Algumas Dádivas - 2. Ar
O ar cobria de sombras o rosto.
E em cada boca havia uma roseira
onde nascia leve e suado o mosto.
[Micropoemas, "Algumas Dádivas"]
A verdade é um erro exilado na eternidade. (Cioran)
O ar cobria de sombras o rosto.
E em cada boca havia uma roseira
onde nascia leve e suado o mosto.
[Micropoemas, "Algumas Dádivas"]
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No fruto, pulsa o ventre;
e o corpo acetinado e sujo
é esmagado na semente.
[Micropoemas, "Algumas Dádivas"]
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A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
In O Amor Natural, 1992
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E tudo que eu pensei
e tudo que eu falei
e tudo que me contaram
era papel.
E tudo que descobri
amei
detestei:
papel
Papel quanto havia em mim
e nos outros, papel
de jornal
de parede
de embrulho
papel de papel
papelão.
In As Impurezas do Branco, 1973
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Começou festiva a semana:
espiávamos por uma frincha
a vitória, e eis que ela fulgura,
rosa aberta aos pés de Garrincha.
Ai, emoções de Gotemburgo!
Futebol que nos arrebatas,
esse rugir de alto-falante
vale mozartianas sonatas.
E torço firme a vosso lado,
cidadãos que morais no assunto,
embora entenda de pelota
simplesmente o que vos pergunto.
Quem ganhou foi o Botafogo,
canta o severiano, alma leve.
Exclama junto um pena-boto:
— É, e quem perdeu foi Kruchev.
Entre estouros, risos, foguetes,
assustado, lá foge o pombo
que bicava milho na praça,
mas surge Adalgisa Colombo,
escultura, graça alongada,
e a seus munícipes ensina
que entre todos os bens da terra
a beleza é graça divina.
E talento é a suprema dádiva:
penso nisso ao ver Pinga-Fogo
no Dulcina, e a rara Cacilda
em seu sutilíssimo jogo
de emoção: a infância pisada,
um murmúrio de pai a filho,
diálogo obscuro das almas
para quem o sol é sem brilho.
E que delícia O Protocolo,
velho Machado sempre novo!
Nosso teatro já floresce,
não é pinto a sair do ovo.
Mas nem tudo foram ditosas
horas no tempo brasileiro:
O vento no Convair, e a chuva.
A morte estava num pinheiro.
A morte estava à espera, surda,
cega a toda humana piedade.
E esse indecifrável mistério,
inscrição chinesa no jade,
faz baixar um crepe silente
sobre os gaios fogos votivos.
Que João e Pedro, das alturas,
suavizem a pena dos vivos.
E vem outro, mais outro dia.
Paira a esperança, junto à fé.
A bola em flor no campo: jóia,
E seu ourives é Pelé.
In Versiprosa, 1967.
[Dedicado por um benfiquista a todos os portistas e sportinguistas, adeptos de poesia, pelos triunfos do ano.]
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Vendo o retrato de Maria, filha de
Sophia de Mello Breyner Andresen.
CONHECER de retrato é conhecer
uma cintura sombra de outra, apenas?
Ou será que em instantânea descoberta,
Maria,
as almas passam na fotografia?
A tua vislumbrei, e ela sorria.
In Viola de Bolso, 1952.
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Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.
Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.
Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,
eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.
In Claro Enigma, 1951.
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No país dos Andrades, onde o chão
é forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,
indago um objeto desaparecido há trinta anos,
que não sei se furtaram, mas só acho formigas.
No país dos Andrades, lá onde não há cartazes
e as ordens são peremptórias, sem embargo tácitas,
já não distingo porteiras, divisas, certas rudes pastagens
plantadas no ano zero e transmitidas no sangue.
No país dos Andrades, somem agora os sinais
que fixavam a fazenda, a guerra e o mercado,
bem como outros distritos; solidão das vertentes.
Eis que me vejo tonto, agudo e suspeitoso.
Será outro país? O governo o pilhou? O tempo o corrompeu?
No país dos Andrades, secreto latifúndio,
a tudo pergunto e invoco; mas o escuro soprou; e ninguém me acordou
Adeus, vermelho
(viajarei) cobertor de meu pai.
In A Rosa do Povo, 1945.
[Dedicatória especial a todos os Andrades de cá]
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E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.
Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?
Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.
In Alguma Poesia, 1930.
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Nestas pedras tão rasas, o meu corpo
A tua carne deseja e, na brancura
De teus dedos, o rosto se suspende
Do voo mudo dos séculos. Efémero
Tijolo sob as ancas te sustenta,
Te rouba à gravidade e te suspende,
Na passagem de minhas mãos em alva
Face já pelo Outono cariada.
Na cicatriz dos gestos, na passagem
Oculta dessas mãos, abre-se o mundo
À névoa branca e fétida das pétalas
Em decomposição. Caminharemos
Pelas ruínas dos dias e abraçados
Deixaremos os campos, rios e as águas.
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Dois mil anos. Seremos de amanhã
As ruínas, traídos pelo voo
Do corvo, pelas árvores cansadas
Do jardim. Não haverá na forte seiva
Um fragmento do olhar, a voraz célula
No cerne a morte tem anunciada.
