possa parecer a muitos, a defesa dos interesses dos alunos enquanto alunos passa pela defesa da razoabilidade da profissão docente. Aquilo que está em causa na revolta dos professores não é apenas o seu interesse, mas, e acima de tudo, o dos seus alunos actuais e futuros. Para que amanhã ainda possa existir uma escola pública que ensine alguma coisa.

22/02/08

O Silêncio da Terra Sombria - 1. Terra Branca

Era uma terra calcária, branca, branca
como o pó da estrada. Sobre as margens
morriam lentas as lentas figuras infantis
tomadas pela cólera que então as devastava.

O banido coração caminhava entre o olhar,
suave e deserto, como se toda a
terra fosse uma imagem de orvalho,
talvez um poço inglório e sem fundo, ou
aquela mão amarela, amarela e desbotada
sobre a camisa rota de algodão.

[Jorge Carreira Maia, O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

Placido Domingo sings with Charles Aznavour

A Rússia com voz grossa

“Se a União Europeia adoptar uma posição unida [sobre o reconhecimento do Kosovo] ou se a NATO ultrapassar o seu mandato no Kosovo, estas organizações estarão a desafiar a ONU e aí nós vamos considerar que devemos utilizar uma força brutal, que é a força armada, para que nos respeitem”, disse o representante da Rússia na NATO, Dmitri Rogozine. Assim, sem tirar nem pôr. Lá voltou a velha política à Europa. A Rússia nunca deixou de ser uma esfinge. Enganaram-se os que julgaram que, depois do colapso da União Soviética, tudo era possível na Europa. Está armada uma confusão sem fim à vista.

Georges Rouault - He aquí el Hombre

Siglo XX. Vanguardias Históricas/Expresionismo, 1935-36. Óleo. 44 x 33 / 30 x 20 cm. Museo Idemitsu. Tokio. Japón.

Jornal Torrejano, 22 de Fevereiro de 2008

Nova edição do Jornal Torrejano on line. Referência da primeira página para o novo padre de Torres Novas, Carlos Alberto Ramos. Nasceu na Pampilhosa, viveu em Riachos, passou pela E. S. Maria Lamas, foi ordenado em 1994. Saliente-se, também, a notícia Portugal começa a tratar lixo industrial perigoso a partir de Junho na Chamusca e a breve sobre o livro de Jorge Salgado Simões "A população de Torres Novas, transformações e dinâmicas na demografia local, 1864-2005", a ser lançado sábado, 23 de Fevereiro, pelas 16,30h, na sala de sessões da Câmara Municipal.

Na opinião há a diversidade habitual. O cartoon de Hélder Dias. Na escrita, José Ricardo Costa com Apito dourado, Santana-Maia Leonardo, O regulamento interno, Jorge Salgado Simões, Precipitações, José Gil Serôdio,Obamamania, Miguel Sentieiro, A espinha na garganta, José Trincão Marques, Desordem na Ordem, Carlos Henriques, Benefícios aos grandes e este blogger, O princípio de incúria.

Aqui fica a notícia das notícias e da opinião. Para a semana, se tudo correr bem, haverá mais.

O documento da SEDES

O que se deve sublinhar no documento da SEDES (cf. Público) é a repercussão que poderá haver da aliança de “um mal-estar difuso” e da degradação do regime. Essa repercussão não é apenas o bloqueamento da III República, mas atinge a própria coesão nacional. Contudo há, neste tipo de estudos, um equívoco: o desfazer da coesão nacional não é casual, ela é um objectivo, perseguido por determinadas elites económicas e políticas, através, precisamente, de medidas que geram o mal-estar entre as populações e degradam o actual regime democrático. Entendamo-nos: o desfazer da coesão nacional não é um efeito lateral. É um objectivo de uma agenda semi-oculta.

21/02/08

António Ramos Rosa - XII

Uma felicidade nos dedos
um fluir cálido o sol
captado no repouso sobre a mesa
e escrito aqui um sol tão rápido

Nada se separa sob os dedos
ignorantes por divisão do vidro
E se o pássaro fica
sem o canto
não o sabem os dedos

Eles deslizam sobre a superfície
na absoluta densidade indesvendável

António Ramos Rosa, O Incerto Exacto, 1982

Django Reinhardt - Django et compagnie

Quintet of the Hot Club of France

Delacroix - Cristo en la cruz

Siglos XIX y XX. Neoclasicismo/Romanticismo, 1845. Óleo sobre madera. 37 x 25 cm. Museum Boijmans van Beuningen. Rotterdam. Holanda.

