09/05/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Quarenta e cinco

[Viena, Secession]

45 - Gustav Klimt - Beethovenfries - Die feindlichen Gewalten (Detail): Die drei Gorgonen: Krankheit, Wahnsinn, Tod, 1902 [Friso Beethoven – As forces hostis (detalhe): as três Górgonas: doença, loucura, morte]

Quarenta e cinco

Vieram ao mundo as filhas de Fórcis e de Ceto,
a esplêndida deusa dos mares, a que na beleza
escondia a face de um monstro, o abismo terrível
onde a pele sedosa se transforma na áspera
carapaça do animal ou o tranquilo
e azul mar da manhã em tempestade ao meio-dia.
Que estranha sabedoria é esta que esconde
na mais delicada aurora os traços sombrios
da noite rude e invernosa? Foi desse teu corpo,
um vórtice nele havia, que brotaram as forças hostis
e soltas vieram pelo mundo. Se nelas havia beleza,
a que as filhas herdam das mães,
os olhos, humanos e divinos, não a viram.
Apenas a ausência de luz se encontra naqueles
olhares frios, gélidos como as terras áridas
banhadas pela lava impiedosa do vulcão.

Que ódio trazias no regaço quando Fórcis
te tomou e no leito nupcial deixou a semente
dos males que haveriam de tingir a roxo
o sangue vermelho dos homens. São belos
os corpos despidos se a juventude os toca, mas logo
a avara doença, filha que chocaste no fel, se derrama
e o vigor é apenas a seca palha arrastada
pelo ingénuo sopro dos ventos. Quebrados pela dor,
lancetados pela amargura, aguilhoados pelo destino,
despem-se homens e mulheres da beleza e mirram
na poeira do leito onde jazem recostados
ao seio frio e murcho da filha que trouxeste,
por esses dias de desespero, no ácido ventre que te coube.

Entre os mais promissores dos mortais,
onde a razão virá a ser a luz
que ilumina planícies e montanhas,
lançaste tu, filha de Ponto e Geia, o rasto
insensato que te saiu do ventre para enlouquecer,
ao meio-dia, aqueles que os deuses benevolentes
quiseram favorecer com o prudente dom da razão.
Insidiosa veio a loucura e com andar sussurrado
ou como um cavalo tomado pela dor,
se atirou para o campo de batalha a dizimar
os melhores entre os melhores,
a fechá-los na escura gruta do pensamento,
para que se perdessem em devaneios de sangue
ou nos prados de ervas azedas e odor sulfúrico.
Assim vão caindo os melhores
enlaçados pelo abraço que saiu do teu ventre
e com eles somos nós, dia e noite, arrastados
pelo mais torpe sonho que a beleza poderia plantar
no esquálido jardim que se ergue sobre o mar.

O que fez, impiedosa deusa, tremer a colina
de teu coração para que de nós, rasos mortais,
doentes e loucos, te apiedasses? Rasgaste-nos
o corpo, açoitaste o espírito, enviaste o tirano
e quando se ouviu o lobo a uivar
lembraste-te que também esse lobo
doente tivera um dia a forma que cobre
homens e deuses e os subtrai ao convívio
dos animais perdidos no avaro mundo.
Presa ao sublime ocaso, o sol
a mergulhar ao longe nas águas do mar,
a revestir de vermelho o fundo oceano,
teu pai, dizem, o coração, se os deuses
o possuem no peito brilhante,
foi-te tocado por um sentimento misterioso
e as negras imagens dos homens consumidos
pelo amor das tuas filhas acendeu para nós,
ó incomparável mãe, uma esperança.
Se os corpos se entregam à ruína e os espíritos
à demência, melhor será que mergulhem no mar
infinito onde não há água, ou peixes, ou plâncton,
e deixem sombrear a alma sem norte no nada,
alívio desejado daqueles que na vida são
atormentados pela face das filhas que te saíram
do ventre. Foi com piedade que enviaste sobre nós
a tua terceira filha, outra górgona de cabelos de serpente,
a espalhar nos exércitos derrotados o sabor suave
e luminoso da tecedeira. Fizeste de nós mortais,
roubaste-nos uma eternidade de dor e loucura,
engrandeceste, mãe, o destino de uma alma que se perde
e nesse nada onde se esvai encontra salvação
do fogo que a consome e da sede que devasta cada gesto
e o expõe ao riso sórdido do moscardo,
insecto amarelo que habita no coração dos deuses
e faz de nós um pobre pano de algodão que se rompe
mal o meio-dia passa e o ponteiro ao de leve se inclina
para ocidente, a casa sombria que te ergueram
para longínqua habitação.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

2 comentários:

Anónimo disse...

São fascinantes as pinturas murais que Klimt concebeu para o emblemático Edifício da Secessão de Viena (estilisticamente muito diferentes das que criou para o Kunsthistorisches Museum).
Fascinam-me não só pelo seu valor estético e expressivo, mas também pelas referências à mitologia grega e forte carga simbólica - sugestão que, mais uma vez, é magistralmente ilustrada pela força do verbo de quem tem a bondade de partilhar connosco a sua ímpar forma de VER O MUNDO.

Este poema, à semelhança de outros que aqui estão publicados, é muito mais do que uma ilustração da obra de Klimt. É uma cativante sucessão de quadros que falam, cujas pinceladas, cores e formas estão na carga significativa do substantivo e do verbo, na subtil expressividade de cada adjectivo e no brilho e originalidade da metáfora e múltiplas imagens. E se as obras de Klimt aqui apresentadas são poemas feitos de cor, temos também quadros excepcionais feitos de belas e sábias palavras.
Alice N.

P.S. Desculpe se me repito, mas não me canso de lhe exprimir como a "navegação" pelo seu blogue me faz bem. Adoro Arte e Poesia e aqui encontro um cantinho ideal para me lembrar que o mundo ainda tem muito de bom para oferecer.
Além disso, a selecção musical é óptima e aprecio muito a análise que faz dos temas da actualidade.
É mesmo crucial que não percamos a capacidade de VER O MUNDO.

Anónimo disse...

Muito obrigado pela amabilidade das suas palavras. Sobre os textos (estão no fim, hoje será publicado o último da série) eles não pretendem ser uma explicação ou uma ilustração dos quadro de Klimt. Estes não precisam e eu apenas poderia destruí-los se tentasse explicá-los. Quando titulei a série como "Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt" a ideia era a de utilizar o sobre como num palimpsesto. A escrita "inscrevia-se" sobre algo que era rasurado. Aquilo que se rasura é a imagem em mim dos quadros. Ao fazê-lo, a imaginação abre um espaço para se desenvolver. É possível que as rugosidades do pergaminho raspado incidam na escrituração, mas isso são contingências de quem tem de rasurar para encontrar um espaço de escrita.

Muito obrigado também pelo seu contributo para o blogue.

JCM