17/05/08

Manuel Maria Carrilho - Heróis do nosso tempo

O que me surpreende no vivo debate que entre nós se tem travado sobre o ensino é que ele gire tanto em torno de estatísticas, procedimentos e regulamentos da escola e tão pouco à volta de ideias, conteúdos e objectivos da educação.

Isto acontece, a meu ver, porque se têm acumulado diversos equívocos sobre a educação, a escola e o ensino. Equívocos que, em grande parte, têm bloqueado diversos impulsos reformistas nas últimas décadas.

A educação, é bom lembrá-lo, era já o que mais parecia querer mudar nos últimos tempos da ditadura, com Veiga Simão à frente do Ministério da Educação a abrir a frente da massificação escolar. E depois de 25 de Abril a educação foi regularmente apontada como o factor diferenciador e decisivo do regime democrático, como a resposta que se impunha ao nosso ancestral atraso e aos desafios dos novos tempos. Mas a aposta ficou-se pela massificação/democratização, com resultados que não nos tiraram da cauda da Europa.

Assim, sem uma forte visão estratégica que a orientasse, foram vários os equívocos que entretanto se abateram sobre o sector. Que atingiram a educação, cada vez mais desorientada pela multiplicação - quantas vezes contraditória - de objectivos que se lhe exigem. Que atingiram a escola, transformada numa instituição à qual (em consequência das crises da família, da autoridade, e outras) se pede soluções para tudo, sem se adequarem os seus meios e sem se avaliarem os seus limites. E que atingiram o próprio ensino, objecto de uma mutação radical que levou à desvalorização dos conteúdos, dos "saberes" a transmitir, colocando o aluno não só como criança ou adolescente mas também como cidadão, no centro de todas as preocupações.

Todas estas alterações ocorreram, todavia, num contexto civilizacional que importa ter em conta. Porque, por paradoxal que tal possa parecer, todos estes equívocos se têm intensificado no quadro da sociedade contemporânea, como Marcel Gauchet mostrou em análises notáveis. Por um lado, devido à bolha mediática que instaurou um paradigma que reformata tudo o que toca. Por outro lado, devido ao modo como se têm valorizado simultaneamente três exigências dificilmente compatíveis entre si: a do reconhecimento do mérito, a da igualdade de oportunidades e a da "obsessão" individualista.

A escola do Estado-Providência nasceu, em grande medida, justamente como resposta à tensão entre elas, procurando equilibrá-las. Mas o que por todo o lado aconteceu desde os anos 70 (num movimento que apanhou Portugal "em falso", entre o seu lastro pré-moderno e as suas ilusões pós-modernas) foi o crescente domínio do individualismo, que esfarelou o modelo educativo tradicional, sem propiciar qualquer alternativa.

A escola viu-se assim transformada. E de factor de conquista de uma ambicionada igualdade de oportunidades - que era o principal tópico legitimador das "políticas" da educação -, ela passou a ser sobretudo e cada vez mais um espaço de expressão da igualdade entre cidadãos.

Esta mudança veio também consagrar novos objectivos, já não a aquisição de conteúdos formadores, mas o "desenvolvimento multifacetado" do aluno, que deverá simplesmente tornar-se capaz de - e a fórmula diz tudo! - "aprender a aprender".

Enquanto o ensino tradicional hierárquico visava a transmissão de conhecimentos, o ensino individualista e democrático aposta na aprendizagem, quantas vezes confundida com uma misteriosa espontaneidade de competências. No primeiro caso, o professor desempenhava uma função de indispensável mediação, no segundo ele tende a tornar-se num animador quase supérfluo.

Compreende-se assim que o maior equívoco seja aquele a que se chega no termo do processo, e que se pode sintetizar na questão formulada por M. Gauchet, quando pergunta se a introdução da democracia na escola não terá, na realidade, por efeito paradoxal, contribuído para a inviabilização da própria escola. Ou, dito de outro modo, que fazer quando todos reclamam educação, mas na realidade quase ninguém quer - e isso aparece cada vez mais como um direito - ser educado?

