O corpo de Deus e o corpo humano
Ontem foi feriado, hoje é, para os católicos, dia santo de guarda. Como tudo ou quase tudo no cristianismo, o dia de hoje é um dia estranho. O dia do corpo de Deus. Por norma, nas religiões monoteístas, onde o cristianismo se inclui, Deus é puro espírito, logo é uma contradição falar no corpo de Deus. A ideia do Corpo de Deus refere-se à presença substancial do corpo e do sangue de Cristo na hóstia consagrada. Deixemos, porém, de lado os mistérios cristãos, a substância mítica que funda a religião, e olhemos para outro lado, para a questão do corpo.
O cristianismo vive de uma ambiguidade que se tornou estrutural relativamente ao corpo. Por um lado, o corpo com as suas inclinações é visto como negativo, como carne oposta ao espírito, carne votada à corrupção, ao desaparecimento, à sedução e à perdição. Toda esta vertente cristã parece um decalque das doutrinas platónicas e neo-platónicas, provenientes da Grécia clássica. Mas há um outro lado do cristianismo, aquele que faz com Deus tome corpo e carne de homem, aquele que diviniza esse mesmo corpo, que recupera o corpo e a carne viva dos homens da miséria a que a filosofia platónica e outras tradições religiosas os tinham condenado. De certa forma, o cristianismo é a religião do corpo e da sua celebração. Se Deus encarnou, tomou corpo, então o corpo é uma coisa boa e não pura negatividade.
A história do cristianismo talvez não seja mais do que o conflito que o atravessa, conflito entre o platonismo, que foi sendo absorvido nos primeiros séculos da era cristã e que se sedimentou com Agostinho de Hipona, e as teorias da encarnação de Deus num corpo humano e as da promessa da ressurreição da carne. Se há uma coisa que está em causa no cristianismo é a valorização do corpo humano, e por extensão a valorização da corporalidade e, em última instância, do mundo, esse corpo dos corpos.
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