20/02/09

Apontamentos para uma arte poética - II

Nós percebemos o mundo como uma cadeia de causas e efeitos, como um contínuo de ligações entre fenómenos, mas será que o mundo é efectivamente assim? A relação causal existirá efectivamente? Por exemplo, David Hume, embora não a negando, diz que nós não temos qualquer experiência da conexão causal entre fenómenos. Apenas nos habituámos a esperar que certa coisa aconteça quando uma outra acontece ou aconteceu. A ligação causal seria então o resultado de uma idiossincrasia psicológica da espécie humana. Mas o que tem a poesia a ver com tudo isto? Em primeiro lugar, poderemos pensar que aquilo a que David Hume chama um hábito se relacione com a estrutura sintáctica das nossas línguas. A sintaxe ordena os elementos dentro da frase. Esta ordem, porém, não é uma ordem que pertença ao mundo, mas à língua. Diferentes línguas ordenam os elementos no interior da frase de formas diversas. Essa ordenação linguística acaba por ser uma forma de compreender o mundo. Eu olho para o mundo a partir da sintaxe da língua que falo. Podemos perguntar, de forma mais radical, se a conexão causal que compreendo no mundo não será o efeito global da sintaxe que uso para descrever o mundo. Pode não haver ordem no mundo, ordem entre os fenómenos, mas a sintaxe impõe-na, cria-a. Em segundo lugar, podemos perceber que a poesia, apesar de suspender, por vezes, certos usos sintácticos correntes, não atinge o núcleo central da percepção causal dos fenómenos mundanos ou psicológicos. Ela não suspende a sintaxe, refunda-a, o que significará que ela refunda a forma de compreender a conexão causal que nos parece existir no mundo. A poesia, mesmo aquela onde a gramaticalidade usual é questionada, acaba por reforçar essa nossa percepção do mundo como uma evidente relação de causas e efeitos [continua]. [20/02/2009]

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