21/06/09

Da democracia cristã em Portugal

Leão XIII

Continuemos a conversa com o Zé Manel, do Canhotices, a propósito de duas postagens e respectivos comentários do averomundo (esta e esta). Algumas indicações históricas fundadas na memória pessoal, em leituras diversas, e não na investigação científica.

A questão da democracia cristã em Portugal. Em Coimbra, foi criado em 1901 o CADC (Centro Académico de Democracia Cristã), inspirado na encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII. Fizeram parte do Centro, salvo erro, o Prof. Oliveira Salazar e o futuro Cardeal-Patriarca de Lisboa, Gonçalves Cerejeira. Com a ditadura, estes sectores cristãos são absorvidos pelo regime, juntamente com monárquicos anti-liberais e republicanos de direita. É a isto que Oliveira Salazar vai chamar União Nacional.

A democracia cristã hibernou em Portugal durante a ditadura, embora a partir dos anos sessenta houvesse núcleos católicos que, inspirando-se na doutrina social da Igreja, contestavam o regime. A revista o Tempo e o Modo, posteriormente tomada pelo MRPP, teve aí a sua origem. Nomes como Alçada Batista, Bénard da Costa, M. S. Lourenço, José Escada, etc. são preponderantes nesse movimento. Também dentro dessa inspiração encontramos o grande poeta Ruy Belo.

Com o 25 de Abril, nasceram muitos partidos e pelo menos dois reclamavam-se da democracia-cristã. O PDC (Partido da Democracia-Cristã) de Silva Resende e Sanches Osório, partido menor e claramente à direita e sem relação com a tradição centrista de esquerda da democracia-cristã europeia, mas que ainda teve alguma visibilidade nos anos quentes da revolução, onde chegou a ser proibido.

Nasceu também o CDS (Partido do Centro Democrático Social) que, também ele, reivindica a ideologia da democracia cristã. O papel do CDS na revolução está envolto na ganga ideológica e conflitual da altura, mas hoje começa a ser possível perceber algumas coisas. Em primeiro lugar, o núcleo original do CDS é claramente centrista, com certos laivos à esquerda, e democrata-cristão. Se na altura, quando se olhava da esquerda ou da extrema-esquerda, se via o CDS como um partido quase fascista, isso devia-se à cegueira ideológica que os anos quentes da revolução semearam em todos nós. O CDS tinha de facto uma elite política notável (Freitas do Amaral, Lucas Pires, Adriano Moreira, Basílio Horta, Amaro da Costa, Vítor Sá Machado, Rui Pena (torrejano, segundo julgo), etc.), mas não de direita. Não é por acaso que muitos dos seus dirigentes, incluindo o pai fundador, Diogo Freitas do Amaral, acabaram por se cruzar com o Partido Socialista.

O papel do CDS na revolução foi o de integrar as franjas mais conservadoras da sociedade portuguesa, uma sociedade ainda bastante ruralizada e arcaica, apesar do crescimento industrial dos anos 60 e 70, na democracia. Há que reconhecer, hoje em dia, que o CDS o fez com elevada competência. Apesar de não ter votado a constituição de 76, o CDS manteve dentro do regime e da vida democrática sectores sociais importantes que estavam amarrados à ditadura. Havia, de facto, um “abismo” entre a notável e esclarecida elite partidária e a massa eleitoral, sendo esta muita mais direitista que aquela. Esse papel importante teve como consequência tornar o CDS, agora também PP, naquilo que é hoje, um partido médio, ideologicamente inconsistente, onde não encontramos já, embora isso seja comum aos outros partidos, o nível intelectual e político que as suas primeiras elites apresentavam.

Em resumo, podemos dizer que a democracia cristã em Portugal sacrificou-se duas vezes. A primeira vez, sacrificou-se dissolvendo-se dentro do regime autoritário de Salazar. A segunda vez, sacrificou-se para mediar a entrada dos sectores mais conservadores da sociedade dentro do regime democrático. Se o primeiro sacrifício é desprezível, o segundo é amplamente meritório e talvez seja isso que, inconscientemente, certos sectores da direita portuguesa não perdoam a Diogo Freitas do Amaral, personagem incontornável na consolidação da democracia portuguesa.

