O que se esconde na avaliação burocrática de professores
Uma formação para professores avaliadores de professores, formação levada a efeito pelo Instituto Nacional de Administração (INA), tem sido objecto de comentário em inúmero blogues ligados aos docentes. Este pequeno acontecimento, que chegou a ter facetas picarescas, é relevante da tendência que percorre a escola portuguesa. Há um primeiro sintoma da realidade quando é o INA que leva a efeito este tipo de formações. O que significa isso?
Como já se sabia, a avaliação de professores é um instrumento meramente burocrático e que não visa a melhoria científica e técnica dos professores, mas aparentemente o controlo da sua ascensão na carreira. Dito de outra maneira, a avaliação dos professores visa apurar não os que são melhores professores, mas aqueles que são burocraticamente mais expeditos. Mas esta decisão não é o efeito de uma singularidade da senhora ministra da Educação, nem das gentes do INA. Ela inscreve-se numa concepção da realidade que convém perceber para descobrir o seu verdadeiro sentido.
Um dos pressupostos deste tipo de avaliações (e de formações) é que o conteúdo de uma determinada instituição, aquilo que ela faz, é irrelevante. Com ligeiras alterações, o que se aplica à avaliação de um hospital, de uma empresa de seguros, de uma companhia de bombeiros voluntários, de uma fábrica de preservativos, ou de uma escola, é essencialmente o mesmo. Concomitantemente, pouca diferença faz avaliar médicos, jogadores de futebol, operários da construção civil, ou professores. Estamos perante um puro formalismo da avaliação. Possui-se um esquema que se aplica, com uma ou outra alteração, a todas as realidades diferenciadas. Este esquematismo é assim um formalismo e um formalismo cuja estrutura é burocrática.
Esta estrutura burocrática deve ser pensada à luz do conceito weberiano de burocracia. Como se sabe, esta diz respeito à eficiência das organizações e é um dos traços sociais mais marcantes do século XX e também já do século XXI. Mas a razão burocrática esvaziou-se no puro exercício da busca da eficiência e anulou o conteúdo moral da razão. É uma razão que se desrazoabilizou ao tornar-se num elenco de normas que visam a eficiência. A razão é agora uma pura forma sem conteúdo.
O que significa esta forma sem conteúdo? Significa a indiferenciação. O esquema formal aplica-se, como se viu, a qualquer lado. Mas ele é incapaz de perceber a variabilidade da vida das instituições, a riqueza informal que emerge no contacto entre aqueles que nelas operam. Um projecto de avaliação fundado nestes princípios burocráticos tem pressuposto, independentemente da consciência que os actores e decisores têm dele, a uniformização dos avaliados. Apesar da retórica que fala na diferenciação para reconhecer o mérito, o modelo é um elemento absolutamente indiferenciador e visa tornar todos os actores idênticos ao modelo. Estamos perante um paradoxo: ao pretender-se um modelo de avaliação diferenciador a única coisa que se visa é a indiferenciação. Dito de outra maneira: tornar todos os professores idênticos ao modelo.
A indiferenciação dos actores está fundada na indiferenciação do conteúdo da instituição. O que interessa é a adequação dos actores ao conteúdo prescritivo do modelo e não ao conteúdo da função que desempenha a instituição. Daí ser possível que professores de Biologia possam avaliar professores de Matemática. No limite e em coerência com o modelo, um professor de Filosofia ou mesmo de Educação Física, ou mesmo alguém sem formação académica, poderia, se dominasse as normas do modelo, avaliar o professor de Matemática ou qualquer outro. A instituição escola já não tem conteúdo e como tal o que se avalia não é o domínio e a transmissão do conteúdo, mas a adequação comportamental do actor às normas impostas pelo modelo.
É na conjugação dos conceitos de modelo e de indiferenciação que podemos encontrar o novo sentido da escola portuguesa. O modelo é um conjunto de normas vazias – por isso podem ser aplicadas em qualquer situação –, as quais necessitam e ao mesmo tempo produzem a indiferenciação. Dito de outra maneira: o modelo indiferencia os conteúdos e reproduz, de forma cada vez mais intensificada, a indiferenciação, para poder subsistir. O que se poderá entender por indiferenciação. Esta não é um igualitarismo de diferentes, mas a aniquilação de toda e qualquer diferença. A diferenciação é o cerne da vida. Esta é múltipla e essa multiplicidade exige a diferenciação contínua como forma de a vida persistir. A indiferenciação é o retorno a um caos, a um vazio, o que está de acordo com a natureza do modelo.