Cardílio, de ti irmão sempre serei
Na planície de pó, nas águas rasas
Que, no Inverno, do rio para o mar correm.
Será a aurora negra em cada dia
E na espuma das horas ouviremos
O lamento dos pássaros de Apolo,
Belo na agonia próxima, ditoso
Pois seremos nós tão cedo a cantá-lo.
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Desceram nesta terra como pássaros
Perdidos no horizonte. Não traziam
Asas, nem sabiam como cantar frias
Canções de amor e guerra. Desejavam
A luz entontecida das manhãs,
Os animais bravios a galopar,
O crime delicado do perfume
Das esquivas mulheres pela cama
Derrubadas. Do pó livre de Itália
Vieram, as cidades por fazer
Chamavam-nos no sono vivo e tépido
Da manhã. Embriagados pelo estio,
Caíram no restolho delicado
Da seara lilás por germinar.
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Por essa lei, Cardílio, um mundo vinha
Sobre a paisagem, frutos maturavam
Na lenta pulsação das verdes árvores,
Que em Agosto sorriam pela canícula.
Regias os dias, as noites, com imóvel
Mão. Uma ordem ao mundo vinha, sôfrega,
Inclemente, dorida e pura como
Uma canção no estio silenciada.
Os carros foram, longe é a sua casa,
E ninguém quer as árvores plantadas
Nos teus jardins. Restou-te o parco nome,
Tesselas de mosaico, dizem, ânforas
Perdidas, vidros, mármores e um deus
Vivo na nitidez da branca estátua.
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(Delacroix, Liberdade guiando o Povo)
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Em Agosto descemos por atalhos.
Castanheiros na estrada debruçados,
Sombras de cinza e luz em tardias flores
Tingidas pelo aroma das colinas.
Na leveza dos dias que, amargos, correm,
Nas horas cintilantes em que a chuva
Sobre a terra desaba, sopram ventos
Em combustão, violetas arrancadas
À tranquila alegria do negro prado.
Era o tempo dos mortos, das vielas
Incendiadas, das hortas perseguidas
Pelo orvalho azulado da manhã.
Pela tua mão, o jardim de areia cresceu
Entre a melancolia da erva-canária.
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A sentença feroz do deus, Cardílio,
Em ti se abateu. És caduca árvore
Que as folhas não retém, ardósia frágil
Que ao vento se derrama. Nem a chama
Das horas te ilumina, nem as ervas
Do seco chão se curvam na voragem
De teus pés, tão despidos na planície,
Que para última casa então te deram.
Tribunal inflexível te julgou
No fulgor da manhã. Rude destino
Os deuses declinaram em teu rosto:
Nada escutas e nada sabes, pálido
Guerreiro de perdida e árida guerra.
Ao longe ecoa a canção vazia da terra.
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O olhar perdido nestas ruínas busca,
Em desespero animal, o que a vida
Deixou, no seu cansado e fugaz passar.
A efémera violeta, a rosa branca,
A erva rala, o verão já devorado.
No fulgor das colinas, na oliveira
Por musgo maculada, crescem pálidas
Anémonas, sombrias ervas de Outono.
Onde está a viva chama, o fatigado
Olhar logo descai, procura a doce
E suave pena, a dor tanto lhe dói.
Aqui riram infâncias, vozes últimas,
Que ruíram fulminadas pelos pássaros
De fogo no alumínio azul da cal.
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Seriam hábeis amantes os que nesta
Casa amaram? E no grito dessa noite,
Deixariam os homens a sua língua
Perder-se nos recantos fatigados,
Na relva crespa, esparsa das mulheres?
Que incêndios os fizeram tão felizes?
Oiço nesse horizonte gritos breves
E puros, oiço a morte, na sua azáfama,
Percutir na penosa e dura pedra
Da vida, oiço os sinos das aldeias
Por vir, depois de ti, pobre Cardílio.
De ti que só a ruína do amor salvou
Do eterno esquecimento. Canta, pois,
De Avita o sangue no Orco tenebroso.
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Croaking Movement
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Lucernas, vidros, ânforas, pedaços
De vida aqui perdidos, esquecidos
Entre malvas bravias e ruas de mármore.
A vida os deixou pálidos, sonâmbulos,
Ébrios de tanta morte. Nesta casa
Habitaram mulheres, e ferozes
Dedos delas fizeram doce e terna
Habitação. Que nome seria o seu?
Procuro em calendários, na cerâmica
De mármore, na arguta suspensão
Do rosto, p’las veias loucas do marfim…
Na planície, sinistras mãos vazias
Erram entre o cascalho abandonado;
Cantam como só os loucos cantar sabem.
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Conto teus dedos um a um, pois são
Sílica, pedra roxa, várzeas calmas
Abertas sobre a foz, onde um rio puro,
De água clara, por mim em brados chama.
Vozes de barro, casas de minério
Vegetal, tudo aberto ao céu que cai,
Como se o vento cálice quisesse
Ser, para nele a ti te recolher.
Deixa vir os relâmpagos, a lua
Fria e mineral. Cantem a luz árida
Das estrelas no sonho descobertas!
Se te toquei no ventre e um incêndio
Alastrou, então deixa que esta mão
Como uma parra em teu seio breve caia.
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