31/05/07

O Grande Dador

Tudo o que é aberrante ou absurdo procura a capa da bondade para se cobrir e assim ganhar legitimidade perante o olhar público. O problema da doação de órgãos é efectivo e real, e pode mesmo acontecer que na Holanda seja particularmente intrincado. Mas nada disso justifica o “reality show” O Grande Dador (The Big Donor Show), no qual uma mulher de 37 anos, em estado terminal (sic), vai decidir amanhã perante o público a qual dos três concorrentes vai doar os rins. A justificação legitimadora parece ser a necessidade de chamar a atenção para o problema da doação.

À empresa “proprietária” do concurso não falta espírito de iniciativa e capacidade de inovar. Parece que a fileira de produtos a explorar não tem fim. Mas para pensar este tipo de acontecimento não basta o recurso à retórica sobre a degradação dos valores ou, mesmo, à referência à vacuidade da sociedade do espectáculo. Tudo isto é verdade, mas o problema não é meramente social ou moral. É um problema ontológico.

O que este tipo de programas vem trazer à luz são as dimensões patológicas do ser, sejam as doenças físicas, sejam as psíquicas, sejam as sociais. Mas ao torná-las patentes, ao manifestá-las, estes programas cumprem uma função essencial: a dimensão patológica do ser transforma-se numa forma de ser patológica. Mas como os modos de ser patológicos se patenteiam e se encontram justificados e legitimados pelo espectáculo da sua exposição pública, eles caminham para a sua aceitação como normalidade. Daqui a tornarem-se a norma ou a regra geral, vai um passo.

O que é importante interrogar e pensar é a necessidade que está a desencadear este tipo de mutações. E enganar-se-á quem vir no fenómeno um mero oportunismo social e uma pura estratégia económica. Por detrás de tudo isto, esconde-se qualquer coisa de inominável e, por isso, impensável. O que significa aqui o «impensável»? Significa que não se dá ao conceito, que não se deixa circunscrever e limitar e, por isso, é inapreensível. Chamemos-lhe, então, o “inapreensível”.

É este “inapreensível” que se manifesta na fluidez dos fenómenos que as nossas sociedades sentem confusamente como degradantes, mas aos quais se agarram seduzidas por qualquer coisa que não sabem explicar, que as convoca para o espectáculo, que as agarra e as prende. O que não se pode apreender tem o estranho condão de prender as pessoas, de as fixar nessa terra de ninguém que se esconde em todos este tipo de espectáculos. O «inapreensível» prende as pessoas à luz atrás da qual ele se oculta. Nós prendemo-nos àquilo que nos dá sentido. Ora o «inapreensível» – outra maneira de dizer o sem sentido, pois não tem conceito, nem limite – é o que dá sentido às pessoas. Mas como só se pode doar aquilo que se tem e só se pode receber aquilo que é doado, o que as pessoas recebem é o sem-sentido, doado pelo «inapreensível», que nelas toma conta de tudo – ser e vida.

Neste tipo de espectáculos, não há entretenimento, para usar esta horrível palavra em voga, mas uma operação ontológica onde as pessoas vão em busca do sentido para a sua existência e o recebem na forma de não-sentido. Esta contradição ôntica conduz à algo de efectivamente real: o dilacerar que atinge as pessoas devido ao choque entre o desiderato do sentido e a sua recepção como não-sentido produz a nulidade.

O curioso de tudo isto – e curioso deve ser entendido no sentido daquilo que dá que pensar e que merece ser pensado – é que nós vemos os resultados (a redução das pessoas a nulidades ônticas), mas escapa-nos a causa eficiente e produtora desses resultados. Mas ao escapar-nos a causa eficiente, escapa-nos, também, a causa final. Para que serve tudo isso?

Tomamos consciência do resultado – a nulidade ôntica dos homens –, mas não sabemos o que o produz, nem por que razão, entendida como finalidade, o produtor o produz. Se queremos tactear esse continente que envolve a montante e a jusante a nulidade ôntica dos homens, temos apenas a possibilidade de olhar para ela, nulidade, para descobrir no produto a marca do produtor e nesta a sua finalidade. A questão é mais radical do que o niilismo entendido como a desvalorização de todos os valores. A nulidade é a des-realização de toda a “res”, de toda a coisa, de todo o ser, incluindo aí o homem. É esta des-realização da “res” (coisa) que opera no mundo. Não é apenas nos “reality show”. Convive connosco no mundo do trabalho, na escola, na universidade, em todo o sítio onde um certo espírito de iniciativa se agita. Sempre que as instituições começam a perder o sentido humano, sempre que uma espécie de “reality show” se apossa de um sítio e de uma forma de trabalhar, encontramos uma manifestação desta des-realização da “res”.

Mesmo ao nosso lado, na inconsciência que é a sua, estão os agentes do «inapreensível», do Grande Dador. O seu papel não é diferente daquele que está guardado aos produtores e realizadores dos “reality show”, apesar de aparentemente tratarem de coisas sérias. A função, no entanto, é “des-realizar” o dado, “des-fazê-lo” enquanto se monta um extenso espectáculo. Se for possível olhar com atenção o mundo da vida, o mundo onde os homens trabalham e existem, depressa se descobrirá que cada vez mais a estrutura que o sustenta não é diferente dos “reality show”. Olhem-se as escolas, as instituições públicas, os bancos, as grandes empresas de distribuição, mas também os clubes de futebol. Em todo o lado, um mesmo fenómeno se manifesta. Mesmo na política. As ditas “gaffes” dos ministros – Mário Lino, Manuel Pinho, Correia de Campos –, não são “"gaffes”, mas a própria natureza da coisa que, mesmo no núcleo da ordem e do poder, se torna patente, pois o poder tornou-se um imenso “reality show”, talvez o lugar por excelência onde o “inapreensível” opera.

O Grande Dador. Eis uma bela e enigmática metáfora. O Grande Dador é aquele que nos fala para além da morte – do nada – e que assim nos dá o sentido que carecemos. Mas esse sentido é o não-sentido. Sim, o Grande Dador é o outro nome do «inapreensível». Que estranha dádiva tem ele para doar.

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