24/09/11

Cantar de Emigração


Esta é uma das canções de intervenção de que sempre gostei. O poema é da poetisa galega Rosalía de Castro e a música, de José Niza, desaparecido ontem. A voz, de Adriano Correia de Oliveira. Que melhor canção se poderia dedicar a José Niza? Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão... Infelizmente.

O retrato de um país


Em pouco tempo, o sempre tão assertivo, como agora se diz, dr. Jardim viu-se obrigado a refazer o discurso duas vezes. Mas tudo isto é irrisório. Sejam as peripécias vocálicas do senhor, sejam os 5 800 milhões ou 7 000 milhões da dívida da Madeira, nada altera o essencial. O dr. Alberto João Jardim e a Madeira são o retrato fiel de Portugal. São o símbolo da nossa estadia na União Europeia. O que se está a descobrir na Madeira - e que todo este coro de virgens murchas, que agora se atiram ao líder madeirense, já sabia - é o que se passa em cada recanto do território nacional. O azar do dr. Jardim é que o pessoal da troika gosta imenso do dinheirinho que pôs cá e está-se nas tintas para as ameaças da independência da Madeira. O dr. Jardim ganhará as eleições, mas está acabado. Mas nem nisso difere do resto do país.

23/09/11

Thomas Mann, Os Buddenbrook (4)



Os Buddenbrook são um reflexão sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de comerciantes ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto. O último da estirpe morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais que o temor sentido por uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical. Isto não significa que, dentro das famílias, não haja, por vezes, uma inclinação para a repetição de certas funções sociais. Significa apenas que isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa família foi conseguindo acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou não pôde evitar. Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade de aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O princípio monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são ritos de exorcismo perante o insondável mistério que cada ser humano representa. O jovem e delicado Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte à segurança da genealogia. Um verdadeiro republicano.

Jornal Torrejano


Está online a edição desta semana do Jornal Torrejano. A crónica semanal deste blogger trata de questões de família.  

21/09/11

Sol na eira e chuva no nabal


Esta coisa da "Dieta orçamental é para durar vinte anos, avisa o FMI" já pouco me perturba. Sei lá se duro vinte anos ou, mesmo, vinte segundos. Menos pobre ou mais pobre, o que for soará. No entanto, há uma coisa que me perturba. Tem a ver com as nossas conquistas civilizacionais. O controlo da natalidade, a submissão pura da corrente biológica, fundada no impulso erótico, ao mais rasteiro cálculo de oportunidades está a levar o Ocidente para um beco sem saída. Há dias, por motivos que não interessam para aqui, estava a ler uns textos, de 1904, de Júlio de Matos, onde ele se insurgia contra a insouciance do proletariado e a sua transbordante capacidade de semear prole. Passado um século, introduzidos a pílula e o planeamento familiar, o que diria Júlio de Matos? Não é apenas o desequilíbrio orçamental que é problemático devido à falta de renovação das gerações. É a decadência das instituições, das ideias, dos projectos. Uma sociedade em que a pirâmide etária está invertida, onde os velhos são cada vez mais e os novos cada vez menos, só pode ter pensamentos soturnos e mórbidos. As nossas sociedades já não pensam, apenas cismam. Como pode haver projectos novos, invenção de caminhos, um golpe de asa que altere a situação? Gostámos muito da liberdade sexual que a pílula trouxe, da comodidade que é evitar ter três ou quatro filhos, do fim do império da Igreja sobre as consciências. O dinheiro serviu para carros, casas, viagens. Mas, como se diz no campo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. A vida é muito mais misteriosa do que a nossa pequena razão consegue calcular. Há que pagar a factura. 

20/09/11

Um deus travesso


Ando há uns dias para comentar este post da Ivone. Não vou entrar na interessante discussão teórica por lá havida. O que me interessa é o último parágrafo. Diz a Ivone: "Sim, meus caros, eu sei: a Grécia e a crise e o euro e a vida. Eu sei, também a conta da água e o meu subsídio de Natal vai descer aos Infernos. Mas sem a literatura, sem a arte, tudo me seria mais difícil." Eu compreendo o deslumbramento perante o livro da Maria Teresa Horta. Ofereci-o à Helena e li um pouco. A escrita é absolutamente luminosa. 

