Exodus - V
Não celebrarás no deserto a festa,
um dia, à sombra dos canaviais,
a ordenaram. Tomado pela areia movediça,
o corpo cede instante a instante e,
no lento mover-se em direcção ao fundo,
contamina-se de insectos. Multidões de varejeiras
desenham uma prisão de asas,
tão leve como as flores do nenúfar
e, nessa inquietação, sobeja ainda um sopro
que de entre os lábios sai. A mão, assim
lhe chamaram, acaricia as grades,
e no vento por elas soprado há um frémito
fatal que escurece a negra luz:
sobre o mundo, ao arder, incendeia
furacões, tempestades tropicais,
as areias em convulsão, onde corpos,
exaustos de tanto gritar, se tornam cediços,
maleáveis, matéria friável a abrir-se
à inconstância pegajosa dos sonhos.
Por aí caminha um povo de sonâmbulos,
as nuvens tapam de folhas os que enfrentam
as agruras sufocadas das areias, poeira solícita
que ao alcatrão cobre e dos homens o escondem,
como se ele, na síntese viscosa que o faz ser,
cometesse um crime e em seu ser criminoso
apenas velados espaços quisesse por morada.
Era um povo sem pátria nem castelos nem rios
nem memória. Habitava a nudez e quando
os homens se inclinavam para os seios das mulheres,
estas olhavam a paisagem ao longe e deixavam
a água escorrer dos cântaros de barro vermelho,
cobriam de luto a cabeça e os olhos, olhos eram,
fechavam-se à intensa cor do dia, agora
um risco vazio num calendário
de folhas ressequidas, herbário onde
rosas, violetas e lírios se decompunham
durante os meses de Verão, violentos meses eram.
Seguiam depois em frente, homens e mulheres, mas nem o
deserto os acolherá nem lugar terão para a festa,
um dia, na ordenação das coisas, ordenada lhes fora.
Seguem calados o movimento dos astros,
enquanto com os dedos desenham esfinges
de água sólida sobre o silente fragor da terra.
Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.
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