21/02/09

Ciência e ideologia


O Zé Ricardo, num interessante post onde refere o interesse de Álvaro Cunhal pela teoria de Darwin, escreve «A Ciência, por princípio e definição, não é ideológica. Mas é uma arma demasiado séria e poderosa para ser desprezada pelas ideologias.» Nestas proposições, que assentam num certo consenso iluminista, há um problema que me parece merecer pensamento. A questão poderá ser formulada da seguinte maneira: o que, na ciência, a torna digna de interesse por parte da ideologia? O que nela permite a sua exploração ideológica por parte das ideologias políticas?

O termo ideologia foi criado no início do século XIX, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, e tinha o significado de uma ciência das ideias, tomadas estas como o conjunto de estados da consciência. A fortuna do conceito de ideologia nasce, porém, com a utilização feita do termo por Marx. Para este, a ideologia representava uma visão invertida, distorcida do real. De certa forma, é desta maneira que o Zé Ricardo a utiliza no seu post.

Mas se nós quisermos perceber o fenómeno ideológico, não podemos pôr de lado nem a primeira definição de ideologia dada por de Tracy, nem sequer uma longa arqueologia que terá um momento importante nas Ideias platónicas, e deverá também incluir obrigatoriamente o conceito de “idola”, de Francis Bacon. Também, para essa arqueologia, não é pouco importante a problemática judaica do combate à idolatria, a perversão na crença nos ídolos.

Onde deveremos inscrever a ciência dentro desta problemática? Não será ela uma arma contra toda a idolatria e contra toda a distorção que a ideologia introduz na relação do homem com a realidade? Sim, mas... A ciência não deixa de ser um produto ideológico, se aceitarmos a definição muito genérica dada por de Tracy. A ciência, ao lado de outros fenómenos como a filosofia, o senso comum, o mito, etc., faz parte dos sistemas ideológicos, tomados no sentido geral, com que a humanidade apreende e compreende o mundo. Entre a ideologia política, tomada como forma distorcida de compreensão do real, e a ciência há uma comunidade: são ambas formas de compreensão e de acção sobre o real. Este é um primeiro motivo que permite o aproveitamento pela ideologia política (totalitária ou democrática) da ciência. Esta pela sua natureza ideológica originária presta-se a estes aproveitamentos perversos.

Mas há ainda uma outra razão pela qual deve relativizar-se a primeira proposição do Zé Ricardo: «A Ciência, por princípio e definição, não é ideológica». A ciência não é apenas um produto ideológico, entre outros, produzido pela espécie humana, mas um produto que possui na sua raiz uma decisão ideológica muito específica. A instituição da ciência moderna com Galileu, depois continuada por Newton, etc., constrói um objecto de investigação por decisão ideológica. O que Galileu faz é definir aquilo que deve ser ou não ser considerado natureza para objecto de investigação. Esta decisão não está inscrita na natureza das coisas. Deve-se a uma opção fundada na consciência humana, a uma opção ideológica. Como certas leituras fenomenológicas mostraram, há uma pré-compreensão do que é a natureza, pré-compreensão que determina a definição de objecto de investigação, bem como a construção do corpo teórico, dos processos e métodos de investigação, etc. As ciências, tanto as da natureza como as sociais e humanas, assentam, dessa forma, numa tomada de posição (uma perspectiva unilateral) sobre os respectivos objectos. Desse ponto de vista, a ciência é ideologia e ideologia que se funda num determinado perspectivismo sobre o real. É por isso, pela sua natureza ideológico-perspectivística, que a ciência exerce uma enorme atracção sobre a ideologia política, seja ela de que quadrante for, também ela perspectivística.

Há ainda uma outra questão que mereceria atenção. As ideologias políticas modernas são, em geral, produtos posteriores ao nascimento da ciência moderna. Seria interessante seguir o rasto dessas ideologias e observar o momento e a forma como elas se encontraram com a ciência moderna. Talvez pudéssemos constatar um facto muito curioso: o berço das ideologias políticas modernas, daquelas que pervertem e distorcem a visão da realidade, situa-se no caminho aberto por esse acontecimento seminal que o foi a decisão metodológica de Galileu. Talvez, eu sei que estou a usar uma formulação eufemística, a ideologia política, enquanto visão pervertida da realidade, tenha nascido da sobredeterminação ideológica presente no acto originário que institui a própria ciência. Mais: as ideologias políticas seriam uma espécie de ganga proveniente do impacto social causado pela ciência moderna, uma espécie de espuma causada pela própria sobredeterminação ideológica da ciência. Que essa sobredeterminação ideológica da ciência moderna seja recalcada é aquilo que dá que pensar.

1 comentário:

José Ricardo Costa disse...

Certo, num sentido lado, a ciência é ideologia. A ciência não deixa mesmo de ser uma perspectiva sobre a realidade. Mas o facto de ser uma perspectiva não significa que seja uma perspectiva como as outras, nomeadamente a ideologia, vista num sentido mais estrito.

Eu estou longe de achar que "a realidade" é aquela que nos é dada pelas leis científicas. Mas há uma objectividade nessas leis que demarcam a ciência de outras perspectivas. A realidade está longe de se esgotar nos conceitos funcionais da biologia ou da química e nas leis da física. Mas tais conceitos e leis são o que são. O problema não está na ciência como ideologia em sentido lato mas antes quando se transforma a ciência em ideologia em sentido estrito, entre outras ideologias e perspectivas. Com os defeitos inerentes ao processo cientifico continuo a respeitar mais o Carlos Fiolhais ou o Nuno Crato do que o Zandinga ou a menina que trabalha na caixa do supermercado e que tem um curso em energias alternativas.