24/05/07

Ser anacrónico

Houve um tempo em que gostaria de estar à frente do tempo, descobrir o inédito onde poucos o tinham visto. Amava a vanguarda, esse símbolo moderno do provir, e as suas rupturas, como se isso fosse o verdadeiro sentido da vida. Como, hoje em dia, essas levianas pretensões me parecem nefastas, sintomas de uma moléstia pouco digna de consideração.

Mesmo uma educação tradicional centra a criança na voragem do futuro. É preciso ser absolutamente indigente ou incomensuravelmente rico para que o amor pelo passado não seja apenas um culto reactivo, uma experiência do ressentimento, revolta contra a vida.

Ser anacrónico é a esperança dos que não cultuam o futuro nem o passado. Pertencer a todos os tempos e a nenhum. Instalar-se na Grécia e de seguida na Renascença. Passear-se por Roma, para logo caminhar em Konigsberg e, boquiaberto, ver o professor Kant na pontualidade dos seus passeios. Em todos os tempos ser estrangeiro e estar neste tempo como se a ele não pertencesse.

Quando falam em utopias os intestinos revolvem-se-me. Recusar o espaço é o pecado maior, é recusar o corpo, os corpos que amámos, os lugares que nos acolheram. O tempo, porém, é um déspota implacável que a cada instante nos pontapeia, como se exibisse uma ordem de expulsão nunca completamente cumprida. O tempo expulsa-nos do espaço, rouba-nos os corpos amados, descorporaliza-nos. O tempo é o verdadeiro significado da utopia.

Em vez da utopia a ucronia. Melhor, a anacronia. Ser anacrónico e nada mais do que anacrónico. Quanto tempo demorará a viagem para o não-tempo?

1 comentário:

jlf disse...

Bela reflexão.
Boa peça.
Gostei.