O que há de surpreendente, porém, nos dias de hoje é o carácter ficcional de tudo o que acontece. A Grécia e a crise e a senhora Merkel e os verdadeiros finlandeses e os mercados e as bolsas e o euro e a vida, mais a conta da água e o subsídio de Natal, bem como o Jardim e a Madeira e o BPN, tudo isso é o exercício de um supremo artista, que vai tecendo o plot ao mesmo tempo que se ri das lamentações vagas e irrisórias das personagens. Vivemos na época em que a arte triunfou. Não passamos de personagens, pequenas personagens, de uma intriga onde as peripécias se sucedem ao ritmo determinado pelo arbítrio do criador. Uma personagem romanesca, como se sabe, é impotente perante o desígnio do autor. 

Assim, eu e a Ivone e a generalidade dos portugueses que viram os seus subsídios de Natal descer, como Orfeu, aos Infernos não somos menos impotentes, apesar da nossa aparência de seres racionais dotados de vontade, que as personagens romanescas. As peripécias da Madeira, o ar de bom rapaz do dr. Passos Coelho ou o matiz de sacristão do dr. Seguro, tudo isso faz parte não de uma conspiração contra a razão, coisa que há uns dez anos eu ainda acreditaria, mas de um supremo exercício artístico, com o qual um deus travesso se diverte, com ligeiro enfado, nas longas tardes da eternidade olímpica. Talvez fosse melhor que jogasse xadrez, mas parece que descobriu, para nossa infelicidade, uma veia artística. A Ivone, que me perdoe, mas labora num equívoco. Tudo se tornou literatura e arte, e por isso é tão fácil de acontecer.

16/09/11

Dinamarca, o retorno da esquerda

(Foto no Público)

Uma coligação de esquerda, liderada pela senhora Helle Torning-Schmidt, venceu as eleições dinamarquesas, e pôs fim a dez anos de governação de direita. A Dinamarca está confrontada com um défice público de 4,6% do PIB e um desemprego jovem na área dos 10%. Retorna agora à velha tradição social-democrata. Uma política fiscal mais rigorosa, investimento público e reforma do mercado de trabalho. Apesar de ser provável a vitória da direita nas próximas eleições espanholas, é possível que as eleições dinamarquesas anunciem a próxima deslocação do pêndulo político europeu para o centro esquerda. Resta saber como as questões do Euro e das dívidas soberanas vão influenciar, nos próximos anos, o destino da União e a percepção da realidade por parte dos eleitores.

Jornal Torrejano online


Está online a edição semanal do Jornal Torrejano. A crónica deste blogger tem por título A moral setentrional.

15/09/11

As tensões dos mercados


Os principais bancos centrais do mundo vão avançar com operações de injecção de liquidez nos bancos, para travar as tensões do mercado monetário. O interessante da situação é que ela reduziu a economia ao dinheiro, isto é, à pura informação. Não foram apenas os seres humanos que desapareceram da economia, também as mercadorias, os bens e os serviços se volatilizaram. Agora tudo se passa como se a vida material se tivesse reduzido a uma espécie de jogo do monopólio, mas de onde desapareceram as casas, os bairros, as estações, as companhias. Restam apenas as notas, transformadas num sinal electrónico no monitor de um magalhães (isto antes deste ter sido suspenso para avaliação). A verdade, porém, é que por todo o mundo, e com especial incidência em países como Portugal, a informação electrónica corre, em profusão, das nossas contas bancárias para os senhores do mercado monetário, talvez para lhes acalmar o nervosismo e as tensões. Coitados, há vidas duras.

14/09/11

A bondade moral da mentira a si mesmo


Um estudo publicado na revista Nature chega a uma interessante conclusão. Possuir uma visão adequada da realidade é uma desvantagem competitiva. Os indivíduos que possuem excesso de confiança, quando em situações de competição por recursos cujos benefícios sejam suficientemente grandes em relação aos custos, têm vantagem competitiva sobre os que têm uma visão adequada da realidade. Por outro lado, quando se está perante conflitos com um custo elevado, a selecção favorece aqueles que têm uma visão subavaliada das suas capacidades. Em caso algum, aqueles que possuem uma auto-avaliação realista e adequada são seleccionados.

Deste ponto de vista e contrariamente à moral tradicional, a auto-ilusão e a mentira sobre si mesmo são um bem, enquanto a perspectiva moral que ordena o auto-conhecimento induz uma desvantagem. O célebre oráculo de Delfos, que ordenou a Sócrates conhece-te a ti mesmo!, nada sabia dos processos de selecção. Não bastava a já velha diatribe de Nietzsche contra a verdade. Agora ficamos a saber que é melhor possuir uma imagem ficcional e desadequada da realidade para podermos sobreviver. Assim sendo, o Nietzsche de a Origem da Tragédia tem completa razão. A preocupação do homem teórico, a preocupação com a verdade enquanto adequação do conhecimento à realidade, é uma patologia.

