03/05/07

Pedro o Louco

Pierrot le Fou, do cineasta francês Jean-Luc Godard, passou ontem no “Virgínia”. Este filme é uma das imagens de marca da chamada «Nouvelle Vague», pelo menos de um retomar do fôlego desse movimento cinematográfico, e teve uma enorme influência na minha geração. Esta influência é, porém, tardia e deve-se ao atraso cultural que a ditadura impôs ao país. De facto, o filme é de 1965, tinha eu então 9 anos e interessava-me por tudo menos pela «Nouvelle Vague». Não se pense que este tudo era muito intelectual. Não era, pelo contrário.

Mas na minha já longínqua juventude era de bom-tom, pelo menos em certos meios onde me movia, gostar do novo cinema francês, da nova literatura francesa e até da nova filosofia francesa, embora tudo isso, naquela altura, já não fosse propriamente novo. Quando ontem revi o filme apenas reconheci algumas cenas, com mais clareza aquela onde se vê o cineasta Samuel Fuller a fumar e a explicar, naquele tom de americano que nunca deixa de mastigar, o que é o cinema. Como reagi a um filme de vanguarda com 42 anos?

Reagi com duplicidade. Por um lado, com uma certa nostalgia dos tempos em que a França e a cultura francesa representavam ainda alguma coisa. Pierrot le Fou é um produto acabado dessa cultura onde se cruzavam o existencialismo sartriano e o estruturalismo, de Lacan a Althousser e a Lévy-Strauss, a literatura do «Nouveau Roman» de Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor, Margarite Duras, entre outros, e uma boémia para-intelectual e marcadamente de «gauche». Hoje, porém, reconheço que muito dessa cultura já nos meus tempos estava um pouco datada. É esse datamento, do ponto de vista artístico, que também encontro no filme.

Todo aquele trabalho de colagem de referências (cinematográficas, literárias, musicais, etc.) que constrói e, ao mesmo tempo, desconstrói uma trama narrativa, que combina uma espécie de filme policial e de amor, sob a suspeição de um qualquer interesse vagamente político, me parece hoje entediante. Há demasiada necessidade de parecer inovador e essa necessidade de aparência acaba por matar a qualidade da inovação. Era como se fosse necessário estar a cada momento a fazer cortes com o passado e a executar, de princípio ao fim, toda a arte narrativa anterior. Isto está na massa do sangue dos franceses. Esta ideia de corte aparece, por exemplo, na filosofia da ciência de um Bachelard, ou na filosofia mais política (marxiana) de Althousser. Mas o pai de toda esta gente é o longínquo Réné Descartes com o «seu corte» com toda a tradição filosófica anterior.

Do ponto de vista cultural a obra apresenta, no entanto, um interesse assinalável. Não apenas por ser um dos filmes chave de Godard, mas porque permite perceber o ambiente cultural que antecedeu o denominado Maio de 68. A revolta estudantil dos jovens filhos família contra o tédio da vida burguesa está já prefigurado em Pierrot le Fou (Pedro o Louco).

Olhar o filme do ponto de vista sócio-cultural e como prenúncio do espírito do tempo a vir é um exercício didáctico interessante e estimulante. É um documento que vale a pena. Outra coisa, porém, é olhá-lo como obra de arte. Será que ainda se poderá considerar uma obra-prima como durante os anos sessenta e setenta foi incensado? Pessoalmente, não o levaria no lote dos 20 filmes que temos o direito de levar para a tal ilha deserta, de onde não há retorno.

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