20/02/08

António Ramos Rosa - XI

Contra algo, inconsistente, interrogado
respiração de infância, insecto imperceptível
aranha de água brilhante aranha.

Contra algo - o quê? Contra isso
pelo desejo obscuro da terra obscura
pela respiração das imagens e dos lagos.

Pelos dados do não-dado contra
e contra que embranquece a página
contra a virgindade da árvore contra o seio.

António Ramos Rosa, O Incêndio dos Aspectos, 1980

France Gall - Poupée de cire

Sejamos condescendentes, a vida também tem destas fraquezas.

France Gall - Poupee de cire
Colocado por scopitones

Educação, três anos de governo

Sobre a escola portuguesa caiu um monstro. Esse monstro devora tudo o que se liga ao saber e àquilo que é inerente à apreensão do saber. A escola portuguesa transformou-se numa espécie de empresa, com uma organização burocrática que tenta imitar a eficiência do mundo económico. O grande problema é que o ensino e a educação estão mais próximos da religião (a sagração do saber e dos valores ideais, não os reais, da comunidade) e da arte (o acto de ensinar é análogo ao que faz o poeta com a língua ou o pintor com a cor e a luz, e pouco ou nada tem a ver com as operações técnicas do mundo empresarial).

Mas doloroso é ver alguns professores a cooperarem na destruição daquilo que faz a dignidade da sua função. Agem como se uma cegueira tomasse conta deles e os atirasse contra os colegas, tentando destruir o senso comum que a profissão foi construindo ao longo de séculos. Contrariamente ao que pensam os «inovadores», os parâmetros da acção do professor estão definidos ontologicamente desde os tempos da Grécia Clássica. O conflito que atravessa a educação portuguesa centra-se nos professores que permanecem fiéis à longa tradição de ensino ocidental e aqueles que, combinando uma estranha retórica revolucionária, liberal e burocrática, pretendem destruir o bom senso que a tradição legou.

Apesar da maioria dos professores, ainda que de forma intuitiva, se identificarem com essa longa tradição, as escolas começam a ser dominadas, devido à pressão política, por uma casta de professores burocratizados, cheios de «pedagogês» e de «gestionês», mas pouco atentos à essência simples da sua profissão. Neste momento, depois de três anos de governação, pode-se fazer um balanço sobre a escola portuguesa. Ela estava doente, agora encontra-se absolutamente moribunda. A seiva sã que ainda a animava foi sugada e no seu lugar corre a mais torpe e hedionda burocracia. Não por acaso começam a crescer as escolas privadas. Dentro de pouco tempo, a escola pública estará dizimada e, ao lado dela, haverá escolas privadas que devorarão os alunos com recursos e com apetência pela aprendizagem.

O trágico, porém, é que a escola pública tenha morrido à mão do Partido Socialista e de alguns professores. Aqueles que mais a deveriam ter defendido são os que, sem apelo, a estão a assassinar. Se quisermos falar das escolas públicas deveremos usar as seguintes palavras: Requiem aeternam dona eis, Domine.

Taller de Frans Francken - Captura de Jesús en el huerto de Getsemaní

Siglos XVI y XVII. Barroco, Escuela flamenca. 1542. Óleo sobre cobre. 55 x 72 cm. Abadía de Montserrat.

19/02/08

António Ramos Rosa - X A Partitura do Impossível

Quem grita surdamente
não pertence
à partitura do tempo.
Quem grita em altos gritos
não pertence
à sinfonia das nuvens.
Qual é o músico
que trabalha com
a imensidade do negro
e a agonia sem esperança?

António Ramos Rosa, Estrias, 1990

A pura impotência

Vi há pouco, nos telejornais, os efeitos das chuvas de ontem. Aquilo que impressiona é a fragilidade em que vive a maior parte dos portugueses. Ouve-se as pessoas, e o que ressoa é a mais pura impotência. A miséria não é apenas a falta de bens materiais, é também a vontade fraca, a ausência de horizontes, a inexistência de qualquer esperança. A vida abate-se sobre os portugueses como sobre uma espécie em vias de extinção; fria, dura, inexorável.

