Em louvor da abulia
Em Syllogismes de l’Amertume, Cioran, num dos seus aforismos, diz: “Os abúlicos, porque deixam as ideias sem as alterar, deveriam ser os únicos a ter acesso a elas. Quando os atarefados se apropriam delas, a doce confusão quotidiana organiza-se como tragédia.”
O mundo moderno, fundamentalmente o mundo pós-Marx, tornou-se o imenso palco de uma tragédia desmesurada. Por trás dessa tragédia está a força do pensamento. Aqui o termo força deve ser compreendido no sentido de violência. Pensar é o exercício de uma violência, como o notou Heidegger, de uma violência muito específica: reduzir o mundo real e concreto na sua multiplicidade de formas ao mundo asséptico e organizado das relações entre conceitos. Um conceito não é uma coisa, apenas uma representação. Que haverá de mais violento do que esta redução das coisas a puras representações mentais?
Este supremo exercício da violência é subtil, o mais das vezes só alguns – a quem dão o equívoco nome de filósofos – dão por ele. Imaginemos que estamos perante um terramoto. A terra torce e abana, mas talvez a vida ainda possa continuar. A tragédia vem depois, com as réplicas e o possível maremoto. Quando os homens querem levar à prática os seus conceitos (esses terramotos originários) a tragédia começa, pois a realidade está muito para além desses conceitos.
Porque falei em Marx? Por causa das suas 11 teses ad Feuerbach. Não passam de um repositório de apelos ao crime. Não me estou apenas a referir à célebre 11.ª tese, “Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar.” Observe-se a 2.ª tese, “É na prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a terrenalidade do seu pensamento.” Está aqui tudo: a violência, a tragédia, a coacção infinita sobre a vida e o homem. Marx tinha uma fixação na filosofia de Hegel. Mas esta, um poderoso exercício intelectual, uma redução do existente ao lógico, não tinha repercussões práticas. Na sua juventude, Marx julgou dever realizar a filosofia, fazer com que a realidade se adequasse a ela. A tragédia e a decepção que foi a experiência comunista começou aqui. A doce confusão, la douce pagaille, no dizer de Cioran, tornou-se no mundo planificado e sobrevigiado até descambar no goulag. Realizar a filosofia só pode levar à maior das tragédias.
Mas se falei de Marx, não foi por causa do marxismo, mas de uma nova forma de violência conceptual que se abate sobre o mundo. A vida quotidiana, aquele onde os homens vivem la douce pagaille, é cada vez mais colonizada pelo pensamento, pelos conceitos, pelos esquemas abstractos. As sociedades pós-modernas ou tardo-capitalistas, na linguagem de Habermas, foram colonizadas por esta infinita necessidade de controlo da vida prática pelos conceitos teóricos. As ciências sociais e humanas, com destaque para a economia, a sociologia e as chamadas «ciências da educação», constituem-se como novas formas de opressão do quotidiano dos homens. Não pelo seu aspecto científico enquanto tal, mas pela obsessão daqueles que as utilizam no mundo quotidiano para vergar o real aos conceitos e às prescrições derivadas desses campos teóricos. Uma violência sem fim cai sobre os cidadãos, sob a forma do discurso mole da avaliação, da organização e da eficiência. Onde deveria prontificar a fluidez vital, os contactos informais, a responsabilidade e a liberdade individuais, ganha preponderância o colectivo - não se confunda com o comunitário -, os mecanismos abstractos, a coação inominável. As ciências sociais, económicas, educacionais e afins são o suporte do crime, o lugar de onde os bandoleiros disparam sobre os inocentes.
A razão emancipou-se do corpo, individual e social, onde estava ancorada, e num delírio sem fim está a tornar a vida dos homens numa tragédia. O inferno é o delírio da razão autónomo, do racionalismo sem razoabilidade. O mundo foi tomado pelos atarefados de Cioran, os quais, sem qualquer pudor, estão apostados em transformar cada canto da vida num indizível gulag. O pior é que esses atarefados, sempre dispostos a manejar umas ideias e uns conceitos e a pô-los em prática, vivem ao nosso lado, conhecemo-los, falamos com eles. Mas não nos iludamos, eles não são nossos amigos. Emprenhados pelo delírio da razão técnica, exaltados pela glória que imaginam que os espera, destruirão quem quer que seja que se oponha ao seu desígnio de tornar o mundo racional, de violentarem a vida em nome do esquematismo abstracto que um dia, numa qualquer universidade – outro local cada vez mais suspeito – lhe sopraram.
Mas então a filosofia não será um crime? Não, os filósofos sabem que a filosofia não passa de um jogo, uma forma secundária de literatura. Os filósofos não se imaginam a transformar o mundo das ideias em realidade através da prática. No fundo, Marx nunca foi um filósofo. Os filósofos, apesar de encheram a boca com a razão, sabem muito bem quais os seus limites e não têm ilusões sobre a realização prática da filosofia. Não são abúlicos, mas levam uma vida inteira para se tornarem abúlicos. A filosofia é o exercício de domesticação das veleidades da vontade, isto é, da razão prática. É por isso que ela é um amor à sabedoria. Será sabedoria quando o filósofo for tomado pelo silêncio, pelo grande silêncio.
