Uma nostalgia chamada Salazar
João Gonçalves, do Portugal dos Pequeninos, conta aqui que os «livros de e sobre o antigo presidente do Conselho “saem” bem». Esta qualidade mercantil é sintoma de uma certa nostalgia. Ponho de lado os antigos partidários, pois pelo seu estatuto teriam um interesse natural pelo chefe. Mas há um público que vai muito para além disso. Salazar exerceu, de facto, um verdadeiro fascínio sobre as elites, não apenas de direita. Mesmo à esquerda, para além da retórica comicieira e do debate partidário, há um claro interesse pela personagem. Não é impunemente que se governa um país todo aquele tempo. Isso dá que pensar. Poder-se-á falar na censura, na polícia política e no apoio das Forças Armadas. É verdade, mas não justifica o apoio disseminado que o ditador recebeu no país. Isto intriga também a esquerda.
Nesta nostalgia que se manifesta no bom mercado do produto, podemos descortinar três facetas, duas mais populares, outra mais ligada às elites. Em primeiro lugar a probidade da pessoa. De Salazar soube-se sempre que era pobre e pobre morreu. Nunca quis imitar as elites sociais, nem fingir o que não era. Havia nele uma ascese e uma espécie de consagração à sua concepção de pátria. Encarnava um ethos de serviço apenas analogável, noutro quadrante, a Álvaro Cunhal. A representação do que deve ser o comportamento de um político para com o bem comum ficou, no nosso país, marcada por este tipo de atitude. A nostalgia nasce do confronto entre o o modo de agir de uma certa classe política (exceptua-se, para bem da verdade, o PCP) que cresceu com a democracia e as facilidades dos dinheiros vindos da União Europeia. Primeira marca da nostalgia: contra condutas irresponsáveis acaba por emergir o ideal ascético e o ethos do serviço representados por Salazar.
Uma segunda faceta dessa nostalgia centra-se na oposição entre estabilidade e instabilidade. Salazar representou, de diversas maneiras, um princípio de estabilidade e continuidade nas instituições. Não apenas devido às farsas eleitorais, mas também porque significou o fim de uma república onde o medo tinha crescido acima do aceitável. Um outro traço desta faceta está ligado ao mito da salvação de Portugal na II Guerra Mundial. Numa altura de catástrofe universal, o país ficou de fora. Este mito (assisti há muitos anos no ISCTE à sua desmontagem por Medeiros Ferreira) conferiu uma aura a Salazar de homem quase divino na preservação da estabilidade pátria. Mito este com grande capacidade de penetração no imaginário popular. E isso acentua-se quando as instituições democráticas e a nova ordem mundial tornam o país muito mais vulnerável à instabilidade.
Se estas duas facetas representam a força da nostalgia popular, digamos assim, há um outro factor que atrai as elites políticas, à direita e à esquerda. Salazar parece ser um tradicionalista, um homem do interior rural, um universitário de província. Mas curiosamente é nele, tanto ou talvez mais do que em Pombal, que se manifesta a modernidade política em Portugal. O que marca a modernidade é a noção de autonomia. Com a modernidade, os vários sectores da vida comunitária começam a deslassar-se, a governarem-se segundo regras próprias. Ora a forma como Salazar exerceu o poder político é claramente moderna: autonomia perante a Igreja (a força da Igreja na época resultava de um certa submissão ao Estado), autonomia perante o poder económico, autonomia perante os diversos poderes fácticos. É aqui, nesta ambivalência do homem pré-moderno que governa segundo os princípios da modernidade, que está muito do fascínio político que Salazar exerce nas elites, incluindo as de esquerda, repito. Num momento em que o Estado está perfeitamente manietado pelos interesses particulares e pelos poderes fácticos, da economia ao futebol, a independência do Estado que Salazar preservou não deixa de causar uma necessidade imperiosa de olhar para o fenómeno, de o estudar e de o conhecer.
É provável, assim, que esta nostalgia difusa não tenha um fundamento no desejo de viver sob a ordem salazarista, mas represente um momento em que uma época importante da nossa história começa a criar condições para ser olhada de uma forma mais objectiva, e de ser pensada não a partir das posições das diversas facções pró ou contra, mas a partir daquilo que é especificamente político. Dito de outra maneira: que fenómeno político foi o salazarismo? Gostemos ou não da personagem (e eu claramente não gosto de muito do que fez), ela não deixa de ser enigmática. Mais, esse enigma cresce com o afastamento temporal. Nada melhor do que um enigma para gerar nostalgias.