Paul Gaugin - The Yellow Christ

1889. Oil on canvas. Albright-Knox Art Gallery, Buffalo, NY, USA.

Lionel Hampton and his Orchestra


Lionel Hampton and his Orchestra
Colocado por soulpatrol

O dilema cubano

A resignação de Fidel Castro abriu um novo cenário em Cuba. À partida os cubanos têm duas opções. Ou continuam como até aqui e permanecerão pobre e isolados, ou abrem-se aos ventos que vêm da América. Mas assim que a abertura se der, haverá cubanos que enriquecerão, mas a bela ilha retornará ao “esplendor” do tempo do ditador Fulgencio Batista. Talvez uma ditadura não seja substituída por outra, mas os casinos voltarão em força. Será para dinamizar a economia, justificar-se-á. Má sorte a dos cubanos: ou sem liberdade ou sem dignidade.

A condenação do PSD e da Somague

O PSD e a Somague foram condenados pelo Tribunal Constitucional num caso de financiamento partidário ilegal (ver aqui). É evidente que a ligação dos partidos políticos e dos interesses económicos não existe, é ilusão dos cidadãos que não percebem a essência da política nem a ética republicana. Resta saber se o episódio é o começo de uma coisa séria ou se foi um pequeno lapso que escancarou, uma vez sem exemplo, as portas à justiça.

18/02/08

António Ramos Rosa - IX Ponto - Traço

Um ponto negro - um traço
na planície branca
e uma pergunta no silêncio
resolve-se na luz
de uma outra folha inatingível
nudez de evidência ou
de um equilíbrio súbito suspenso
de um contorno novo
uma prosa branca
o desvio de um sulco
ou haste
perpendicular à lentidão do curso
o nome que ascende e principia o fluxo
que não cessa aqui

António Ramos Rosa, A Nuvem sobre a Página, 1978

Salvador Dali - Crucifixión


Siglo XX. Vanguardias Históricas/Surrealismo, 1954. Óleo sobre lienzo. 194.5 x 124 cm. Propiedad particular.

A entrevista de Sócrates

Sócrates fala na SIC. Assisti até ao fim do tema da educação. Quando se falou de economia, Sócrates foi cordato e descreveu um extraordinário mundo que eu não conheço. Quando passou para a educação deixou de ser tão cordato. Não deixou que lhe pusessem questões e descreveu uma realidade extraordinária. O meu problema é que vivo nesse mundo e nada do que Sócrates diz faz sentido. Pode mostrar muitos dados, mas os dados todos nós sabemos como se produzem. A degradação do ensino e a degradação das aprendizagens são galopantes, o facilistismo e a indisciplina atingem níveis inimagináveis há pouco tempo atrás, o desinteresse dos alunos cresce todos os dias e a avaliação dos professores, escolhida pelo governo, vai apenas promover, devido ao método adoptado, o que há de pior na escola portuguesa. Por que razão os professores mais empenhados, mais conscienciosos, com melhores resultados, abominam a avaliação proposta? Se naquilo que eu conheço, por dentro e por fora, nada existe que espelhe o discurso de Sócrates, não serei também obrigado a pensar o mesmo das outras áreas? Não viverá Sócrates numa ilusão, num país que apenas existe na sua cabeça?

Inundações e miséria

Bastou umas chuvadas mais severas e toda a nossa miséria veio ao de cima. Nem a tragédia da morte nos foi poupada. Não sou dos que acreditam que tudo pode estar sob controlo humano, não pode. Mas há uma atitude geral de desprezo do bem público que nos envergonha. Mais vergonhoso, porém, é o triste pingue-pongue das responsabilidades. Acabei de ver o ministro do ambiente e alguns autarcas a dar um infame espectáculo: a responsabilidade é sempre dos outros. Isto tem um nome: miséria de espírito. Tem sido assim desde há trinta anos, em todas as áreas da governação. Mal sopra uma rajada de vento e toda a indigência se torna clara.

Considerações sobre a nossa república

Montesquieu considera a existência de apenas três formas de governo. A monarquia, a república e a tirania. Cada uma destas formas de governo possui o seu princípio de acção estrutural e dominante. Na monarquia a acção visa a honra, na república visa-se a virtude e na tirania é o medo o princípio de acção. Se na tirania não existe um orgulho específico que presida à acção, já o mesmo não se passa nas outras duas formas de governo. Na monarquia, a honra brota do desejo de distinção; na república, a virtude significa não ser objecto de privilégios públicos especiais.

