A vida amorosa
A SIC decidiu prendar o país com uma mini-série sobre a vida íntima de Oliveira Salazar. Independentemente da qualidade e da verosimilhança, o que ocorre perguntar é a intencionalidade da coisa. É provável que não se pretendesse mais nada do que explorar, para consumo popular e voyeurista, a equivocidade da vida sentimental do ditador. Mas estes projectos não são inócuos. Como é dito no Portugal dos Pequeninos, para estudar o Estado Novo e Salazar não é preciso a vida íntima de Salazar para nada. Mas o problema não é tão simples. Salazar sempre foi discreto em relação à sua vida amorosa e deixou transparecer uma espécie de castidade que legitimava a sua pertença à imaginária galeria dos heróis e santos varões que tinham feito de Portugal um imenso império. A gestão da sua intimidade não pode ser desligada nem da ideologia nem da forma como fazia política. Contudo, esta mini-séria da SIC não é a desmontagem de um mito, mas o sintoma de que os tempos mudaram. Se homens como Salazar e Cunhal eram mais ou menos secretos na sua vida amorosa, se os outros eram relativamente discretos, isso acontecia não apenas por uma questão de carácter, mas porque o tempo lhes exigia isso, porque a política era suficiente para concentrar o interesse público. O que se passa hoje em dia é uma alteração do interesse público. Este retraiu-se para a esfera da intimidade e as pessoas, treinadas pelos reality shows e por uma televisão sôfrega de episódios picarescos, apenas se interessam em espreitar para a suposta vida íntima das grandes personagens. O que este episódio televisivo mostra não é Salazar, mas a destruição do espaço público na nossa sociedade e o desinteresse geral que a política gera no mercado das emoções populares. A intencionalidade desta realização não é desmontar ou reabilitar a personagem do Professor Salazar, mas cimentar o novo espírito do tempo, o espírito niilista que toca em tudo e a tudo dissolve no acto de espreitar.
1 comentário:
Peter Weir fez um filme fabuloso sobre isso. The Truman Show.
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