17/02/09

Nuno Pacheco (Público de 17/02/09) - Ela devia estar viva, ele podia estar livre

Ahmad vai ficar preso para o resto da vida por ter tirado o resto da vida à irmã. Ele tem 23 anos, ela tinha apenas 16. Ambos demasiado jovens para tal drama e, no entanto, tanto ele como ela são a face visível de um problema maior: o dos chamados "crimes de honra" em nome da família, frequentes em certos meios islâmicos.

As fotos que acompanhavam a notícia da sentença, nas agências, mostravam, além do ar vago e algo comprometido do réu, a reacção colérica do pai, atirando pelos ares as velas que tinham sido colocadas à porta do tribunal, com a cara da filha e em sua memória. Como se a injustiça fosse apenas a da sentença, ao tirar-lhe um filho depois de perder outro. "O mundo em que ele vive não é o nosso. É um mundo em que a honra da família vale mais do que a vida de uma pessoa", disse no tribunal o procurador Boris Bochnick. E, na verdade, é nesse pressuposto que a família Obeidi, de origens afegãs, viveu e vive na Alemanha de hoje.

Morsal, a vítima, não exigia nada de muito extravagante. Nascida no Afeganistão, queria apenas poder viver como as jovens alemãs da sua idade. A revista Der Spiegel, que após o crime foi no encalço da sua história, descobriu uma guerra familiar que já vinha de longe, com discussões, espancamentos e intervenção dos serviços sociais.

Depois da escola, onde convivia com estudantes de 18 países, Morsal costumava reunir-se com os amigos num local que a família não considerava recomendável. Um local "onde se podia fumar, ouvir música e ocasionalmente beber álcool", como se escrevia na Spiegel de 25 de Agosto de 2008, num longo artigo intitulado O elevado preço da liberdade. Morsal gostava de hip-hop, pop afegã e chamava a atenção dos rapazes. Um pesadelo para a família.

Família que, no entanto, não era sequer considerada das mais tradicionalistas. Simplesmente, não pactuava com a visão do mundo que era já a de Morsal. E que incluía calças justas, maquilhagem e cabelo das mulheres a descoberto. No meio das desavenças, tentaram um truque: enviaram-na para o Afeganistão, para se "regenerar". Não resultou. No regresso, o pai (nas palavras da Spiegel) esperava uma filha diferente e esta um pai diferente. "Ficaram ambos decepcionados." Até que, certa noite, o irmão (que tinha antecedentes criminais, de violência juvenil) a atraiu, com a ajuda de um primo, a uma estação de autocarros e a apunhalou vinte vezes. Até ferir o antebraço.

Ahmad, diz, "amava" a irmã. Ela temia-o, mas, juntos, temiam ainda mais o pai, um antigo soldado afegão treinado pelos soviéticos e imigrado na Alemanha desde 1992. A "honra" da família fê-lo perder dois filhos. Ela devia estar viva, ele podia estar livre. Isto se a tradição medieval a que tantos ainda se submetem passasse a ser, apenas, uma vaga recordação do passado.

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