16/05/07

Língua Portuguesa

Há tempos, João Bénard da Costa dizia, na sua crónica semanal no “Público”, que João Ferreira Annes d’Almeida é um dos grandes mestres da língua portuguesa. Quem será este João d’Almeida? É o tradutor, julgo que o primeiro, da Bíblia para Português. Converteu-se ao protestantismo e toda a sua vida foi dedicada à tradução das Escrituras. Viveu no século XVII. Mas não é do tradutor que quero falar, mas da qualidade literária da sua tradução. Comparemos duas traduções dos mesmos versículos:

Tradução dos Missionários Capuchinhos: “Não fareis mal algum à viúva e ao órfão. Se lhes fizerdes algum mal, clamarão por Mim e Eu escutá-los-ei” (Êxodo, 22, 22-23)

Tradução de João Ferreira d’Almeida: “A nenhuma viúva nem órfão afligireis. Que se tu afligindo os afligirdes, e eles clamando clamarem a mim, eu, ouvindo ouvirei seu clamor” (Êxodo, 22, 22-23)

Entre o português prosaico dos padres capuchinhos e o português do século XVII de Ferreira d’Almeida há uma distância abissal. No texto deste, tudo se torna dinâmico, como se a construção conseguisse imitar a própria vida, insuflar-lhe espírito e cativar a imaginação do leitor. A utilização do gerúndio, que exprime o decurso de uma acção, é uma estratégia que realça essa mesma acção. Com Ferreira d’Almeida nós “vemos” a acção e o seu resultado – «afligindo os afligirdes»; «clamando clamarem»; «ouvindo ouvirei» – que, nestes exemplos, se exprime sempre no futuro, nos primeiros dois casos, do conjuntivo, no terceiro, no indicativo.

A construção dos padres capuchinhos corresponde ao português corrente e regular. A prosa de Ferreira d’Almeida rouba esse português ao hábito e, por estratégia retórica, descativa a linguagem da corrupção quotidiana. Esta Bíblia está a ser editada pelo Círculo de Leitores e pela Assírio e Alvim, sob a direcção do poeta José Tolentino Mendonça, e quem ama a língua portuguesa tem nela um objecto de dedicado culto.

1 comentário:

jlf disse...

Diferença abissal, não tenha qualquer dúvida.
Nem é por se traduzir mais agarrado ao pé da letra que se é mais rigoroso no respeito pelo autor, todos sabemos.
Os frades usaram uma lente. Mas também Annes d'Almeida que além disso ganhou asas...
Que diferentes maneiras de dizer o mesmo.
(Aí está, exactamente, aquilo de que falava o poeta!)