04/05/07

O trabalho da memória

Estranhamente, disse Aurach, essa tarde passada em Wurzburg [há muitos anos, em 1933] com o tio Leo só lhe viera à memória uns meses antes quando, ao folhear um álbum de ilustrações acabado de sair sobre a obra de Tiepolo, ficara preso às reproduções do monumental fresco de Wurzburg, às suas beldades brancas e negras, ao mouro ajoelhado com o guarda-sol e à magnífica amazona com o toucado de penas. Passei um serão inteiro, disse Aurach, sentado com essas imagens, procurando, mediante uma lupa, penetrar mais profundamente nelas. E foi então que, pouco a pouco, foi sugerindo a recordação desses dia de Verão em Wurzburg, do regresso de Munique, da situação de lá, cada vez mais insuportável, do ambiente cada vez mais sufocante de casa dos meus pais, do silêncio cada vez mais denso. [W. G. Sebald, Os Emigrantes]


A narrativa de Sebald constrói-se à imagem deste pequeno excerto. Há qualquer coisa que desencadeia a reminiscência e, como um detective ou um herói dos diálogos platónicos, a personagem vai à procura de uma verdade recalcada no fundo, o mais abissal, da sua consciência. Este processo narrativo encontra a sua consumação no romance Austerlitz, onde este, Austerlitz, vai à procura da sua longínqua infância, da qual nada sabia, enterrada não apenas no seu esquecimento, mas também no lugar negro da história dos homens do século XX. Não será preciso dizer que Austelitz e Aurach são judeus e que na altura do consulado nazi, os pais conseguiram fazê-los sair da Alemanha, antes de serem, os pais, deportados para os campos de concentração e morrerem.

O romance é a prova da vitalidade do platonismo. Não há narrativa possível sem memória e não há memória sem o exercício da reminiscência, desse momento cuja dialéctica nos leva e eleva à verdade, mesmo que esta não seja, como diz Cioran, mais do que um erro exilado na eternidade.
[Imagem: vista geral do fresco de Wurzburg, de Tiepolo]

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