19/05/08

A rememoração do viandante

Começam a emudecer as ruas como se o silêncio viesse envolto pelo véu da noite. Ao longe, vejo ainda a mancha branca de povoados dispersos, restos de um tempo onde os homens viviam presos à terra. Agora que todos se libertaram, fica ali aquele casario como um sinal propiciatória, um lugar para a rememoração que o viandante sempre faz. As ruas, porém, estão juncadas pelo verde que a incerta primavera trouxe sobre as árvores, mas já não se chamam ruas às ruas onde vivo. Tudo agora são avenidas e nelas há gente e néons e uma pressa infinita. Por vezes, oiço o buzinar de um automóvel e penso no sino da minha aldeia, naqueles tempos em que quase não havia carros e as trindades anunciavam o silêncio da noite. Assim embalado, deixo vogar os olhos sobre a linha do horizonte para os poisar nos pássaros negros que em círculos imaginam na cidade a vida dos montes.

2 comentários:

Alice N. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alice N. disse...

Lindíssima prosa, como sempre. Muito tocante.
Há neste texto, como noutros que já tive oportunidade de aqui ler, uma
forma peculiar e delicada de sugerir sensações e emoções através da
descrição de ambientes sugestivos, carregados de simbolismo e, por
vezes, de inquietante mistério. Há uma forma de dizer que faz com que
a palavra deixe de ser palavra para se metamorfosear na luz e na
noite; em sonoridades e silêncios; em sol e em chuva; em céu e em
terra... Ante os nossos olhos, surge então um formidável mundo novo
onde reina o sentir do corpo e da alma...

Felizes os que, como JCM, têm o dom de dizer!

Alice

Perdoe-me a ousadia de escrever, por vezes, algumas linhas sobre os
seus belíssimos textos. Sei que não o devia fazer. A Arte é algo
sagrado e o sagrado não se comenta. Ante o Belo deve fazer-se
silêncio. A Arte, porém, também faz transbordar as emoções e delas,
por vezes, explode uma necessidade urgente de exteriorizar o que não
cabe no peito. Pobre, porém, de quem apenas sente a palavra mas não
tem mãos para a esculpir .