13/09/11

Mistérios da dívida grega


Juros da dívida grega a dois anos ultrapassaram os 90%. Risco de default da Grécia salta para 98%. Os gregos por certo brincaram com coisas sérias. Portaram-se mal. No entanto, não é claro que as "maldades" que fizeram não lhes tenham sido, pelo menos em parte, de alguma forma impostas. Por quem? Talvez por aqueles que agora estão disponíveis a emprestar dinheiro a juros de 90%. Porque há uma coisa que eu, nada versado no esoterismo económico, não compreendo. Como se empresta dinheiro a quem se sabe que não pode pagar? Se o risco é tão alto, nem a 1000% ao dia seria um bom negócio, e o natural seria os mercados não estarem disponíveis para emprestar um cêntimo.

12/09/11

Frugais e omnívoros


Como pode um governo tão liberal conviver com uma pessoa que diz "Gosto da política no sentido de fazer coisas novas pelos outros." Ora se há uma coisa que um político liberal nunca deve fazer é coisas pelos outros. Apenas deve deixar que os outros façam por si, sem que ele os impeça. É o chamado governo frugal. Ora frugalidade na acção é coisa que o governo PSD da Madeira nunca teve em vista. Como casar Alberto João Jardim e os frugais Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira? O ministro Relvas poderá dar uma mãozinha?

A constitucionalização da menoridade política


A constitucionalização do limite do défice público é uma confissão extraordinária. Os políticos que a subscreverem estão a dizer aos eleitores que os seus talentos de gestores da coisa pública não merecem qualquer confiança. É bastante provável que assim seja. Mas a confissão da incapacidade de governar,  visando a reeleição, sem recurso à despesa é o outro lado da menoridade política. A mando dos credores, a constituição tornar-se-á um tutor de uma classe política menor, que transformou o país naquilo que ele é, um protectorado.

11/09/11

Ten Years After


Há dez anos tive o meu segundo grande choque com o mundo muçulmano. O primeiro tinha sido em 1979, com a Revolução iraniana. Esse primeiro choque foi de tal maneira grande que me obrigou a rever os quadros mentais em que tinha sido educado politicamente. Afinal o mundo não se resumia à luta entre comunismo e capitalismo, entre a URSS e os EUA. Havia mais vida para além da Guerra Fria. Nessa altura, descobri que Portugal tinha uma fronteira a sul e não apenas a leste. Se de Espanha não viriam bons ventos, o certo é que os grandes sarilhos poderiam vir do sul, isto é, de um Norte de África politicamente instável. 

Há dez anos, apesar da espectacularidade do golpe, o choque foi menor. Mas mesmo assim foi um choque tremendo. Tenho meditado sobre este problema ao longo dos anos, tenho-me perguntado qual o seu verdadeiro significado. Fui mudando de ponto de vista. Hoje em dia, do ponto de vista da Al-Qaeda, talvez o seu maior ganho tenha sido elevar o mundo muçulmano à consciência do ódio que tem ao mundo ocidental. Mais que mostrar a fragilidade da defesa americana, mais que ferir o orgulho do império, mais que assustar americanos e ocidentais em geral, a vitória terrorista centra-se na tomada de consciência, por parte de todo o mundo muçulmano, de um ódio larvar ao mundo ocidental. Dez anos depois, o ódio está bem vivo, mais consolidado que a própria organização terrorista, que tem sofrido golpes profundos. 

As primaveras do mundo árabe são uma exígua fresta de oportunidade. Não para regimes democráticos idênticos aos nossos, mas para se abrir uma época pós-ódio ao ocidente, uma época de des-solidificação do ódio. Depende de muitas coisas. Muitas delas não estão nas mãos dos ocidentais, mas há uma que está, a forma como se comportam perante a evolução dos novos regimes. Convém não destruir, com o oportunismo que nos caracteriza, o pequeno capital que ainda resta. É provável que muitos milhões de muçulmanos estejam cansados de tanta morte e queiram uma vida normal. Ter trabalho, fazer negócios, ir à mesquita, cumprir o Ramadão, estudar, educar os filhos, etc. Esta pequeníssima oportunidade deveria ser explorada até ao fim, fundamentalmente pelos europeus e, entre estes, pelos europeus do sul, onde se encontram também os franceses, por muito que isso os possa desgostar. Dez anos depois, talvez se possa abrir um inimaginável caminho para a tolerância.