O mundo moderno, fundamentalmente o mundo pós-Marx, tornou-se o imenso palco de uma tragédia desmesurada. Por trás dessa tragédia está a força do pensamento. Aqui o termo força deve ser compreendido no sentido de violência. Pensar é o exercício de uma violência, como o notou Heidegger, de uma violência muito específica: reduzir o mundo real e concreto na sua multiplicidade de formas ao mundo asséptico e organizado das relações entre conceitos. Um conceito não é uma coisa, apenas uma representação. Que haverá de mais violento do que esta redução das coisas a puras representações mentais?
Este supremo exercício da violência é subtil, o mais das vezes só alguns – a quem dão o equívoco nome de filósofos – dão por ele. Imaginemos que estamos perante um terramoto. A terra torce e abana, mas talvez a vida ainda possa continuar. A tragédia vem depois, com as réplicas e o possível maremoto. Quando os homens querem levar à prática os seus conceitos (esses terramotos originários) a tragédia começa, pois a realidade está muito para além desses conceitos.
Porque falei em Marx? Por causa das suas 11 teses ad Feuerbach. Não passam de um repositório de apelos ao crime. Não me estou apenas a referir à célebre 11.ª tese, “Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar.” Observe-se a 2.ª tese, “É na prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a terrenalidade do seu pensamento.” Está aqui tudo: a violência, a tragédia, a coacção infinita sobre a vida e o homem. Marx tinha uma fixação na filosofia de Hegel. Mas esta, um poderoso exercício intelectual, uma redução do existente ao lógico, não tinha repercussões práticas. Na sua juventude, Marx julgou dever realizar a filosofia, fazer com que a realidade se adequasse a ela. A tragédia e a decepção que foi a experiência comunista começou aqui. A doce confusão, la douce pagaille, no dizer de Cioran, tornou-se no mundo planificado e sobrevigiado até descambar no goulag. Realizar a filosofia só pode levar à maior das tragédias.
Mas se falei de Marx, não foi por causa do marxismo, mas de uma nova forma de violência conceptual que se abate sobre o mundo. A vida quotidiana, aquele onde os homens vivem la douce pagaille, é cada vez mais colonizada pelo pensamento, pelos conceitos, pelos esquemas abstractos. As sociedades pós-modernas ou tardo-capitalistas, na linguagem de Habermas, foram colonizadas por esta infinita necessidade de controlo da vida prática pelos conceitos teóricos. As ciências sociais e humanas, com destaque para a economia, a sociologia e as chamadas «ciências da educação», constituem-se como novas formas de opressão do quotidiano dos homens. Não pelo seu aspecto científico enquanto tal, mas pela obsessão daqueles que as utilizam no mundo quotidiano para vergar o real aos conceitos e às prescrições derivadas desses campos teóricos. Uma violência sem fim cai sobre os cidadãos, sob a forma do discurso mole da avaliação, da organização e da eficiência. Onde deveria prontificar a fluidez vital, os contactos informais, a responsabilidade e a liberdade individuais, ganha preponderância o colectivo - não se confunda com o comunitário -, os mecanismos abstractos, a coação inominável. As ciências sociais, económicas, educacionais e afins são o suporte do crime, o lugar de onde os bandoleiros disparam sobre os inocentes.
A razão emancipou-se do corpo, individual e social, onde estava ancorada, e num delírio sem fim está a tornar a vida dos homens numa tragédia. O inferno é o delírio da razão autónomo, do racionalismo sem razoabilidade. O mundo foi tomado pelos atarefados de Cioran, os quais, sem qualquer pudor, estão apostados em transformar cada canto da vida num indizível gulag. O pior é que esses atarefados, sempre dispostos a manejar umas ideias e uns conceitos e a pô-los em prática, vivem ao nosso lado, conhecemo-los, falamos com eles. Mas não nos iludamos, eles não são nossos amigos. Emprenhados pelo delírio da razão técnica, exaltados pela glória que imaginam que os espera, destruirão quem quer que seja que se oponha ao seu desígnio de tornar o mundo racional, de violentarem a vida em nome do esquematismo abstracto que um dia, numa qualquer universidade – outro local cada vez mais suspeito – lhe sopraram.
Mas então a filosofia não será um crime? Não, os filósofos sabem que a filosofia não passa de um jogo, uma forma secundária de literatura. Os filósofos não se imaginam a transformar o mundo das ideias em realidade através da prática. No fundo, Marx nunca foi um filósofo. Os filósofos, apesar de encheram a boca com a razão, sabem muito bem quais os seus limites e não têm ilusões sobre a realização prática da filosofia. Não são abúlicos, mas levam uma vida inteira para se tornarem abúlicos. A filosofia é o exercício de domesticação das veleidades da vontade, isto é, da razão prática. É por isso que ela é um amor à sabedoria. Será sabedoria quando o filósofo for tomado pelo silêncio, pelo grande silêncio.
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