23/06/08

Exodus - I

Não há quem saia pela manhã a olhar
as dispersas sementeiras, os campos invadiram.
A mão crispou-se, agora novelo de linho
esquecido sob a luz da clarabóia.
Não há seta que indique o lugar onde o desejo
se quer e irrompe no crepúsculo matinal,
entre corações desfeitos, a gotejar ervas,
e mãos presas à viagem, assim começada,
para um deserto de páginas em branco,
sem luz que ilumine, cor que incendeie,
sílabas, por filhos palavras dêem.

Não é cântico de júbilo o que na garganta
se forma, nem palavra tingida pela acidez
dos dias. O arco-íris esbateu-se, as nuvens
ficaram mais opacas, quase sólidas,
numa atmosfera de cactos, ruas vazias,
faces atónitas levemente estropiadas. Se
cicatrizes ainda têm, nelas nasceu uma erva rasa,
amarela, queimada pelo cálcio, a tudo devora.

Não é âncora o que ofereço, nem lenço
para lágrimas, se lágrimas ainda te ardem
sobre a pele rugosa, a face, dizes que te disseram.
Espelhos não fabrico, nem do vidro
sei o segredo, nem das mãos o aconchego.
Canto na escuridão para não morrer,
para me ouvir e adivinhar o que ainda sou
e nesta ilusão caminho estrada fora,
os pés no chão, e na cabeça, ainda a tenho,
o ar da noite preso numa caravela.
Ao arder, ponho máscara de cera e se invoco
o deus, oiço a voz de quem de casa não sai
a olhar as dispersas sementeiras;
no fulgor do passado, os campos invadiam.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

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