20/05/08

Robert Musil - O homem sem qualidades - I


Vou dizer-te o que tenho contra ele - repetiu Ulrich. - O homem científico é hoje uma coisa absolutamente inevitável: não se pode deixar de querer saber! E em nenhuma outra época foi tão grande a distância entre a experiência de um especialista e a de um leigo. Qualquer um vê isso quando olha para o que um massagista é capaz de fazer, ou um pianista; ninguém manda hoje um cavalo para as corridas sem uma pre­paração especial. Só no que se refere às questões do que significa ser humano é que toda a gente acha que tem uma palavra a dizer, e há um velho preconceito que diz que nascemos e morremos seres humanos! Mas, embora eu saiba que as mulheres, há cinco mil anos, escreviam aos seus amantes exactamente as mesmas cartas que escrevem hoje, já não posso ler nenhuma dessas cartas sem me perguntar se isso não irá mudar um dia!

Clarisse parecia inclinada a concordar com ele. Já Walter sorria como um faquir que nem pestaneja quando lhe enfiam um alfinete de chapéu de um lado ao outro da cara.

- O que significa provavelmente que, até nova ordem, tu te recusas a ser um ser humano! - objectou.

Mais ou menos isso. Reconheço que suscita uma desagradável sen­sação de diletantismo!

Mas quero dizer-te que tens razão noutra coisa, totalmente dife­rente - acrescentou Ulrich, depois de um instante de reflexão. - Os especialistas nunca dão por acabada a sua especialização. Não só não a concluíram hoje em dia como também são incapazes de conceber um fim para as suas actividades. Talvez até nem o desejem. Será possível, por exemplo, imaginar que o homem ainda terá uma alma no momento em que aprenda a compreendê-la e a tratá-la biológica e psicologicamente? E, apesar disso, aspiramos a esse estado de coisas. É esse o problema. O saber é uma forma de comportamento, uma paixão. No fundo, um comportamento ilícito; porque, tal como a dependência do álcool, do sexo ou da violência, também a compulsão de saber molda um carácter em desequilíbrio. É um erro pensar que o investigador persegue a ver­dade; de facto, é ela que o persegue a ele. É ele que tem de suportá-la. A verdade é verdadeira, o facto é real, sem se preocuparem com ele: ele é que sofre da paixão, da dipsomania dos factos que define o seu carácter, e está-se nas tintas para saber se as suas descobertas levarão a alguma coisa de total, humano, perfeito ou o que quer que seja. É uma natureza contraditória, sofredora e, ao mesmo tempo, incrivelmente enérgica!

- Sim, e depois?

- E depois o quê?

- Não me vais dizer que podemos deixar as coisas tal como estão!
Por mim, deixava-as tal como estão - respondeu Ulrich calma­mente. - A ideia que fazemos do mundo, e de nós próprios, muda a cada dia que passa. Vivemos numa época de transição. E se não enfrentarmos os problemas mais graves que temos pela frente melhor do que fizemos até agora, talvez essa transição se prolongue até ao fim do planeta. Ape­sar disso, se formos lançados para o meio das trevas, de nada nos serve começar a cantar para espantar o medo, como uma criança. Mas é isso que fazemos, cantar por medo, quando fingimos que sabemos como devemos comportar-nos aqui em baixo; podes gritar desalmadamente, que continua a ser apenas medo! Mas uma coisa sei: avançamos a galope! Estamos ainda muito longe dos objectivos, estes não se tornam mais próximos, nós nem sequer os avistamos, ainda vamos perder-nos muitas vezes e muitas vezes teremos de mudar de cavalos. Mas um dia - pode ser depois de amanhã ou daqui a dois mil anos - o horizonte começará a deslizar e precipitar-se-á sobre nós com um rugido avassalador!

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