Que “escola” é esta que está presente na nova forma de avaliação de docentes? É uma “escola” niilista. O que significa isso? Significa que não tem conteúdo, é vazia, que não tem vida, pois é indiferenciada. É uma “escola” onde o “nada” do modelo se aplica a assegurar que o “nada” não se torne em alguma coisa. É uma escola da morte.
Mas o que morre na escola niilista que nos foi dada a viver? Responda-se a outra questão: o que era a escola moderna? Era o lugar onde, nos Estados-Nação, se fabricava, através da transmissão de um currículo, a soberania pela disseminação da vontade de vivermos uns com os outros. A escola importada pelo actual governo visa a destruição ou a morte dessa escola anterior e concomitantemente da soberania. O que está em jogo não é apenas o destino dos indivíduos, professores ou alunos, mas o da função da escola: a produção de soberania. Porquê? Porque a própria soberania é já uma diferenciação relativamente a outras soberanias. Ao transformarmos professores, alunos (agora também submetidos ao modelo pela a acção dos professores) e conteúdos curriculares em magma indiferenciado, estamos a atingir o núcleo central da produção da soberania. A soberania é um exercício da vontade (a vontade de os indivíduos e de uma comunidade em ser soberanos). Ao indiferenciarmos, estamos a aniquilar a vontade dos indivíduos e, por essa via, a da comunidade. A única coisa que os indivíduos poderão querer é a conformação com o modelo vazio.
Na questão da avaliação de professores, tal como é agora concebida, esconde-se, então, uma pulsão de morte de uma comunidade, pois a instituição escola, que pela sua finalidade não era analogável a qualquer outra instituição, deixou de assegurar a sua missão. Agora, reduzida à sua nova função, ela deixou de ter o antigo préstimo. O seu conteúdo começa já a dissolver-se. Um cheiro nauseabundo paira nos ares e, ao longe, pressente-se o bater de asas dos abutres.
Como já se sabia, a avaliação de professores é um instrumento meramente burocrático e que não visa a melhoria científica e técnica dos professores, mas aparentemente o controlo da sua ascensão na carreira. Dito de outra maneira, a avaliação dos professores visa apurar não os que são melhores professores, mas aqueles que são burocraticamente mais expeditos. Mas esta decisão não é o efeito de uma singularidade da senhora ministra da Educação, nem das gentes do INA. Ela inscreve-se numa concepção da realidade que convém perceber para descobrir o seu verdadeiro sentido.
Um dos pressupostos deste tipo de avaliações (e de formações) é que o conteúdo de uma determinada instituição, aquilo que ela faz, é irrelevante. Com ligeiras alterações, o que se aplica à avaliação de um hospital, de uma empresa de seguros, de uma companhia de bombeiros voluntários, de uma fábrica de preservativos, ou de uma escola, é essencialmente o mesmo. Concomitantemente, pouca diferença faz avaliar médicos, jogadores de futebol, operários da construção civil, ou professores. Estamos perante um puro formalismo da avaliação. Possui-se um esquema que se aplica, com uma ou outra alteração, a todas as realidades diferenciadas. Este esquematismo é assim um formalismo e um formalismo cuja estrutura é burocrática.
Esta estrutura burocrática deve ser pensada à luz do conceito weberiano de burocracia. Como se sabe, esta diz respeito à eficiência das organizações e é um dos traços sociais mais marcantes do século XX e também já do século XXI. Mas a razão burocrática esvaziou-se no puro exercício da busca da eficiência e anulou o conteúdo moral da razão. É uma razão que se desrazoabilizou ao tornar-se num elenco de normas que visam a eficiência. A razão é agora uma pura forma sem conteúdo.
O que significa esta forma sem conteúdo? Significa a indiferenciação. O esquema formal aplica-se, como se viu, a qualquer lado. Mas ele é incapaz de perceber a variabilidade da vida das instituições, a riqueza informal que emerge no contacto entre aqueles que nelas operam. Um projecto de avaliação fundado nestes princípios burocráticos tem pressuposto, independentemente da consciência que os actores e decisores têm dele, a uniformização dos avaliados. Apesar da retórica que fala na diferenciação para reconhecer o mérito, o modelo é um elemento absolutamente indiferenciador e visa tornar todos os actores idênticos ao modelo. Estamos perante um paradoxo: ao pretender-se um modelo de avaliação diferenciador a única coisa que se visa é a indiferenciação. Dito de outra maneira: tornar todos os professores idênticos ao modelo.
A indiferenciação dos actores está fundada na indiferenciação do conteúdo da instituição. O que interessa é a adequação dos actores ao conteúdo prescritivo do modelo e não ao conteúdo da função que desempenha a instituição. Daí ser possível que professores de Biologia possam avaliar professores de Matemática. No limite e em coerência com o modelo, um professor de Filosofia ou mesmo de Educação Física, ou mesmo alguém sem formação académica, poderia, se dominasse as normas do modelo, avaliar o professor de Matemática ou qualquer outro. A instituição escola já não tem conteúdo e como tal o que se avalia não é o domínio e a transmissão do conteúdo, mas a adequação comportamental do actor às normas impostas pelo modelo.
É na conjugação dos conceitos de modelo e de indiferenciação que podemos encontrar o novo sentido da escola portuguesa. O modelo é um conjunto de normas vazias – por isso podem ser aplicadas em qualquer situação –, as quais necessitam e ao mesmo tempo produzem a indiferenciação. Dito de outra maneira: o modelo indiferencia os conteúdos e reproduz, de forma cada vez mais intensificada, a indiferenciação, para poder subsistir. O que se poderá entender por indiferenciação. Esta não é um igualitarismo de diferentes, mas a aniquilação de toda e qualquer diferença. A diferenciação é o cerne da vida. Esta é múltipla e essa multiplicidade exige a diferenciação contínua como forma de a vida persistir. A indiferenciação é o retorno a um caos, a um vazio, o que está de acordo com a natureza do modelo.
Que “escola” é esta que está presente na nova forma de avaliação de docentes? É uma “escola” niilista. O que significa isso? Significa que não tem conteúdo, é vazia, que não tem vida, pois é indiferenciada. É uma “escola” onde o “nada” do modelo se aplica a assegurar que o “nada” não se torne em alguma coisa. É uma escola da morte.
Mas o que morre na escola niilista que nos foi dada a viver? Responda-se a outra questão: o que era a escola moderna? Era o lugar onde, nos Estados-Nação, se fabricava, através da transmissão de um currículo, a soberania pela disseminação da vontade de vivermos uns com os outros. A escola importada pelo actual governo visa a destruição ou a morte dessa escola anterior e concomitantemente da soberania. O que está em jogo não é apenas o destino dos indivíduos, professores ou alunos, mas o da função da escola: a produção de soberania. Porquê? Porque a própria soberania é já uma diferenciação relativamente a outras soberanias. Ao transformarmos professores, alunos (agora também submetidos ao modelo pela a acção dos professores) e conteúdos curriculares em magma indiferenciado, estamos a atingir o núcleo central da produção da soberania. A soberania é um exercício da vontade (a vontade de os indivíduos e de uma comunidade em ser soberanos). Ao indiferenciarmos, estamos a aniquilar a vontade dos indivíduos e, por essa via, a da comunidade. A única coisa que os indivíduos poderão querer é a conformação com o modelo vazio.
Na questão da avaliação de professores, tal como é agora concebida, esconde-se, então, uma pulsão de morte de uma comunidade, pois a instituição escola, que pela sua finalidade não era analogável a qualquer outra instituição, deixou de assegurar a sua missão. Agora, reduzida à sua nova função, ela deixou de ter o antigo préstimo. O seu conteúdo começa já a dissolver-se. Um cheiro nauseabundo paira nos ares e, ao longe, pressente-se o bater de asas dos abutres.
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