01/05/08

Hannah Arendt - Sobre o labor e o trabalho (já que é 1 de Maio)

Assim, a distinção de Locke entre as mãos que trabalham e o corpo que «labora» é, de certa forma, reminiscente da antiga distin­ção grega entre o cheirotecnes, o artífice, ao qual corresponde o Handwerker alemão, e aqueles que, como «escravos e animais domésticos, atendem com o corpo às necessidades da vida» — ou, na expressão grega, to somati ergazesthai, trabalham com o corpo. (Mesmo neste exemplo, porém, o labor e o trabalho já são tratados como idênticos, pois a palavra empregada não é ponei, laborar, mas ergazesthai, trabalhar.) Somente num ponto — que, porém, é linguisticamente o mais importante de todos — o emprego antigo e o emprego moderno das duas palavras como sinónimas fracassou inteiramente: na formação do substantivo correspondente. Mais uma vez, encontramos aqui completa unanimidade: a palavra «labor», como substantivo, jamais designa o produto final, o resul­tado da acção de laborar; permanece como substantivo verbal, uma espécie de gerúndio. Por outro lado, é da palavra correspondente a trabalho que deriva o nome do próprio produto, mesmo nos casos em que o uso corrente seguiu tão de perto a evolução moderna que a forma verbal da palavra «trabalho» se tornou praticamente obso­leta.

O motivo pelo qual esta distinção permaneceu ignorada e sua importância nunca foi examinada nos tempos antigos parece-nos bastante óbvio. O desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo esforço que não deixasse qual­quer vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser lembrada, generalizou-se à medida em que as exigências da vi­da na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos e com a ênfase em sua abstenção (skhole) de qualquer actividade que não fosse política, até estender-se a tudo quanto exigisse esforço. O costume político anterior, que precedeu o pleno desenvolvimento da cidade-estado, meramente distinguia entre escravos — inimigos vencidos (dmoes ou douloi), que eram levados para a casa do ven­cedor juntamente com outros despojos de guerra e lá, como mora­dores da casa (oiketai ou familiares), trabalhavam como escravos para prover o próprio sustento e o dos seus senhores — e os de­miourgoi, os operários do povo em geral, que tinham liberdade de movimento fora da esfera privada e dentro da esfera pública. Em época mais recente, os artesãos, aos quais Sólon descrevia ainda como filhos de Atena e de Hefesto, chegaram a receber outro no­me: eram chamados de banausoi, isto é, homens cujo principal in­teresse é o seu ofício e não o mundo público. É somente a partir de fins do século V que a polis passa a classificar as ocupações segun­do a quantidade de esforço que exigem, de sorte que Aristóteles considerava como mais mesquinhas aquelas ocupações «nas quais o corpo se desgasta». Embora se recusasse a conceder cidadania aos banunsoi, teria aceite pastores e pintores — mas não campone­ses nem escultores.

Veremos que, à parte seu desdém pelo labor, os gregos tinham as suas razões para não confiar no artífice ou, antes, na mentalidade do homo faber. Essa desconfiança, porém, só é encontrada em cer­tos períodos, ao passo que todas as antigas classificações das actividades humanas, inclusive as que, como a de Hesíodo, supostamen­te enaltecem o labor, repousam na convicção de que o labor do nosso corpo, exigido pelas necessidades deste último, é servil. Consequentemente, as ocupações que não consistiam em labor, mas ainda assim eram exercidas com a finalidade de atender às ne­cessidades da vida, foram assimiladas à condição de labor; e isto explica as mudanças e as variações de avaliação e classificação em diferentes períodos de tempo e em diferentes lugares. A opinião de que o labor e o trabalho eram ambos vistos com desdém na antigui­dade pelo facto de que somente escravos os exerciam é um precon­ceito dos historiadores modernos. Os antigos raciocinavam de ou­tra forma: achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem às necessidades de ma­nutenção da vida. Precisamente por este motivo é que a instituição da escravidão era defendida e justificada. Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condi­ções da vida humana. Pelo facto de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. A degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fado pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a um animal doméstico. Assim, qualquer alteração na condição do escravo, como a alforria, ou qualquer mudança de circunstâncias políticas gerais que elevasse certas ocupações a um nível de rele­vância pública, significava automaticamente uma mudança na «na­tureza» do escravo».

Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a institui­ção da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida huma­na. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. (Esta era também, por si­nal, a razão da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inu­mana do escravo. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente a sua teoria para depois, no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente como tendem a pensar os moder­nos. Não negava que os escravos pudessem ser humanos; negava somente o emprego da palavra «homem» para designar membros da espécie humana totalmente sujeitos à necessidade.) E a verda­de é que o emprego da palavra «animal» no conceito de animal la­borans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma pa­lavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na terra — na melhor das hipóteses a mais desenvolvida. [Hannah Arendt (1991/5.ª ed). A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, pp. 90-5, adaptado ao português de Portugal]

1 comentário:

Haddammann Verão disse...

Esta é uma das melhores e mais elucidativas postagens que já vi na Rede Bloguista; por isso também vou contribuir com um resumo de um texto em prol das chances que despontam para instituirmos a Meritocracia.
Eis:
Extremissimamente difícil seria pra qualquer um entender como poderíamos “aceitar” a pobreza, como o que “sempre teríamos” (suposta e incoerente fala de um provável ser humano nomeado Jesus). Seria um endosso à irresponsabilidade civil para o cidadão classificado como r i c o. Outro endosso à displicência civil para o ser consciente que tem suporte, acesso, e grau, no Conhecimento Humano é a postura psicológica de Aristóteles referente a t r a b a l h o. Ambos os endossos efetivam o disparate de o ser humano com tão evoluído acervo de informações conviver com um destrambelhamento soberbo em referência às condições sociais de vida.
O que precisamos ver neste instante é que:
Nunca o ser humano pôde prescindir do trabalho; por conseguinte nunca poderia tê-lo visto como “desgastador” da vida humana. Isso foi um engodo psicológico incutido em nosso viver social para justificar a indolência, o uso da força, e a usurpação do mérito.
Porque, por mais que o ser humano tenha de ter sido cruel consigo mesmo para vencer as dificuldades que o âmbito lhe impunha, para se suster como vida, sem dúvida alguma foi o apreço, e atenção, e gozo à sua gradual engenhosidade e curiosidade, que fez fervilhar em notórias expressões muitas e tantas formas e maneiras com que pôde usufruir melhor a vida. Então, como um corrigir da própria Natureza, o ser humano diante de tamanho desacerto social que experimenta hoje, vê o lúmen do acerto na sua ancestralidade. Assim, pelo modo que o ser sapiens se dispôs a viver em sociedade para que ela servisse não só a uns mas a todos, concedendo compensações condizentes aos méritos que se prontificavam, agora somos (como seres sapiens sapiens faber psi) instados a rever a configuração social pela paleta que primitivamente nos edificou – o Mérito, a Função, a Felicidade de Construir, Compartilhar, Comunicar e, propiciar Prazer.