Que poderemos nós, porém, pensar da nossa república? Se olharmos não para a forma institucional do nosso regime político, mas para a prática efectiva descobrimos, no momento histórico em que vivemos, uma dupla perversão do ideal republicano. Por um lado, o que muitos republicanos procuram é a honra inerente à visão monárquica do mundo, fundada num proveito económico proveniente do privilégio. Mas esta perversão da virtude republicana é apenas uma face da moeda. A outra é o medo crescente que se espalha, como um câncer, na sociedade.

A República Portuguesa vê o seu princípio de acção a ser dilacerado. Não por acaso, o aniversário do assassinato de D. Carlos trouxe à luz uma certa nostalgia monárquica. A essência desta nostalgia não se encontra nos pobres monárquicos de serviço à causa. Ela encontra-se naqueles que vivendo dentro do regime republicano o sugam e pretendem ver glorificada a sua novel posição. Mas enquanto se permite, através de uma justiça inoperante, a gestação dos aspirantes à honra monárquica, por outro lado, o sentimento de aspiração à igualdade, virtude primeira da república, é desfeito pela a acção política dos grandes partidos republicanos. Aqui, como descobrimos ao olharmos para a sociedade portuguesa, é o medo que começa a funcionar. Ora o medo não é mais nem menos do que o princípio de acção nas tiranias.

Quando o princípio de acção de uma forma de governo deixa de ser dominante, então ela está perto do seu fim. Há uma estranha ironia em tudo isto estar a passar-se quando se aproxima o centenário da proclamação da República Portuguesa. Não menos irónico é pensar que o Estado Novo foi uma estranha combinação de monarquia e de tirania sob a forma de uma república. Nessa república, o presidente era como se não existisse, aquele que efectivamente governava era monárquico e o que estava no verdadeiro lugar era apenas e só o medo.

A Ver o Mundo - um ano de existência

Um ano de A Ver o Mundo. Não vai haver festas, nem alterações substanciais. As que deveriam ocorrer já ocorreram. Durante muito tempo, o dia do blogue começou com uma fotografia e uma pequena frase de índole metereológica, digamos assim. Mas a azáfama dos dias e a tensão estapafúrdia em que se tornou a profissão que exerço impedem a continuação desses pequenos gestos diários. Não se perde grande coisa. As fotografias poderão voltar, mas sem regularidade. A metereologia, bastante má hoje, será remetida para os respectivos boletins.

De resto as coisas continuarão mais ou menos como até aqui, com a excepção da imagem que acompanha o cabeçalho do blogue. "O Trovador", de G. Chirico, foi substituído pelo "O Vaticinador", do mesmo artista. Talvez não estejamos em tempos de trova nem a forma de enfrentar o mundo seja a de um D. Quixote, em posição de combate, tomando por lança as pequenas palavras que cabem num poema. Sentemo-nos e olhemos o voo dos pássaros ou escutemos o oráculo de Delfos. Um contemplativo, acusar-me-ão. Mas que outra coisa pode ser alguém que, na sua longínqua juventude, decidiu estudar filosofia? Há muito para vaticinar no mundo precário que é o nosso. Mas haverá mundos que não sejam precários? Contemplar na precariedade as fissuras que anunciam as ruínas, eis o continuado desígnio deste blogue.

17/02/08

António Ramos Rosa - VIII

Não encontrarás aqui a fluência
de algum ventre polido ou verso límpido
porque estas palavras conhecem paredes
que não ouviram a angústia e a vertigem

mas têm o sal das lágrimas obscuras
para sempre ignoradas para sempre futuras
nem ouvirás o som das aves frias
mas sentirás o arrepio de sombras sobre as pedras

ouvirás talvez um suor de silêncio

António Ramos Rosa, Boca Incompleta, 1977

Uri Caine - Rhodes Solo (2007)

A independência do Kosovo

A independência do Kosovo é um molho de brócolos indescritível. A Sérvia não reconhece a desanexação de um território que reivindica como pátria originária. Os EUA parecem apoiar os kosovares, a Rússia exige que a ONU e a NATO actuem para pôr fim a este «atentado» contra a soberania sérvia, a Europa hesita, as nuvens tornam-se cada dia mais negras e a borrasca prepara-se naquele sítio que, se a situação não for tratada com luvas de pelica, se tornará num novo Médio Oriente, só que agora na Europa. Quantos nacionalismos, no nosso velho continente, estão à espera de um sinal encorajador?