Nesta nostalgia que se manifesta no bom mercado do produto, podemos descortinar três facetas, duas mais populares, outra mais ligada às elites. Em primeiro lugar a probidade da pessoa. De Salazar soube-se sempre que era pobre e pobre morreu. Nunca quis imitar as elites sociais, nem fingir o que não era. Havia nele uma ascese e uma espécie de consagração à sua concepção de pátria. Encarnava um ethos de serviço apenas analogável, noutro quadrante, a Álvaro Cunhal. A representação do que deve ser o comportamento de um político para com o bem comum ficou, no nosso país, marcada por este tipo de atitude. A nostalgia nasce do confronto entre o o modo de agir de uma certa classe política (exceptua-se, para bem da verdade, o PCP) que cresceu com a democracia e as facilidades dos dinheiros vindos da União Europeia. Primeira marca da nostalgia: contra condutas irresponsáveis acaba por emergir o ideal ascético e o ethos do serviço representados por Salazar.
Uma segunda faceta dessa nostalgia centra-se na oposição entre estabilidade e instabilidade. Salazar representou, de diversas maneiras, um princípio de estabilidade e continuidade nas instituições. Não apenas devido às farsas eleitorais, mas também porque significou o fim de uma república onde o medo tinha crescido acima do aceitável. Um outro traço desta faceta está ligado ao mito da salvação de Portugal na II Guerra Mundial. Numa altura de catástrofe universal, o país ficou de fora. Este mito (assisti há muitos anos no ISCTE à sua desmontagem por Medeiros Ferreira) conferiu uma aura a Salazar de homem quase divino na preservação da estabilidade pátria. Mito este com grande capacidade de penetração no imaginário popular. E isso acentua-se quando as instituições democráticas e a nova ordem mundial tornam o país muito mais vulnerável à instabilidade.
Se estas duas facetas representam a força da nostalgia popular, digamos assim, há um outro factor que atrai as elites políticas, à direita e à esquerda. Salazar parece ser um tradicionalista, um homem do interior rural, um universitário de província. Mas curiosamente é nele, tanto ou talvez mais do que em Pombal, que se manifesta a modernidade política em Portugal. O que marca a modernidade é a noção de autonomia. Com a modernidade, os vários sectores da vida comunitária começam a deslassar-se, a governarem-se segundo regras próprias. Ora a forma como Salazar exerceu o poder político é claramente moderna: autonomia perante a Igreja (a força da Igreja na época resultava de um certa submissão ao Estado), autonomia perante o poder económico, autonomia perante os diversos poderes fácticos. É aqui, nesta ambivalência do homem pré-moderno que governa segundo os princípios da modernidade, que está muito do fascínio político que Salazar exerce nas elites, incluindo as de esquerda, repito. Num momento em que o Estado está perfeitamente manietado pelos interesses particulares e pelos poderes fácticos, da economia ao futebol, a independência do Estado que Salazar preservou não deixa de causar uma necessidade imperiosa de olhar para o fenómeno, de o estudar e de o conhecer.
É provável, assim, que esta nostalgia difusa não tenha um fundamento no desejo de viver sob a ordem salazarista, mas represente um momento em que uma época importante da nossa história começa a criar condições para ser olhada de uma forma mais objectiva, e de ser pensada não a partir das posições das diversas facções pró ou contra, mas a partir daquilo que é especificamente político. Dito de outra maneira: que fenómeno político foi o salazarismo? Gostemos ou não da personagem (e eu claramente não gosto de muito do que fez), ela não deixa de ser enigmática. Mais, esse enigma cresce com o afastamento temporal. Nada melhor do que um enigma para gerar nostalgias.
2 comentários:
Embora concorde com muitos dos aspectos referidos,penso que a moda Salazar pouco tem a ver com nostalgia.Penso ter mais a ver com ignorancia.
Essas nostalgias são, quanto a mim, perigosas...se é que são nostalgias...conheço gente de esquerda que acha «bem» dizer que, afinal, o senhor até era probo...e que fez escolinhas miniatura por todo o país...a igreja estava subordinada ao estado? Cresci com a «anedota» de que Cerejeira e Salazar eram amantes...e há gente de direita que o considera de visão curta...O «orgulhosamente sós» fez de Portugal uma país miserável. Lembro-me de viajar de Paris para Lisboa, no interail, no final dos anos 70. DEpois de ter visto as maravilhas de uma país reconstruído totalmente da II guerra mundial, a fronteira para ESpanha já era um horror de miséria e castanholas. E a chegada a Portugal era...um terror. Quase tinha vergonha de ser portuguesa...Santa Apolónia era escura, tenebrosa, miserável, Lisboa caía aos bocados, as populaçõe sno Alentejo comiam pão com azeite e azeitonas quas etodo o dia...gosto da palavra «enigmático» mas não a aplico a Salazar. A imagem que dele guardo é algo tenebrosa, tipo termos de, na escola primária, fazer uma oração todas as manhãs por ele. Pelo senhor ditadorzinho...Como ficou cinquenta anos no poder? da maneira que todos os ditadores ficam: controlando, prendendo, censurando, matando quantos lhe fizeram frente. Já me disseram que escrevia muito bem...Nunca tive vontade sequer de o confirmar.
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