10/09/11

A idade


Vir passar o fim-de-semana à Serra da Lousã e não trazer máquina fotográfica, eis o que alguns poderão pensar ser a sabedoria que só a idade dá. Puro equívoco. A idade não traz sabedoria, mas uma capacidade infinita para esquecer coisas. Só isso.

09/09/11

Júlio de Matos, a política e a República


A liberdade, a soberania popular e a igualdade, que à civilização prestaram, como formas dissolventes da teocracia, um prodigioso serviço, começaram, uma vez tornadas ídolos mentais, a ser-lhe eminentemente funestas.

Do culto da liberdade de consciência nasceu a anarquia mental em que vivemos e que preparou em grande parte, como um dia ainda procurarei demonstrar, a inesperada renascença mística do final do século XIX, que nos reconduziria, se fosse possível prolongá-la, ao servilismo intelectual da fase teocrática.

Do culto da soberania popular derivou, mercê da interferência cada vez maior da plebe inculta na formação dos governos, um regime plutocrático e centralizados, que é já nos povos latinos uma tirania disfarçada e que amanhã será o mais intolerável dos despotismos.

Enfim, do culto da igualdade combinado com o precedente resultou esse perigoso e contagioso estado mental que Raphael Garofalo chama com rara felicidade a superstição socialista. (Júlio de Matos (1904), "Prefácio" à tradução portuguesa de A Superstição Socialista, de Raphael Garofalo)

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Júlio de Matos foi dos mais eminentes psiquiatras portugueses e um dos mais destacados intelectuais apoiantes da 1.ª República. Não admira, assim, que a República se tenha tornado no que tornou. O positivismo político, patilhado com Teófilo Braga e outros republicanos, não era apenas adversário da religião, em particular da Católica, mas também dos próprios princípios da revolução francesa, os quais não passavam de ídolos, cujo valor residia apenas em terem combatido o Antigo Regime. Igualdade, Soberania popular e Liberdade, para o determinismo mecaniscista de Júlio de Matos, não passavam de ideias funestas. Talvez por isso, a República tenha sido a tragédia que foi, uma tirania partidocrática sem grande base popular.  

Jornal Torrejano online


Está online a edição semanal do Jornal Torrejano. Crónica deste pobre blogger, aqui.

08/09/11

Thomas Mann, Os Buddenbrook (3)


No apogeu do sucesso empresarial, político e pessoal, Thomas Buddenbrook sente um deslaçamento interior, como se os acontecimentos, que até aí dominara, começassem a fugir ao seu controlo. Não era nada de visível, apenas uma sensação interior. Os gregos diriam que a Tyche (a deusa Fortuna, para os romanos) o abandonara. No entanto, pelo menos no período helenístico, a deusa tomou uma coloração de pura arbitrariedade, como se ela concedesse os seus favores e desfavores ao acaso. Thomas Buddenbrook, porém, associa essa perda da mão sobre o mundo, essa incapacidade de submeter a realidade aos seus projectos, não ao abandono da deusa, mas a um excesso seu. A sua nova casa, a troca da rica casa, onde se instalara ao casar, por outra, maior e mais esplendorosa. Este excesso, esta ultrapassagem da justa medida, é aquilo a que os gregos do período clássico chamavam hybris. Embora, Thomas Mann não fale, no romance, em Tyche e hybris, é isso que está em jogo. Thomas Buddenbrook sente o deslaçamento interior como uma punição do seu excesso. Aqui, de forma talvez surpreendente, percebe-se a conexão entre o mundo burguês do século XIX e os gregos da antiguidade clássica. A ordem dos negócios, para os burgueses modernos, ou a ordem pessoal e cívica, para os antigos gregos, estão ligadas à sophrosyne, à prudência fundada no auto-conhecimento, o qual nos diz quais os limites que não devemos ultrapassar.

Havia, na época clássica dos gregos, a esperança de que uma conduta sensata evitasse os desvarios da fortuna. Na tragédia, por exemplo, a vinda da má fortuna está sempre ligada a um excesso, embora este não esteja na mão do herói evitar. De certa maneira, Thomas Buddenbrook também não pode evitar a nova casa, que a situação social lhe impõe. Deste ponto de vista, Os Buddenbrook, escondem sob o modelo romanesco, uma intencionalidade trágica. Mas aquilo que talvez seja mais interessante pensar resida nos nossos dias. Se na época a que corresponde o romance, segundo e terceiro quartéis do século XIX, ainda é possível fazer uma conexão entre a perda da fortuna com a hybris, hoje em dia, onde tudo foi reduzido a puro jogo (o jogo dos mercados, por exemplo), a fortuna, a deusa Tyche, está desligada do comportamento, seja ele sensato ou excessivo. É o tempo dos aventureiros. Como no período helenístico, a Tyche tornou-se arbitrária e cega. Ora, o período helenística marca o começo do fim do esplendor dos gregos, o início da sua derrocada. Que o início da nossa comece na Grécia, só espantará quem ache que a história começou com a eleição da senhora Merkel.

07/09/11

Cristina Branco - Redondo Vocábulo


Cruzamento entre uma voz do fado e o melhor de José Afonso. Ainda hoje sou capaz de ouvir a música do cantor de Setúbal. Não toda, há alguma música panfletária para que não tenho paciência. Mas sejam as trovas mais tradicionais, sejam canções de álbuns como Cantigas do Maio e Venham Mais Cinco, fazem parte daquilo que na música popular ainda me dá prazer ouvir, nem que seja o prazer da memória. Com uma voz e uma cara como as da Cristina Branco, então todo se torna ainda mais agradável.

O Cristo do Facebook

Ecce Homo

Foi através do Público que cheguei a esta página do Facebook, Jesus Daily. A página tem milhões de seguidores e acumula likes como nenhuma outra. Se se perder algum tempo a ver as fotografias que pretendem representar Cristo, descobre-se o que resta do cristianismo e de Cristo neste tipo de manifestações. Uma moral vagamente consoladora das misérias humanas e um Cristo ao nível do terapeuta familiar. Embora este tipo de "religiosidade" seja uma marca das seitas protestantes, o próprio catolicismo, talvez devido à concorrência, alberga muitos impulsos no mesmo sentido. Entre o Cristo que oferece o sacrifício, o seu próprio, como modelo para um caminho de transformação e emancipação, e o Cristo dos milhões de likes nada há em comum. O cristianismo nunca pretendeu ser uma terapia de adaptação ao mundo, pelo contrário. Se os responsáveis das Igrejas cristãs, nomeadamente da Católica e das Ortodoxas, pensarem que tamanha profusão de comentários e de likes é o sinal de uma revivescência dos ideais cristãos, de uma aspiração ao retorno a uma sociedade dirigida pela inspiração crística, estão bem enganados. Estes fenómenos são o sintoma de uma decadência que já nada esconde.

06/09/11

Celibatários e comunismo


(Herbert Spencer)

Excepção feita de uma ou outra associação de celibatários, a história das tentativas comunistas apenas regista dissolução e ruínas. (Herbert Spencer (1891), Da Liberdade à Escravidão)

Excesso de licenciados


Neste artigo, o catalão Josep Maria Ruiz Simon, professor de Filosofia Medieval na Universidade de Girona, faz uma breve história da lamentação relativa ao excesso de licenciados. Teria começado em França, no século XVII. Richelieu e Colbert estavam bastante preocupados com o assunto e com as suas consequências sociais. O problema emerge quando o número de lugares socialmente disponíveis não é suficiente para os que fizeram formação superior e as ambições que acalentam. Historiadores como Lawrence Stone e Roger Chartier estabeleceram a conexão entre esse excesso e a radicalização política que conduziu à Gloriosa Revolução, em Inglaterra, e à Revolução Francesa. Que significado político poderá vir a ter, por exemplo e para não falar dos milhares de licenciados que nunca exerceram profissão compatível com a sua formação, o despedimento em massa de professores? As tranquilas águas em que Portugal parece viver são o pior dos sintomas. As grandes tempestades marítimas são sempre antecedidas pela mais densa calmaria.

NATALIA JUSKIEWICZ - "COM QUE VOZ"


Talvez por a minha adesão ao fado ser tardia, não sou purista e acho este tipo de experiências interessantes. Descobri esta violinista fadista no ionline, e, embora o fado não precise para ser universal da abstracção da voz, a verdade é que o violino tem um poder de expressão que supera qualquer barreira linguística. Por outro lado, a tensão entre violino e a viola e a guitarra portuguesa não deixa de ser um jogo, dantes dir-se-ia uma dialéctica, feliz.

