Ver em DVD - A Fúria da Razão
A “Planeta DeAgostini” está a editar, a preços relativamente sensatos, uma colecção de filmes de e com Clint Eastwood, o que é não só ocasião para coleccionar os DVD, como para rever e, em alguns casos, ver parte significativa da obra do actor e realizador.
Comece-se com um filme de 1971, onde ainda não se está perante Clint Eastwood realizador. “A Fúria da Razão” (Dirty Harry) é um thriller policial, onde Eastwood desempenha o papel do detective Harry Callahan. A realização pertence a Don Siegel e, curiosamente, encontramos no filme já muito do que vai ser a obra de Clint Eastwood, enquanto realizador.
A trama romanesca gira em torno de um psicopata que chantageia a cidade de S. Francisco, exigindo um pesado resgate para não matar alguém, mais ou menos ao acaso. Para além do desempenho excelente de Eastwood, o filme surge como uma reflexão estética sobre um conflito que percorre não apenas as sociedades ocidentais, mas também a própria filosofia: o conflito entre o «direito natural» e o «direito positivo».
Para quem não é iniciado neste tipo de linguagem, a coisa explica-se facilmente. O «direito positivo» é o direito que realmente existe nas várias sociedades, produto do processo legislativo. São as leis e as regras que factualmente regulam a sociedade. O «direito natural» é, fundamentalmente, uma concepção filosófica sobre aquilo que é justo e o que não o é. O que acontece muitas vezes é que existe um afastamento, se não mesmo um conflito, entre as leis existentes e os ideias de justiça de uma sociedade.
Esta é uma temática que se encontra em Eastwood e que neste filme é o eixo da acção narrativa. A lei e os regulamentos aplicados à acção policial acabam por favorecer e proteger o criminoso e dar-lhe a possibilidade de continuar a matar inocentes. É nesta fissura que age o duro detective Callahan, contrapondo o sentimento de justiça, de que se sente investido, e a positividade da lei e dos seus representantes, que acabam por ser impotente perante o crime, se não mesmo seus protectores.
A solução encontrada pelo realizador, Don Siegel, é bastante eastwoodiana. É o indivíduo, Callahan, que pela sua acção consegue fazer a síntese entre o direito positivo e o ideal de justiça, o direito natural. Repousa na pessoa singular, concreta e real esse dever de evitar que lei e justiça divirjam e, dessa forma, a própria lei se torne um símbolo de opressão e de injustiça. Esta perspectiva acaba por recolocar a responsabilidade individual como única resposta ao trágico da acção.
Entre o ideal que nos move e as circunstâncias em que agimos, só o indivíduo poderá fazer a síntese que impeça o triunfo da injustiça. Está aqui muito do posterior Eastwood: o herói singular que vive no dilaceramento da justiça e do direito.
Apesar de um certo estereótipo que marca as personagens – são demasiado «lisas» quando comparadas com as de Eastwood realizador –, a dinâmica narrativa é sempre segura e eficaz, conseguindo dar coerência estética ao problema ético que percorre o filme, sem recurso à retórica, como, por exemplo, acontece em muito cinema português de «mensagem». Há «mensagem», mas ela está toda na acção. Leia quem puder.
Comece-se com um filme de 1971, onde ainda não se está perante Clint Eastwood realizador. “A Fúria da Razão” (Dirty Harry) é um thriller policial, onde Eastwood desempenha o papel do detective Harry Callahan. A realização pertence a Don Siegel e, curiosamente, encontramos no filme já muito do que vai ser a obra de Clint Eastwood, enquanto realizador.
A trama romanesca gira em torno de um psicopata que chantageia a cidade de S. Francisco, exigindo um pesado resgate para não matar alguém, mais ou menos ao acaso. Para além do desempenho excelente de Eastwood, o filme surge como uma reflexão estética sobre um conflito que percorre não apenas as sociedades ocidentais, mas também a própria filosofia: o conflito entre o «direito natural» e o «direito positivo».
Para quem não é iniciado neste tipo de linguagem, a coisa explica-se facilmente. O «direito positivo» é o direito que realmente existe nas várias sociedades, produto do processo legislativo. São as leis e as regras que factualmente regulam a sociedade. O «direito natural» é, fundamentalmente, uma concepção filosófica sobre aquilo que é justo e o que não o é. O que acontece muitas vezes é que existe um afastamento, se não mesmo um conflito, entre as leis existentes e os ideias de justiça de uma sociedade.
Esta é uma temática que se encontra em Eastwood e que neste filme é o eixo da acção narrativa. A lei e os regulamentos aplicados à acção policial acabam por favorecer e proteger o criminoso e dar-lhe a possibilidade de continuar a matar inocentes. É nesta fissura que age o duro detective Callahan, contrapondo o sentimento de justiça, de que se sente investido, e a positividade da lei e dos seus representantes, que acabam por ser impotente perante o crime, se não mesmo seus protectores.
A solução encontrada pelo realizador, Don Siegel, é bastante eastwoodiana. É o indivíduo, Callahan, que pela sua acção consegue fazer a síntese entre o direito positivo e o ideal de justiça, o direito natural. Repousa na pessoa singular, concreta e real esse dever de evitar que lei e justiça divirjam e, dessa forma, a própria lei se torne um símbolo de opressão e de injustiça. Esta perspectiva acaba por recolocar a responsabilidade individual como única resposta ao trágico da acção.
Entre o ideal que nos move e as circunstâncias em que agimos, só o indivíduo poderá fazer a síntese que impeça o triunfo da injustiça. Está aqui muito do posterior Eastwood: o herói singular que vive no dilaceramento da justiça e do direito.
Apesar de um certo estereótipo que marca as personagens – são demasiado «lisas» quando comparadas com as de Eastwood realizador –, a dinâmica narrativa é sempre segura e eficaz, conseguindo dar coerência estética ao problema ético que percorre o filme, sem recurso à retórica, como, por exemplo, acontece em muito cinema português de «mensagem». Há «mensagem», mas ela está toda na acção. Leia quem puder.
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