08/05/08

O novo director da Judiciária e a questão da hierarquia

Curioso tem sido o sentimento sobre a nomeação de Almeida Rodrigues para chefiar a Polícia Judiciária. Magistrados judiciais e do Ministério Público têm vindo a terreiro lamentar a inversão da hierarquia que existirá nesta nomeação. Desde 1945 que a Judiciária é dirigida por um magistrado, agora vai ser por um polícia de carreira. O maior regozijo, para além dos polícias, vem de certos blogues da direita liberal como o Blasfémias (ver aqui, ou aqui, ou aqui), onde alguns bloguistas deliraram com mais um ataque, apesar de socialista, às hierarquias.

De facto, o que está em causa é a noção de hierarquia, não na relação entre magistraturas e polícia, mas no sentido etimológico da palavra. O que ecoa este vocábulo? Que sentido se oculta na sua história? Diz-nos o dicionário da Porto Editora que o termo deriva de um vocábulo grego, hierarkhía, o que já é um sinal de nobreza da palavra. Sabemos também que o vocábulo veio até nós pelo latino hierarchia. O dicionário referido diz-nos que hierarkhía, em grego significa a “dignidade de grão-sacerdote”. Duas pistas interessante: dignidade e sacerdote (o que desempenha funções sagradas, de sacer). Mas aprofundemos a etimologia grega. A palavra hierarquia é composta pelo antepositivo hier(o), proveniente do grego hierós, que significa sagrado (cá está ele mais uma vez) e pelo pospositivo arquia, derivado do grego arkhé, o qual significa comando, autoridade, mas também começo, princípio ou fundamento. Assim, podemos explicar, graças à ajuda do dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, que uma hierarquia se refere a uma ordenação feita segundo um princípio de autoridade fundado no sagrado. Sempre que há uma hierarquia existe, mesmo que seja apenas a um nível inconsciente do uso da língua, uma referência à legitimação da autoridade hierárquica no poder do sagrado.

Desde o poder político ao poder dos juízes, passando até pela a autoridade dos professores, a referência ao sagrado era constitutiva do lugar social de cada um destes estratos. O problema, porém, é que as nossas sociedades são laicas e dessacralizadas, o que conduz a um défice de legitimação hierárquica dos vários poderes e autoridades. A hierarquia de que falam magistrados e juízes já não é substancial, mas apenas funcional. Portanto, não faz sentido a sua reivindicação da gestão da Judiciária por um magistrado, pois do ponto de vista funcional um polícia pode ser melhor opção.

É evidente que não deixa de haver uma sombra em todo este processo. Essa sombra é a da legitimidade dos juízes para julgar, dos políticos para exercer o poder, dos professores para ensinar, etc. Vive-se num mundo onde se pressente que quem executa estas funções não as deveria executar. Provavelmente, o problema não estará nos políticos, nos juízes, nos professores, nos militares, etc., mas no facto da sua hierarquização não estar já fundada na ordem do sagrado. O que é que significa isto? Que o seu poder ou autoridade só tem um fundamento relativo e não absoluto ou sagrado. Isso é mau? Não, pois se juízes, políticos, professores, militares são usurpadores de um poder ou de uma autoridade que não lhes é ontologicamente inerente (não têm a dignidade que o cargo exige), o melhor será deslegitimá-los continuamente, que é aquilo que estas ordens fazem ininterruptamente umas às outras e o povo a todas em geral. Mas qual é o perigo, se é que o há, de tudo isto?

Podemos deixar-nos conduzir, mais uma vez, pelo sentido das palavras. Ora hierarquia tem por antónimo o vocábulo confusão, proveniente do latino confusio, que significa a acção de reunir, juntar, misturar, apontando a significação para a dimensão de uma certa comunidade (reunir, juntar) misturada. Isto não significa que não existam diferenças. Existem, mas agora as diferenças são indiferentes e o que deveria estar mais acima pode encontrar-se mais abaixo. O mundo que nos cabe é o mundo sombrio da confusão. Poderemos utilizar outro vocábulo: caos, proveniente do latim cháos, que significa mistura confusa de elementos. O vocábulo latino é a tradução do grego Kháos. Este significava a “imensidade do espaço”. Na cosmogonia de Hesíodo, era o vazio primordial sem forma de onde brotaram todos os seres do cosmos (universo organizado).

Será que vivemos na mais pura confusão ou no caos? Aparentemente, não. Existem relações estruturadas de poder. O problema é que são baseadas na pura força e não são reconhecidas como legítimas. É este não reconhecimento contínuo da legitimidade e a natureza puramente mecânica dos poderes fácticos que acaba por gerar confusão, pois o sistema consome-se na tentativa de legitimar uma contradição nos termos, a ordem hierárquica não sagrada, que a cada momento é contestada. Onde as hierarquias não são legitimadas pelo sagrado, que as faz reconhecer, resta o nosso mundo confuso e caótico, que tem como motores principais a força e o medo. Onde há força e há medo desaparece a dignidade, seja esta entendida no sentido de posição elevada e honorífica, seja entendida no mero valor moral da pessoa compreendida como ser racional. Aquilo, de onde de facto desapareceram as dignidades específicas, pode ser considerado um caos.

Mas que significará esta situação de caos em que se vive, situação onde as dignidades específicas já não são o fundamento da acção dos homens? Mais uma vez devemos deixar-nos instruir pelo eco que vem de longe. O que pensa poeticamente Hesíodo com o seu Kháos? Pensa no vazio (não foi a nossa época denominada a era do vazio?) primordial e sem forma de onde provieram todos os seres com forma e o mundo ordenado a que se deu o nome de cosmos. O caos que nos coube é apenas a semente do cosmos a vir.

Note-se que não estou a advogar seja o que for. Estou apenas a deixar-me instruir pela longa experiência da humanidade consubstanciada nas palavras que utilizamos.

Sem comentários: