Sócrates, os professores e a vítima sacrificial
Como poderemos nós compreender a profunda animosidade dos professores portugueses relativamente ao governo de Sócrates? Que princípios animaram a governação socialista que mereceram a mais profunda contestação por parte de uma classe profissional. Talvez a Filosofia nos ensine algo sobre isso. Vejamos o que diz Paul Ricoeur, ao referir-se à crítica de Rawls ao utilitarismo:
"O utilitarismo é certamente uma doutrina teleológica, na medida em que define a justiça pela maximização do bem para o maior número. Quanto a este bem, aplicado às instituições, ele é apenas a extrapolação de um princípio de escolha construído ao nível do indivíduo, segundo o qual um prazer simples, uma satisfação imediata deveriam ser sacrificados em benefício de um prazer ou de uma satisfação maiores, ainda que afastados (no tempo). A primeira ideia que vem ao espírito é que há um fosso entre a concepção teleológica do utilitarismo e a concepção deontológica em geral: ao extrapolar do indivíduo para o todo social, como o faz o utilitarismo, a noção de sacrifício toma um aspecto medonho - não é um prazer privado que é sacrificado, mas toda uma camada social; o utilitarismo, como um discípulo francês de René Girard, Jean-Pierre Dupuy, sustenta, implica tacitamente um princípio sacrificial que equivale a legitimar a estratégia do bode expiatório." [Paul Ricoeur (1991). "John Rawls: de l'autonomie morale à la fiction du contrat social", in Lectures 1. Paris: Seuil, pp. 201-202]
Perante um problema real, o défice das contas públicas, o governo decidiu um caminho estratégico utilitarista. Os professores foram escolhidos como vítimas sacrificiais, em nome do bem-estar do maior número. Havia dois caminhos a trilhar relativamente aos salários e carreiras profissionais dos servidores do Estado. Um caminho de carácter deontológico, onde os sacrifícios seriam distribuídos com equidade por todos os que exercem funções no Estado, ou o caminho escolhido pelo governo. A proletarização do professorado português, decidida pelo actual governo, é escandalosa e originou e origina ainda profundos sentimentos de injustiça entre os professores. O contrato que o Estado tinha assinado, e com o qual tinha chamado muita gente à profissão, foi rasgado em nome de uma moral utilitarista: uma parte é sacrificada em nome do bem-estar do maior número. Mas a democracia não implicará este tipo de sacrifício? Não será politicamente legítimo sacrificar o menor número em nome dos interesses do maior número?
Do ponto de vista político, o princípio sacrificial está ausente da democracia. Esta existe para que não haja vítimas sacrificiais em política. A vitória de um partido não implica o sacrifício dos partidos perdedores. A democracia não legitima nenhuma opção de criação de vítimas sacrificiais ou de bodes expiatórios. Mas moralmente não será aceitável a posição do governo? Não será eticamente bom que o menor número seja sacrificado em nome do bem da maioria? Vejamos novamente o que diz Paul Ricoeur:
"A resposta kantiana seria que o menos favorecido numa divisão desigual de vantagens não deveria ser sacrificado, porque é uma pessoa, o que é uma maneira de dizer que, numa linha do princípio sacrificial, a vítima potencial da distribuição seria tratada como um meio (como uma coisa) e não como um fim (como uma pessoa)." [Idem, pp. 202]
O que o governo fez, e fê-lo de várias formas, foi tratar os professores portugueses como meras coisas e não como pessoas. Não foi apenas no facto de os ter escolhido como bodes expiatórios a sacrificar no altar do défice público. Foi também, por exemplo, no concurso de professores titulares, que mais do que um verdadeiro concurso foi um jogo de azar, irracional como todos os jogos de azar. Quando se tratam os seres humanos como pessoas, não se podem seleccionar os melhores através do acaso. Isso pode acontecer, se se considerar que os professores são meras coisas e não pessoas. Foi isso que o governo pensou e realizou: uma coisa não tem direito a ser tratada racionalmente. Outro exemplo deste tratamento como mera coisa foi a reacção do governo às manifestações de professores. Foi como se não tivessem acontecido. Não estiveram lá pessoas que mereceriam ser ouvidas na sua contestação, mas meras coisas, seres irracionais que não vale a pena escutar.
O que está, muitas vezes de forma bem inconsciente, por trás da revolta dos professores é o protesto pelo facto de um governo os ter tratado como meras coisas, bodes expiatórios, que deveriam suportar todo o tipo de sacrifícios, para o bem da maioria e para a tranquilidade dos governantes. Nunca uma política foi tão ignóbil como a deste governo relativamente aos professores. Repare-se bem que não é o facto dos professores terem de fazer sacrifícios para que haja equilíbrio das contas públicas. Eu acho que todos os que servem a comunidade nas instituições públicas o deveriam fazer, pois a comunidade não suporta o encargo que tem com aqueles que a servem. Isso é uma coisa, outra é ser vítima sacrificial, mera coisa. Foi esta a escolha de Sócrates coma conivência de Maria de Lurdes Rodrigues. É isto que torna este governo odioso aos olhos dos professores.
Eu compreendo que um partido da direita possa reger-se pelo princípio da vítima sacrificial. Posso compreender que os partidos revolucionários sejam partidos que necessitam de vítimas sacrificiais. O incompreensível é que um partido de esquerda moderada busque fundamento, na sua acção governativa, no princípio da sacrificialidade. O que mostra uma coisa bem interessante no actual PS. Ele é dirigido por dois tipos de nostálgicos. Por um lado, há os nostálgicos de direita, liberais travestidos de socialistas; por outro, há os nostálgicos da revolução. De partido da liberdade e da equidade, o PS transformou-se nesta amálgama obscura e insidiosa, onde a consideração pela pessoa e o culto da liberdade desapareceram.
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