Nicolás Falcó - Piedad


Siglo XVI. Renacimiento/Manierismo. Museo de la Arciprestal de Santa María.

15/02/08

António Ramos Rosa - VII

Cavalo, cavalo da terra, saltas sobre
toda a pobreza chã ou obstáculo.
O vigor da palavra é evidência acesa
é saber-te do chão até à crina.

Quem te arranca a força da raiz
em que vale te cavam ou te calam,
de perfil ou de fronte és cavalo sempre,
cavalo de sempre.

O teu nome é uma parede que nos fala
sobre o teu silêncio. E é um nome
que não se excede e horizontal se lê,
a prumo.

António Ramos Rosa, Ciclo do Cavalo, 1975

Philip Glass - Koyaanisqatsi


Philip Glass - Koyaanisqatsi
Colocado por popefucker

Maestro de Forlí - El Descendimiento


Siglos XIII y XIV. Gótico, 1300-1305. Temple sobre tabla. 19,7 x 13,3 cm. Museo Thyssen-Bornemisza.

American nightmare

Tornou-se um modo de vida. Entra-se num liceu ou numa universidade, mata-se umas quantas pessoas, no fim dá-se um tiro em si mesmo, como aconteceu há pouco. Uma vez ou duas e todos consideram esses casos como excepções. Quando lhe perdemos a conta e os acontecimentos deixam de nos espantar, então é porque se tornaram normais. Que a pulsão homicida/suicida que habita os jovens americanos não seja motivo de medidas políticas drásticas, mostra o carácter patológico da própria sociedade americana. O american dream está a tornar-se num nightmare.

Jornal Torrejano, 15 de Fevereiro de 2008

Nova edição on-line do Jornal Torrejano. Hoje a primeira página refere o apoio jurídico e financeiro do Município a quem apostar no centro histórico de Torres Novas. Sublinhe-se, ainda, a contestação da Câmara à penalização imposta pelo governo por excesso de endividamento (afinal em que ficamos?). Referência ainda para o empate no derby concelhio, entre o Desportivo de Torres Novas e o Atlético Riachense.

Na opinião, José Ricardo Costa escreve Valhelhas [recorda-me sempre o Valhalla, o mágico castelo de Odin] Europe’s West Coast, Santana-Maia Leonardo, Sim, Senhor Primeiro-Ministro, Jorge Salgado Simões, Fora de Jogo, José Gil Serôdio, Bem-vindos, Carlos Nuno, A Saber a Chocolate, José Trincão Marques, A massificação da advocacia, Carlos Henriques, A Festa da Taça e este blogger, As divagações do arcebispo.

Cumprido o ritual, para a semana, se o eterno retorno do mesmo estiver de acordo, haverá mais notícias do Jornal Torrejano. Bom fim-de-semana.

14/02/08

António Ramos Rosa - VI Numa Fronte Ausente

Terra e noite,
as mãos escavam.
Insistem e desfazem-se
numa fronte ausente.

Na cabeça subsistem
algumas palavras inúteis.

A mão devagar traça
- vai traçar -
uma rede de sinais de que dependo.
A luz descobre o corpo.

Algumas palavras a mais desaparecem.
Neste instante
a pedra é nua.

António Ramos Rosa, A Pedra Nua, 1972

Manuel António Pina - Cem anos depois

"Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter (...). Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo (…). Dois partidos (...) sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (...), análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no Parlamento, de não caberem todos de uma vez na mesma sala de jantar (...)". Isto foi escrito há 100 anos por Guerra Junqueiro, estrebuchava a Monarquia (que, a pretexto do regicídio, alguns patuscos de "blaser" e emblema da Causa Monárquica na lapela nos têm recentemente tentado vender como um eldorado perdido) nos últimos estertores. Porque o chapéu assenta singularmente no clima social e político finissecular que de novo vivemos, "Pátria" deve ser hoje o livro mais citado na blogosfera portuguesa, onde, expulsa dos media tradicionais, se exila grande parte da massa crítica que, entre nós, ainda mexe. É um sinal, o sintoma de uma doença. Até generais já andam por aí a assumir-se publicamente como "reservas morais" da nação. Quando a "reserva moral" já está na tropa, há boas razões de sobressalto cívico. [Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 14/02/2008]

Jessye Norman - Dido's lament [Henry Purcell]

José de Ribera - Calvario

Siglos XVI y XVII. Barroco. Escuela española. Lienzo. 336 x 239 cm. Patronato de Arte de Osuna Sevilla. España.

