A rememoração do viandante
Começam a emudecer as ruas como se o silêncio viesse envolto pelo véu da noite. Ao longe, vejo ainda a mancha branca de povoados dispersos, restos de um tempo onde os homens viviam presos à terra. Agora que todos se libertaram, fica ali aquele casario como um sinal propiciatória, um lugar para a rememoração que o viandante sempre faz. As ruas, porém, estão juncadas pelo verde que a incerta primavera trouxe sobre as árvores, mas já não se chamam ruas às ruas onde vivo. Tudo agora são avenidas e nelas há gente e néons e uma pressa infinita. Por vezes, oiço o buzinar de um automóvel e penso no sino da minha aldeia, naqueles tempos em que quase não havia carros e as trindades anunciavam o silêncio da noite. Assim embalado, deixo vogar os olhos sobre a linha do horizonte para os poisar nos pássaros negros que em círculos imaginam na cidade a vida dos montes.
2 comentários:
Lindíssima prosa, como sempre. Muito tocante.
Há neste texto, como noutros que já tive oportunidade de aqui ler, uma
forma peculiar e delicada de sugerir sensações e emoções através da
descrição de ambientes sugestivos, carregados de simbolismo e, por
vezes, de inquietante mistério. Há uma forma de dizer que faz com que
a palavra deixe de ser palavra para se metamorfosear na luz e na
noite; em sonoridades e silêncios; em sol e em chuva; em céu e em
terra... Ante os nossos olhos, surge então um formidável mundo novo
onde reina o sentir do corpo e da alma...
Felizes os que, como JCM, têm o dom de dizer!
Alice
Perdoe-me a ousadia de escrever, por vezes, algumas linhas sobre os
seus belíssimos textos. Sei que não o devia fazer. A Arte é algo
sagrado e o sagrado não se comenta. Ante o Belo deve fazer-se
silêncio. A Arte, porém, também faz transbordar as emoções e delas,
por vezes, explode uma necessidade urgente de exteriorizar o que não
cabe no peito. Pobre, porém, de quem apenas sente a palavra mas não
tem mãos para a esculpir .
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