A escola verdadeiramente pública
Foi ali, no Liceu Nacional de Sá da Bandeira, em Santarém, que prestei provas para ver se era admitido no ensino liceal. Todos os candidatos tinham de fazer exame escrito e submeter-se a uma prova oral, onde professores do Liceu testavam o conhecimento e a destreza intelectual do candidato. Não me lembro rigorosamente de nada das provas escritas. Recordo-me, porém, de ter uma sensação de estar num edifício descomunal, se comparado com a escola primária de Torres Novas, de onde vinha. Tive a clara sensação de uma descontinuidade ontológica entre esses espaço escolares (sim, eu na altura não fazia sequer ideia que essa palavra existia, tinha apenas 9 anos). Ali, no Liceu, como se dizia em Santarém, eu estava noutra realidade, e isso era claramente pressentido por uma criança de 9 anos.
Lembro-me também da prova oral. Havia alunos, pais e professores a assistir às provas. Meu Deus, aquilo era mesmo a sério. Era um obstáculo e as várias equipas (sim, o aluno, os pais e o professor que o tinha preparado formavam uma equipa) torciam pelo seu candidato (o qual jogava apenas consigo mesmo) e ansiavam que ele saltasse o obstáculo. Fui interrogado sobre aspectos da Língua portuguesa, de História e de Geografia de Portugal (onde, na altura, se incluía as colónias). Lembro-me vagamente de estar perante mapas, a declinar rios e afluentes, produções e recursos. Mas o que recordo melhor é a parte referente à Matemática. Não da prova em si, mas da personagem do professor. Um homem grisalho, de face rubicunda, vestido com uma bata branca (talvez isso me tivesse desconcertado um pouco), um ar severo. Julgo que, durante a prova realizada no quadro, ele manejava um ponteiro de cana-da-índia, mas que ali tomava o singular sentido de um objecto que tivesse nascido da fusão de um bastão e de um ceptro real (de facto, aquele professor era um representante da autoridade - a do saber, claro - e da comunidade). Diz quem assistiu, que ele foi impiedoso e excessivo no interrogatório. Confesso que não faço ideia da veracidade do facto, sei apenas que sobrevivi. Quando saíram os resultados, eu era já outra pessoa. Tinha 9 anos, mas já não estava na escola primária. A cerimónia iniciática tinha-me conduzido, como a milhares de rapazes e raparigas com 9 e 10 anos, para um novo território e uma nova realidade. Eu tinha prestado provas numa escola verdadeiramente pública.
Aquela experiência do excesso (o espaço excessivo, a seriedade dos actos) não era traumática. Apenas tornava mais forte quem por ela passava. A única injustiça que existia no processo residia no facto de muitos estarem à partida excluídos da prova devido à sua origem social. Era isso que deveria ser corrigido. Mas o que aconteceu foi o contrário. Isso continuou a separar os alunos, mas os obstáculos que os tornavam melhores e mais fortes foram, um a um, removidos.
Este é o meu comentário ao texto do Zé Ricardo, no Jornal Torrejano e no Ponteiros Parados.
3 comentários:
Na verdade, também nunca dei por mal empregues, duma forma geral, aqueles métodos da básica aprendizagem que se usavam no meu (nosso) tempo.
E no meu tempo "a tortura" dos exames começava logo na terceira classe (a que se chamava exame do primeiro grau). Era obra...
Curiosamente dei comigo a comentar mais de acordo com o que tinha lido escassos minutos antes nos PP do que com o que acabara de ler neste seu interessante post.
Pois que também me recordo bem dessa iniciática experiência que, no meu tempo, começava um pouco antes: os exames (em Lisboa, onde eu vivia), no meu caso, e pelo menos num dos dois exames que antecediam o exame de admissão ao liceu, já era feito em escola diferente daquela onde se fizera a aprendizagem e com professores dessa onde decorria a prova...
Fica o anonimato que a persona não importa, sóa história.
Tendo por Mãe uma revolucionária excessivamente jovem tive a sorte de ter Avós atentos que contra a corrente me colocaram num colégio rigoroso e exigente ao arrepio das conquistas de abril. Todos os anos tinha Provas Gerais, 1 por dia durante uma semana, toda a matéria toda a exigência, numa altura em que muitos já se espreguiçavam ao sol eu, nos anos 80, estudei e muito. Deu-me resistência e capacidade de enfrentar tarefas hercúleas.
A exigência melhora-nos!!!
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