Hoje, como se pode constatar, não existe nenhuma corrente credível da democracia cristã em Portugal. Isso deve-se, por certo, aos sacrifícios que apontámos atrás e ainda à crise das ideologias. Mas haverá outras razões, nomeadamente sociológicas. Um exemplo. Que impacto poderia ter em Portugal, um país tão pouco industrializado, a encíclica de Leão XIII? Apenas nos sectores intelectuais católicos. A Rerum Novarum dirigia-se ao mundo operário, era uma tentativa da Igreja não perder esse mundo para o marxismo e o ateísmo. Só bem mais tarde a inspiração dessa encíclica pôde fermentar nos sectores operários portugueses, mas a ditadura não deu possibilidades de se formar um autêntico pensamento político democrata-cristão. Como não tivemos social-democracia, também não tivemos democracia-cristã como a europeia, nomeadamente como a que existia em Itália (onde acabou muito mal, apesar de ter começado muito bem) e na Alemanha (onde continua de boa saúde).

Continuaremos esta deambulação, com outras memórias, a partir do diálogo com o Zé Manel.

1 comentário:

zemanel disse...

Caro JCM,
curiosa esta discussão sobre o CDS.
Também de leituras dispersas e provavelmente falho de rigor científico deixo mais algumas notas sobre o CDS e a revolição.
Nascido no fervor da revolução o CDS constitui na minha óptica desde o seu inicio uma federação de reacção contra o processo revolucionário - a utilização da expressão "reacção" é feita aqui no estrito sentido atribuído pela língua portuguesa e despida de qualquer jargão políttiques. O facto de ser uma federação tornou-o mais relevante que outros partidos como o PDC ou o MIRN.
Nessa federação criada liderada por um jovem turco de Marcelo Caetano aderiram todos aqueles que recusaram o Pacto MFA-Partidos e consequentemente fizeram do CDS o único partido da constituinte a votar contra o texto da constituição. Ao CDS de 74 /75 juntaram-se jovens quadros das universidades ( sobretudo direito); profissionais liberais; proprietários industriais e agrícolas do norte assustados com a revolução a sul; militares spinolistas ( e membros de grupos de terror civis afectos a spinola).
Nesta primeira fase o CDS, como parido de reacção é sobretudo um partido de defesa: afirma-se com sua matriz cristã e centrista, defendendo o socialismo à portuguesa. Nesta fase, penso que Freitas apesar da evolução do seu pensamento político, tinha um pensamento efectivamente conservador mas percebendo que a sobrevivência da direita em portugal passava pela integração num sistema cujo modelo constitucional claramente reprovava.
A aliança governamental do PS com o CDS terá sido nesse aspecto fundamental para que o CDS resistisse num quadro político abertamente adverso. A sua passagem posterior pelo governo da AD consolida-o como partido de bases mas em que a indefinição ideológica se mantinha: Partido Conservador com Freitas e Amaro da Costa? Liberal com Lucas Pires? Populista/ pesonalista com Abecasis? Democrata-Cristão com Adriano Moreira entretanto regressado à Academia Universitária?
A primeira grande definição ideológica vem com o fim da AD e com a liderança de LUCAS PIRES que afirma com o grupo de Ofir ( Lobo xavier,Vieira Carvalho, Manuel Queiró, José Adelino Maltez - que mais tarde, em 1987, seria atraído para a recuperação no ISCSP do projecto Democrata cristão para o CDS protagonizado por Adriano Moreira e Narana Coissoró).
Lobo Xavier propõe um programa liberal nos planos económicos e sociais e individuais, apostando numa visão cristã mas de carácter anti-beato, monetarista, defendendo um arrojado probrama liberal para a segurança social, admirador confesso de Reagan e de Tatcher, personalista, defende o progresso da CEE para uma entidade federal, vai tentando empurrar o PSD para os braços do PS e a partir daí construir o grande partido da direita em Portugal (tal como sucedeu em Espanha com o PP) integrado na família europeia do Partido Popular. Lucas Pires acreditava que o PSD de Mota Pinto se assimilariam por osmose numa única força socialista e o CDS seria a força de oposição à direita. Naturalmente aqui chegados já o centrismo e a doutrina social da igreja estavam na gaveta. Um plano perfeito. Não contavam e não estava planeado era a rodagem de um certo citroen BX até à figueira da foz...
Entretanto pela esquerda as águas também se agitavam com a criação de um partido presidencial (!) - o PRD - que ameaçava o eleitorado do PS.