05/09/11

Thomas Mann, Os Buddenbrook (2)


O romance permite, muitas vezes, associar o prazer estético da obra com uma certa aprendizagem sobre a dimensão social da vida humana. Não que o romance vise apreender e explicar o social, mas, ao tomá-lo como matéria romanesca, permite que o leitor compreenda certas realidades de uma forma mais viva que aquela que lhe é dada pelo estudo de um documento académico. Os Buddenbrook permite intuir a natureza da tradição burguesa da Europa central e do norte, de cariz protestante. O ethos burguês, uma coisa tão estranha à tradição peninsular, está ali desocultado na sua plenitude. O cálculo entre prudência e risco, a importância da empresa no seio da cidade, a piedade protestante são a matéria sobre a qual se constrói a intriga nuclear da acção romanesca. Para um europeu do Sul, tudo aquilo não deixa de ter um ar estranho e, fundamentalmente, ajuda-o a perceber a profunda reticência com que a Alemanha da senhora Merkel olha para nós. Mas, o mais curioso, aquilo que hoje se ouve acerca dos europeus meridionais, era a voz corrente nos alemães do norte acerca dos bávaros, seus irmãos do sul da Alemanha, como Thomas Mann não deixa de retratar em Os Buddenbrook. É como se houvesse, impregnado na mente da espécie humana, uma espécie de racismo geográfico, onde o Sul surge sempre como inferior ao Norte.

04/09/11

Caixeiros-viajantes


Não sei o que será mais decadente e degradante, se Sócrates a vender Magalhães a Hugo Chávez, se isto? Pode ser que tenhamos de vender a TAP, a EDP, as Águas, pode ser. Mas será que os senhores da Lufhtansa, caso se interessem pela TAP, não saberão para onde ela voa? Os primeiro-ministros de Portugal transformaram-se em caixeiros-viajantes?

Fim da laicidade do Estado?


Esta foto de Miguel Manso, para o Público, surpreende o momento em que Pedro Passos Coelho decretou o fim da laicidade do Estado português. A contemplação, em que o primeiro-ministro caiu para revelar, ao povo crente, o princípio do fim da crise para o início de 2012, é prova de que a fé já substituiu a razão na direcção do Estado. E o fervor é tanto que Passos Coelho nem ouve a senhora Lagarde, directora do FMI, menos dada à mística, que se atreveu a anunciar a iminência de uma recessão da economia mundial. Recessão que, como se sabe, não nos afectará se, de mãos postas, orarmos à deusa Krisis. Se não resultar, a culpa é de Miguel Relvas, que em vez de pôr as mãos e rezar está a jogar no telemóvel.

03/09/11

Thomas Mann, Os Buddenbrook



Estou a reler a primeira obra de Thomas Mann. Tinha-a lido há quase trinta anos (meu Deus, trinta anos...), na tradução de Herbert Caro, para os Livros do Brasil. Agora comprei a nova tradução, de Gilda Lopes Encarnação, para a Dom Quixote. Comecei a ler e já ultrapassei metade da obra. Duas notas. Não me lembrava praticamente de nada, tirando o pano de fundo da intriga, a ambiência de uma família burguesa, numa cidade alemã do século XIX. Foi como se a memória, ao fim deste tempo, tivesse reduzido a riqueza das peripécias e personagens a uma mera abstracção que, para sua comodidade, pode arquivar num pequeníssimo espaço. O deprimente é que isso não se passa apenas com a literatura. Todas as nossas experiências, exaltantes que tenham sido, jazem agora como meras abstracções num canto obscuro do cérebro. Mas essa é a natureza das coisas, nem vale a pena protestar.
Mas esta releitura tem-me feito pensar sobre o que é a grande literatura. Tinha tentado reler alguns romances de Hermann Hesse, de que gostara bastante. Foi um experiência decepcionante. Deixei-os todos de lado, ao fim de algumas páginas. O mesmo me aconteceu com um dos romances do Sartre que mais me marcou, A Idade da Razão. Quase no começo, constatei que já não tinha paciência. O tempo desses livros tinha passado definitivamente. Com Os Buddenbrook, pelo contrário, ainda existe avidez na leitura, embora seja uma avidez mais sensata e ponderada, mais observadora da técnica e da arte. O que são grandes livros? Aqueles que podemos reler.

Regresso de o averomundo


Passaram dezoito meses desde a suspensão do averomundo. Retorna agora. Virá certamente mais calmo, com menos posts, mas sem grandes diferenças. Quem pode deixar de ser o que é?