23/05/09

A simples mercadoria

Karl Marx

A mais baixa e a única categoria necessária de salários é aquela que provê à subsistência do trabalhador durante o trabalho e a um suplemento adequado para criar a família a fim de que a raça dos trabalhadores não se extinga. Segundo Smith, o salário normal é o mais baixo que for compatível com a simples humanidade, isto é, com uma existência bestial.

A procura de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a oferta excede por muito a procura, então parte dos trabalhadores cai na penúria ou na fome. Assim, a existência do trabalhador encontra-se reduzida às mesmas condições que a existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se urna mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar um comprador. E a procura, de que depende a vida do trabalhador, é determinada pelo capricho dos ricos e dos capitalistas.
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Este texto retirado dos Manuscritos Económico-Filosóficos, de Marx, revela o fundamento ético que estruturou todo o pensamento posterior do autor. Há aqui toda uma influência subterrânea da moral idealista de Kant que convém tornar clara. O que Marx compreende muito bem é que o ser humano, na figura de trabalhador, fica reduzido à categoria de mercadoria. Como se sabe, as mercadorias são coisas que se compram e se vendem, são coisas que se trocam. Uma mercadoria não tem um valor absoluto em si mesma, ela é apenas um meio para atingir outros fins. Ora Marx percebe então que a humanidade do trabalhador, em regime capitalista, significa apenas que ele não passa de uma mera coisa, um simples meio para que outros atinjam os seus fins.

Mas o que tem isto a ver com a moral kantiana? Em primeiro lugar, porque Kant considera os seres racionais como pessoas e as pessoas, por serem dotadas de razão, são fins em si mesmas e não meras coisas. Em segundo lugar, devido à fórmula do imperativo categórico que manda respeitar a humanidade tanto na minha pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e simultaneamente como um fim em si mesma e nunca apenas como um simples meio.

Quem deslegitimou moralmente a situação do trabalhador no mundo liberal não foi Marx, mas a moral kantiana. A lógica do mundo capitalista assenta, como depois Marx bem viu, na transformação do trabalhador em mera coisa, numa mera mercadoria. Para quem se tenha esquecido disto, basta observar o que se tem passado nas relações laborais durante estes últimos 20 anos.

Pode dizer-se que, no remédio marxista para o problema, foi pior a emenda do que o soneto. É verdade, mas isso não permite extrair a conclusão de que o problema não existe. O comunismo foi uma péssima solução para um problema real. Discute-se muito as relações laborais, a eficiência da economia, a liberdade de contratação. O problema moral, porém, continua: será legítimo tratar seres humanos como meras coisas, isto é, como simples mercadoria? Um dos problemas que a esquerda política, aquela que não se converteu à ideologia do homem como mera coisa ou mercadoria, é a necessidade de ultrapassar a sombra sob a qual ainda vive: um desejo claro ou recalcado da utopia, ou distopia, comunista. Há um problema moral no estatuto dos homens enquanto trabalhadores. Isto merece pensamento e merece novas formas de acção e representação políticas. Uma sociedade que vive dependente desse estatuto, o qual reduz a humanidade de parte substancial dos homens à situação de mercadoria, é uma sociedade imoral.

2 comentários:

José Ricardo Costa disse...

O que os Manuscritos de 44 têm de interessante, é o terem ainda presente uma referência moral e metafísica. Depois, a partir de 45 vai desaparecendo a pouco e pouco. Concordo contigo. Daí, hoje, a esquerda, poder apoiar-se mais num Habermas ou num Rawls do que em alguém vindo explicitamente do marxismo. Em última instância, precisamos sempre de uma deontologia e as categorias económicas não percebem nada de deontologia.

JR

maria correia disse...

É uma sociedade imoral, sim. E está à beira da ruptura. Ou está já, mesmo, em ruptura. Não é por acaso que há um ressurgimento da esquerda, ou de novas esquerdas. Mais uma vez, nunca, desde os anos setenta, talvez, se ouviu falar tanto em Marx como actualmente.