O Dr. Soares e "Portugal Europe’s West Coast"

O Dr. Mário Soares criticou hoje (ver aqui) a campanha internacional de promoção turística de Portugal baseada no célebre cartaz «Portugal Europe’s West Coast». Refere os cartazes inúteis, estamos todos de acordo, e de gosto duvidoso, aqui discordo acentuadamente do Dr. Soares. Este gosto, daquele senhor doutor que é ministro da economia, não é duvidoso. Pelo contrário, não deixa dúvidas a ninguém e pertence à mesma esfera de gosto das célebres casas do senhor engenheiro civil, que Deus, em desespero de causa e para nos castigar de alguma infidelidade, nos deu por governante. O Dr. Soares pertence a outro mundo, conhecia os pintores, descia as escadas e ia ver a galeria do Manuel de Brito, comprava livros, logo ali ao lado, falava com escritores, etc. Mas a gente, que tomou conta daquele que foi o seu partido, não tem gosto duvidoso. Tem mau gosto, é gente, com uma excepção ou outra e apesar dos títulos académicos, pirosa, possidónia, arrivista. É tudo gente da West Coast; com um empurrãozinho chegam num instante à East Coast dos States, onde fantasiam ser senadores ou congressistas. Que Deus os leve, para lá, claro. O problema é que já só há gente dessa...

Desafio aos leitores - resolução do enigma

O enigma colocado, há dias, aqui, mereceu apenas uma resposta, da leitora Maria Correia, que resolveu uma parte das questões colocadas. De facto, os objectos, os belíssimos objectos, são fotografias. Também é verdade que estabelecem uma clara conexão com a pintura impressionista. São fotografias dos irmãos Lumière, das primeiras fotografias que eles produziram a cores a partir de uma sua invenção. Em 1904, descobriram um método para fixar a cor das fotografias. Era uma placa de vidro polvilhada com fécula de batata, a que chamaram Autochrome. Estas fotografias fizeram parte de uma exposição, em Lyon, França, denominada LA VIE EN COULEURS - Centenaire de l’Autochrome Lumière - 1904 – 2004. Para além do claro diálogo com o impressionismo pictórico, todas as fotografias a que tive acesso, graças a pessoa amiga, são, como as publicadas, de uma comovente beleza. De uma beleza não apenas estética, mas também social, como se quisessem justificar para a eternidade o epíteto de Belle Époque. São, como diz o organizador da exposição, os último testemunhos de um tempo definitivamente morto. Em breve a primeira guerra mundial vinha anunciar o princípio da decadência da Europa, decadência que, apesar das aparências, apenas se acentuou com o tempo.

Escola a tempo inteiro

Depois dos alunos do primeiro ciclo, os do segundo ciclo vão passar a ter escola a tempo inteiro. Eles passam na escola, actualmente, apenas 39 horas semanais. Vão passar 55 horas. Os pais concordam, claro, e os sindicatos, com algumas reticências, também. Eu, pessoalmente, acho a medida do governo pouco ambiciosa. As crianças deveriam ser internadas nas escolas depois dos três anos, e teriam 3 horas ao fim-de-semana para ver os pais biológicos e uma semana por altura do Verão, para os mesmos fins deletérios. O resto do tempo deveria ser passado em aulas divertidas, cheias de computadores e em actividades de enriquecimento curricular. Mas a falta de ambição não se restringe ao horário reduzido do projecto. O âmbito é pouco ambicioso, passe a cacofonia. Se eu estivesse no lugar da ministra da educação, teria como objectivo, nesta legislatura, implementar (assim mesmo) a experiência até ao final do secundário. No início da próxima legislatura, o programa da escola a tempo inteiro deveria ser alargado ao ministério do professor Gago. Precisamos de uma universidade a tempo inteiro, com imensas camaratas, aulas de recuperação, educação cívica, estudo acompanhado e outras nobres actividades de enriquecimento curricular. Só assim se responsabiliza os pais biológicos pela educação dos seus geniais rebentos. Para completar o processo, dever-se-á também criar o programa de professor a tempo inteiro. O futuro professor deverá acompanhar as crianças desde os 3 anos até ao fim dos estudos, 24 horas por dia. O professor deverá fazer, perante o estado representado pelo ministério da educação, prova de virgindade e pronunciar os sacramentais votos de obediência à divina presciência do ministério da educação, de pobreza, aceitando trabalhar apenas pelas magras refeições que lhe permitam acompanhar as crianças, e castidade para evitar contribuir para o desmando que é a multiplicação da espécie e, porque sendo professor, não tem direito a qualquer tipo de prazer, por mais orgânico que seja. A masturbação está interdita.