É que a possibilidade de ensinar depende estreitamente do estatuto, e da autoridade, que a sociedade reconhece não só aos saberes mas também aos professores, indispensáveis intermediários da mediação educativa, que nenhuma tecnologia consegue substituir (muito pelo contrário - sobre isto é confrangedor o que se diz por aí...).

A erosão daqueles factores deixa aos professores uma tarefa cada vez mais impossível. Daí que reconhecer neles os heróis do nosso tempo - no sentido em que eles enfrentam o que todos evitam - seja uma condição prévia para, simplesmente, tornar a educação viável. O que só acontecerá se ela assentar numa relação institucional, mas também pessoal, que por um lado garanta a efectiva transmissão de conhecimentos e, por outro, seja capaz de enquadrar as motivações pessoais num registo democrático que tem que ser reinventado.
[Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 17 de Maio de 2008]

1 comentário:

Alice N. disse...

Uma análise excepcional, de uma profundidade e lucidez notáveis!
Só M.L.R. é que não entende a realidade aqui descrita, porque, obviamente, não lhe interessa...

A Educação está realmente doente e é preciso muita força de vontade e amor à Arte para manter a sanidade mental e o gosto pelo trabalho. De entre os vários males de que padece a Educação (currículos mal estruturados, programas desadequados, desvalorização do saber, facilitismo, desautorização do professor, excessiva burocracia e tantos, tantos mais), há uma questão que me aflige particularmente: a actual obsessão de querer reduzir tudo a números. Não é que eu seja contra eles. Sei que estes nos podem ajudar a compreender e melhorar a realidade, mas os números, as estatísticas, não podem desvirtuar a dimensão humana da docência. É que muito do que se faz nas escolas, em particular no trabalho directo com os alunos, não é quantificável (graças a Deus!).

Quando, por exemplo, me pedem que defina, em termos percentuais, uma meta de progressão no que se refere ao sucesso dos alunos, pergunto-me se tenho deficit cognitivo (para não dizer "burra", que é menos elegante) ou se não percebo em que consiste a minha profissão. É que eu não estou propriamente a produzir sapatos nem ando a captar clientes para um banco ou a vender enciclopédias! Lido com seres humanos e o resultado do meu trabalho não depende exclusivamente de mim; depende também, e muito, do trabalho do aluno, do seu contexto social, etc.

Assim, quando me perguntam qual a percentagem de sucesso a que me proponho, a minha resposta é “100%”, porque, efectivamente, o objectivo de qualquer professor é o sucesso de TODOS os alunos. Como a grande maioria dos meus colegas, trabalho e esforço-me por dar o meu melhor, com o objectivo de todos alcançarem o desejado sucesso. Essa é a minha maior ambição profissional, mas tenho consciência que, à partida, ela dificilmente se concretizará. É por essa razão que nunca me sentirei completamente realizada.

Não obstante essa ambição, não estou disposta a tudo para lá chegar, até abdicar de princípios. É por isso que não lido bem com previsões, perspectivas de crescimento e tudo o mais traduzido em percentagens, como se em vez de escolas tivéssemos fábricas ou empresas financeiras. Exigirem-me que atire um número é, para mim, obrigarem-me a fazer futurologia ou quererem que seja desonesta e esteja disposta a tudo para não ser acusada de incapaz de atingir os objectivos a que me propus (abandalhar o trabalho; fabricar resultados ou concentrar-me apenas nos alunos necessários para atingir os objectivos). Disso eu não sou capaz. Sei, por isso, que estou mais ou menos condenada...

Como diz M. M. Carrilho, discutamos ideias! Partilhemos experiências, reflictamos sobre as nossas práticas, aprendamos a melhorá-las, invistamos no conhecimento, questionemo-nos todos os dias, mas não nos reduzam a números. Eu sei, eu sei, que essa forma de estar na escola e de encarar o trabalho não cabem numa máquina de calcular... Problema vosso, senhores. Eu é que NUNCA abdicarei de ser HUMANA!

Alice N.

(Estou agora a ver M.L.R. na televisão, com a directora da DREN colada atrás. Parece o emplastro, só que o emplastro é mais giro.)