Perfilados de medo
O General Ramalho diz que existe um clima de medo crónico de criticar para não ser prejudicado e de arriscar. Por que razão será? Porque a nossa sociedade é constituída por gente muito dependente. A sociedade portuguesa é uma teia de gente frágil, onde alguns menos frágeis ditam o rumo que lhes interessa. Os portugueses não foram educados num espírito de independência e de amor pela liberdade. Veja-se o caso mais paradigmático de todos. O Partido Socialista nasceu como um grande partido da liberdade e de homens livres, de gente independente que afrontou o anterior regime e fez frente à possibilidade de uma nova ditadura vinda do outro lado do espectro político. Mas o que é hoje o Partido Socialista? Onde está aquele espírito dos heróis fundadores? Foi deglutido pelos profissionais da política, por gente que nunca afrontou nada de perigoso, por gente que pensa apenas nas suas carreiras. O Partido Socialista tornou-se num partido perigoso. As pessoas têm medo dele e ele dá-lhes razão e gosta de que as pessoas tenham medo. Quem se mete com o PS leva. Esta frase de um antigo dirigente mostra o espírito da coisa. Se o Partido Socialista se tornou uma agência de dominação, como não hão-de os portugueses, na sua miséria ancestral, não ter medo. Em Portugal, sabe-se muito bem quanto o poder é poderoso, como ele liquida a vida das pessoas, como os seus braços são como Deus, estão em toda a parte e cuidam de nós. Os portugueses foram treinados, e continuam a sê-lo todos os dias, para o medo e para a cobardia. E se levantam a cabeça, aprendem muito rapidamente que os olhos não se devem levantar do chão. O General, um homem corajoso, às vezes confunde-se. Perfilados de medo...
5 comentários:
"O General, um homem corajoso, às vezes confunde-se" - certo.
"Perfilados de medo"?
Quem?
Ora, ora...
"Os portugueses foram treinados, e continuam a sê-lo todos os dias, para o medo e para a cobardia" - para nossa triste sina, também é verdade...
Bom, mas ficou-me cá a enzonzinar a mioleira aquela do "perfilados de medo"...
jlf
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drumond Andrade
Acabada de chegar de uma aula de português a estrangeiros,profissão que continuo a exercer a par da minha actividade como tradutora, aula essa em que ensinei português a pessoas, adultas, que vivem cá há três anos, não trago comigo de modo algum, da parte dessas pessoas e de muitos outros estrangeiros que tenho conhecido ao longo da vida, a impressão de que os portugueses foram treinados para medo. Pelo contrário. Consideram-nos uns lutadores. Os quiproquos que para aí existem, existem em todo o lado. A classe política nada mal em toda a Europa, os que antes eram vistos como salvadores da nação acabam por se revelar seres corruptos. Nada de particularmente nosso. Tenho sempre combatido ao longo da visa, a ideia miserabilista que muitos portugueses fazem de si próprios. Foi por medo que se fez a revolução de 1383-85? Foi por medo que andámos pelos sete mares? Foi por medo que se fez a Restauração? e o 25 de Abril, também foi realizado por uma cambada de medrosos? E a luta diária de milhões de portuguses contra situações adversas também é medo? Um amigo meu espanhol, director de uma empresa e que vive cá há um ano, queixa-se desse espírito miserabilista e queixoso de alguns portugueses que conhece e diz: «deviam era ir viver para Espanha. as coisas lá estão/são muito piores.» Há pouco tempo, enviou aos amigos portugueses um artigo de uma revista de economia estrangeira,famosa, para que todos lessem o artigo que vinha sobre Portugal: « o país da Europa com mais possibilidades para superar a crise actual.»....enfim...e, já agora, o Drummond de Andrade era brasileiro e viveu numa época conturbada da história do Brasil e o poema refere isso e nada mais. Poemas desses, todos os povos os fizeram, numa altura ou outra da sua história...aqui em Espanha, lembro-me do Lorca, por exemplo. Repito a pergunta de JLF: «perfilados do medo, quem?»
Para mim, os poemas não têm idade nem os poetas nacionalidade; ainda mais quando escrevem poemas intemporais como estes, nesta magnífica Língua que é nossa e de tantos espalhados pelo mundo.
O Medo
(...)
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
(...)
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
Carlos Drummond de Andrade
Heroísmos
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar, rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!
Cesário Verde, 7 de Fevereiro de 1874.
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