03/05/08

Maio de 68 – 01 A rejeição do saber

Comecemos pela parte final. Inverter os acontecimentos históricos e olhar para eles não no momento em que começam, mas quando dão os seus frutos, permite perceber o que neles estava implícito, mas que o calor dos dias não deixava ver. Há uma história, que já contei noutra ocasião, que se passa em 1969, num período em que a contestação estudantil não tinha acabado, mas que se dirigia para o ocaso. A cena ocorre em Nanterres, na Universidade onde os acontecimentos de Maio de 68 se espoletaram. O filósofo Paul Ricoeur é, à época, o decano da Universidade, isto é, o responsável máximo pela instituição.

Conta que uma vez foi arrastado para um grande anfiteatro para se explicar. O que pretendiam os estudantes? Pretendiam saber o que é que Ricoeur tinha que eles não tivessem. Dito de outra maneira, o que é que conferia autoridade a Paul Ricoeur. A resposta deste é límpida: “Li mais livros do que vocês.” Apesar da clareza e do carácter verrumante da resposta, os tempos estavam a mudar e o saber deixara de ser um factor de legitimação na sociedade. Começava aí um tempo novo que se abateria por todas as sociedades ocidentais e, fundamentalmente, nos seus sistemas de ensino.

Ricoeur assinala que a rejeição daqueles estudantes se ligava a uma identificação do saber ao poder e deste à violência. Mas o filósofo, talvez pelos complexos de culpa que o atingiam, não terá compreendido uma outra faceta da história que viveu. Aqueles estudantes que o contestavam e contestavam o poder, o saber e a violência, não se eximiram de exercer sobre ele, um pacato professor e um filósofo, teólogo e erudito de uma integridade excepcional, a violência e um poder não legitimado a não ser nessa mesma violência. Estava aqui inscrita já uma matriz dos herdeiros, directos e indirectos, da aventura de 68, o autoritarismo e a violência associados ao desprezo pelo saber.

Olhe-se apenas para a política educativa portuguesa. Não por acaso, a actual ministra foi aluna de pelo menos um dos soixante-huitard portugueses e ela mesma, mais tarde, se sentiu atraída por certas ideias libertárias herdeiras da revolta estudantil francesa. A violência com que ela caiu sobre os professores e a desvalorização do saber nas escolas é apenas o desenvolvimento lógico do espírito inscrito no episódio vivido por Paul Ricoeur.

1 comentário:

Anónimo disse...

Desconhecia esse episódio que, de facto, dá muito que pensar. Fiquei impressionada com a resposta do professor, que acho admirável, e que é reveladora de uma grandeza humana excepcional.
Mas fiquei ainda mais impressionada (e, desta vez, de forma nagativa) com a violência exercicida sobre o professor, a negação de um qualquer estatuto especial e a atitude de desprezo pelo saber a que se refere no seu texto.
Confesso (envergonhadamente) que sei muito pouco sobre Maio de 68 e suas repercussões. Tenho uma vaga ideia acerca dos excessos das manifestações estudantis e a repressão sobre as mesmas. Tenho ainda a ideia de que os ideais de 68 terão tido algumas consequências negativas no ensino e educação dos mais jovens (é daí que vem o princípio de que "é proibido proibir", não é?). Confesso, no entanto, que tinha mais uma ideia romântica dessa época por associá-la a uma juventude que se empenhou por causas como o fim da guerra do Vietnam e abanou uma sociedade conservadora, obrigando-a a romper com alguns "códigos" (eu também sou um pouco conservadora em relação a certas coisas, mas quanto baste; e se não defendo rupturas bruscas também não sou adepta do "congelamento").
Enfim, nesta matéria, como noutras, tenho muito que aprender e o seu texto despertou-me a vontade de saber mais. Sei que vai dedicar ao tema vários trabalhos. Serão, de certeza absoluta, um precioso contributo para aprender e reflectir, como, aliás, são todos os excelentes textos que aqui se publicam.
Grata pelo que tenho aprendido A VER O MUNDO,
Alice N.