Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Trinta e oito
38 - Gustav Klimt - Schloss Kammer on the Attersee II [Palácio de Kammer, no Lago de Atter II]
Trinta e Oito
Estranho lugar onde trevas e luz se unem
para segredar aos meus ouvidos as cores,
o mundo as traz ao decantar o vinho, bebê-lo-emos
se a noite, com o seu resplendor de aço, chegar
para não mais partir. Abandonei os palácios,
a terra mos deu, esqueci-me do teu nome
e das horas que passei com a tua na minha mão,
deixei, não sei em que exílio, todas as imagens
onde a minha vida, assim o dizia, se desmoronou
e a indigência cresceu, flor selvagem no jardim,
eu a vejo se cerro os olhos e deixo o corpo fluir.
Na ténue pintura que retenho, vejo a matéria respirar
e a vida febril dos homens a tornar-se porosa,
tocada pelos cardos que um deus, o olhar malévolo,
semeou pelo caminho. Mesmo quando habitas
o palácio, mesmo se os jardins se abrem para acolher
o suor da tua figura, a luz procura a lenta protecção das trevas
e, na imobilidade em que tudo acontece, ouve-se um grito
para além das janelas. Às vezes acordo a rosnar
e tenho a almofada molhada de saliva. Levanto-me e ladro
na noite e vejo as estrelas em debandada. Se uma gota de sangue
aflora na ombreira da casa é apenas o resto do silêncio,
à fúria contagiosa do assassino ele sucumbiu.
Desvio o olhar, baixo a cabeça e caminho. Afasto-me
do quadro e, quando chego à rua onde cintila
o medo que toma conta dos jardins, rastejo, o ventre
a roçagar o chão, os joelhos feridos pela água, o rosto
enegrecido pelo pó. Na plenitude que me imobiliza, oiço
um cântico na distância que cresce, oiço vozes opacas
suspensas nas gruas, oiço a tua voz a sussurrar dentro da minha.
Um gesto tão débil e tudo se apaga, a erva verde,
as paredes brancas e amarelas, as árvores de cinza
e os telhados negros onde me escondo do teu coração.
para segredar aos meus ouvidos as cores,
o mundo as traz ao decantar o vinho, bebê-lo-emos
se a noite, com o seu resplendor de aço, chegar
para não mais partir. Abandonei os palácios,
a terra mos deu, esqueci-me do teu nome
e das horas que passei com a tua na minha mão,
deixei, não sei em que exílio, todas as imagens
onde a minha vida, assim o dizia, se desmoronou
e a indigência cresceu, flor selvagem no jardim,
eu a vejo se cerro os olhos e deixo o corpo fluir.
Na ténue pintura que retenho, vejo a matéria respirar
e a vida febril dos homens a tornar-se porosa,
tocada pelos cardos que um deus, o olhar malévolo,
semeou pelo caminho. Mesmo quando habitas
o palácio, mesmo se os jardins se abrem para acolher
o suor da tua figura, a luz procura a lenta protecção das trevas
e, na imobilidade em que tudo acontece, ouve-se um grito
para além das janelas. Às vezes acordo a rosnar
e tenho a almofada molhada de saliva. Levanto-me e ladro
na noite e vejo as estrelas em debandada. Se uma gota de sangue
aflora na ombreira da casa é apenas o resto do silêncio,
à fúria contagiosa do assassino ele sucumbiu.
Desvio o olhar, baixo a cabeça e caminho. Afasto-me
do quadro e, quando chego à rua onde cintila
o medo que toma conta dos jardins, rastejo, o ventre
a roçagar o chão, os joelhos feridos pela água, o rosto
enegrecido pelo pó. Na plenitude que me imobiliza, oiço
um cântico na distância que cresce, oiço vozes opacas
suspensas nas gruas, oiço a tua voz a sussurrar dentro da minha.
Um gesto tão débil e tudo se apaga, a erva verde,
as paredes brancas e amarelas, as árvores de cinza
e os telhados negros onde me escondo do teu coração.
Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008
1 comentário:
Que poema arrebatador! Um texto que nos vai abrindo a porta de um terrível e misterioso mundo e nos transporta para uma atmosfera onde "a luz procura a lenta protecção das trevas" e "as estrelas [fogem] em debandada" - imagens fantásticas, absolutamente fantásticas!
O enlevo começa logo nos primeiros versos, com uma inquietante e surpreendende união das trevas e da luz. Há uma promessa de vida e de morte que nos prende ao texto com a irresistível força de um íman. A tensão vai em crescendo e, quando atinge o clímax, o texto já desapareceu dos olhos do leitor. O poema já não é. A palavra penetrou nos nossos sentidos e enraizou-se nos nossos olhos, nas nossas mãos e algures mais fundo, no coração. A palavra já não é. Fez-se emoção. O poeta perdeu o seu texto porque ele entrou em nós. Nós somos o jardim, o palácio, o céu e a terra... Nós somos a janela que se abre, o medo que imobiliza, a sombra que foge, o silêncio que mata... Nós ouvimos o grito e as vozes sussurrantes e os cânticos distantes.
E quando, enfim, partimos, levamos nos passos e na alma a indelével marca de um existir que se fez sangue, suor, silêncio e dor.
Alice N.
(uma incondicional admiradora da sua Arte)
Enviar um comentário