21/05/09

Morte e falecimento


Confirmei, mais uma vez e a propósito de João Bénard da Costa, que em Portugal ninguém morre. No nosso país, falece-se bastante, mas nunca se morre verdadeiramente. Confesso, como se estivesse num confessionário, que cometo um pecado social grave, quem sabe se mortal, pois nunca utilizo as palavras falecer, falecimento, etc. Tenho uma dificuldade intrínseca com elas. Para mim o meu pai não faleceu. Morreu de morte pura e dura. Custa? Custa, mas é assim.

Interrogo-me sobre tanto falecimento e nenhuma morte. E descubro, também aí, mais uma vez aquele característico traço de ser português: enganar a realidade. Quando as pessoas dizem faleceu ou falecimento fazem-no para tornar menos irremediável o irremediável da morte. É como se dissessem: bem faleceu, coitado, mas ainda bem, não está morto, apenas falecido. É aqui que descubro o meu pecado mortal social. As pessoas fazem isto por uma questão de educação. Eu, nem por educação, consigo utilizar o faleceu.

Se eu digo morreu ou morte, digo a realidade do acontecimento. É definitivo, nas palavras morte e morrer nada mais se pensa do que no fim da vida. Mas não será isso que acontece também no falecer? Não! Falecer provém do verbo latino fallescere, que significa faltar. Faltar é já uma boa metáfora para o morrer. Afinal fulano não morreu, apenas faltou ao encontro. Mas no verbo latino fallescere pensa-se ainda outra coisa. Pensa-se o enganar, o induzir em erro, etc. Daí o termo latino fallacia (engano, ardil, etc). Os portugueses, ao substituir o verbo morrer pelo falecer, não estã apenas a dizer que o morto, i. é, o falecido, as enganou, mas que elas próprias estão a ver se enganam a morte, lhe diminuem o seu carácter definitivo, aligeiram as consequências, como se fosse possível instaurar um pacto com a rainha das trevas, para que tivesse, também ela, brandos costumes e os seus éditos fossem como as nossas leis: são para cumprir, mas logo se vê. Não consta, porém, que o coração da velha megera, por mais falecer, falecido e falecimento que os portugueses usem, tenha tido qualquer estremecimento de piedade.

2 comentários:

mtt disse...

Jorge,
passa-se o mesmo comigo.Sinto que me oham com ar de reprovação quando digo que alguém morreu. Como se fosse mal educada ou insensível E o caso piora se, por acaso, é alguém que me é próximo ou conhecido.
Porém, para a morte não há eufemismos...e eu uso a palavra sem constrangimentos. Até porque destesto a palavra "falecer".
Pode ser que isto, um dia, me passe!

maria correia disse...

Só posso encarar este post como um exercício de estilo em tom jocoso...por muito sério que o tema seja. Todas as línguas têm pelo menos dois verbos para referir a mesma situação: morrer e falecer, to die e to pass by/on, sterben e versterben, mourir e déceder, fallecer e morirse...usam a forma equivalente ao verbo falecer, to pass by/on, versterben, déceder ou fallecer (nas línguas que melhor conheço) como forma de respeito, é mais literário...no entanto, em antologias, por exemplo, em que é necessário referir-se a data de nascimento e morte, é sempre a forma equivalente ao verbo morrer que é usada: Fulano d etal nasceu em...morreu em...
Nada disto tem a ver com camuflagem alguma sobre o problema, é apenas uma questão de respeito, de utilizar a forma mais literária e , quiçá, mais nobre da língua para referir tal facto. Não são apenas os portugueses a fazê-lo. Para um alemão, por exemplo, dizer «er ist gestorben» é quase um insulto..«versterben» será o utilizado. São verbos que conotam um registo mais elevado da língua, apenas isso...