13/02/08

António Ramos Rosa - V Onde é aqui

Onde é que,
o centro,
onde se respira,
a cama limpa
ao corpo inteiro e nu.
Onde é a fome e o braço toca
o esplendor.
Respira o ventre,
a vela incha
ao sol e ao mar sem fim.

Onde é aqui,
a fome nua,
a árvore exacata
no centro
da alegria,
a luz e o olhar
aberto ao mar.

Onde é onde
a mão sabe
a carícia da anca
e a língua fabrica
o seu sabor a sol.
Onde o fogo acende
o pulso do poema.

António Ramos Rosa, Nos seus olhos de silêncio, 1970

Erik Satie - Gymnopedia No 1

Cenni di Pepo - Crucifix

Siglos XIII y XIV. Gótico. Italia. Escuela de Florencia, 1280-1283. Fresco. 350 x 690 cm. Basílica Superior. San Francisco de Asís. Asís. Italia.

Os professores para as autarquias, já!

Mais uma excelente notícia na educação. A entrega da gestão e contratação de professores às autarquias. Agora sim, os concursos vão ser justos e não vai haver nepotismo, nem escolhas preferenciais dos amigos do clube político que dominar a Câmara. Era indecente o que ocorria no concurso de professores: era claro, transparente e não havia lugar a cunhas, tudo ordenado pela média profissional e tempo de serviço. Não se está mesmo a ver que há critérios muito mais relevantes do que esses. Como é que tal malevolência se poderia manter?

12/02/08

António Ramos Rosa - IV Horizonte Imediato

Todos os dias me apoio em qualquer coisa
ando, como, esqueço
alguma coisa aprendo
e desaprendo
alguma coisa limpa nua grave

surge
ao lado passa
eu não sou este desejo
que às vezes arde
alto sobre o chão

António Ramos Rosa, Estou Vivo e Escrevo Sol, 1966

O fim da política e o governo mundial

Subjacentes aos nossos preconceitos actuais contra a política encontram-se a esperança e o medo: o medo de que a humanidade possa destruir-se a si própria através da política e dos meios de força hoje ao seu dispor, e, em ligação com este medo, a esperança de que a humanidade caia em si e varra do mundo, não a espécie humana, mas a política. Poderia fazê-lo através de um governo mundial que transforme o Estado num aparelho administrativo, resolva burocraticamente os conflitos políticos e substitua os exércitos por forças de polícia. Se definirmos a politica no seu sentido habitual, como uma relação entre os governantes e os governados, esta esperança é evidentemente pura utopia. Se adoptássemos semelhante perspectiva, acabaríamos não na abolição da política, mas num despotismo de proporções maciças no qual o abismo separando os governantes dos governados seria tão gigantesco que qualquer espécie de revolta deixaria de ser possível, para já não falarmos de qualquer forma de controle dos governantes pelos governados. [Hannah Arendt (2007), A Promessa da Política, Lisboa: Relógio d’Água, pp. 86]
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Este texto data de 1951, mas continua a manter plenamente a sua actualidade. Mais do que isso, ele desmonta um dos perigos que, sem nos apercebermos, começa a instalar-se no Ocidente. O desígnio político de uma parte substancial do Islão é o do estabelecimento de um califado universal, a ideia de um governo mundial regido pela ‘sharia’, a lei corânica, a qual aboliria o direito positivo das nações e submeteria todos os povos e todos os indivíduos à «lei divina». É fácil perceber que essa lei divina seria aplicada não por Deus mas pelos homens. Também é fácil perceber que essa situação configuraria aquilo que Hannah Arendt diz do governo mundial: um despotismo ilimitado e uma impossibilidade absoluta dos governados exercerem qualquer controlo sobre os governantes.

Salvador Dali - Cristo en "El Apocalipsis de San Juan"

Siglo XX. Vanguardias Históricas/Surrealismo, 1958-1960. Técnicas y medidas desconocidas. Propiedad particular.