O fundo negro da razão
À mesa, à direita do Dr. K, senta-se um velho general que está quase sempre calado mas por vezes faz umas observações de abissal profundidade. Uma vez levantando os olhos do livro que tinha sempre aberto ao seu lado, disse que, pensando bem, entre a lógica do plano de batalha e a lógica das informações militares, e ele conhecia tão bem uma como outra, estende-se um vasto campo de eventualidades impenetráveis. Insignificâncias, mas que, escapando à nossa observação, são decisivas! Foi assim nas maiores batalhas da história mundial. Insignificâncias, mas que têm o peso dos 50 000 soldados e cavalos mortos em Waterloo. Afinal, é tudo uma questão de peso específico. Stendhal viu isto melhor do que qualquer estado-maior e nos seus tempos de velhice tratou de estudar o assunto, para não morrer na ignorância. No fundo, é uma ideia peregrina pensarmos que, com uma volta ao leme, com a vontade, podemos influenciar o curso das coisas, quando na verdade elas são determinadas por interacções de uma extrema complexidade. (W.G. Sebald, Vertigens. Impressões)
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Uma das crenças mais fundas da modernidade ocidental, uma espécie de fé de ateus crentes no progresso, é a possibilidade de penetrar naquilo a que o velho general chama “eventualidades impenetráveis” e, assim armados de conhecimento, podermos, pelo movimento da nossa vontade, individual ou colectiva, influenciar o curso das coisas. A surpresa, porém, está sempre ao virar da esquina. O curso do mundo ao depender dessas «interacções de extrema complexidade» acaba não apenas por frustrar os intentos da nossa vontade, por mais poderosa que ela seja, como por seguir uma via que ninguém previra e que, no mais das vezes, talvez ninguém desejasse.
Mas um cérebro mais potente, por exemplo uma espécie de fusão entre o cérebro humano e a máquina computacional, não terá capacidade de determinar a extrema complexidade das interacções e assim prever o curso do mundo? Esta é a ilusão que sustenta a crença na ciência e na técnica. Mas um cérebro desses, mais potente, ao fornecer um número sempre crescente de imperativos que conduzirão a vontade na acção, multiplica as próprias possibilidades e, dessa forma, em vez de fazer crescer a determinação dos acontecimentos acabará por multiplicar a indeterminação. Apesar da propaganda, se nós olharmos para o mundo hoje em dia, ao fim de 4 séculos de crescimento ininterrupto da ciência, o mundo está, para a espécie humana, muito mais indeterminado do que era no início da época moderna. Quanto maior é o poder da vontade humana fundada no conhecimento racional, singular ou colectiva, maior é a indeterminação em que a espécie vive, maior é a irracionalidade que a envolve.
Uma das experiências fundamentais da humanidade ocidental nos últimos séculos é o da natureza irracional da própria razão. São tantos os exemplos, que chega a parecer incompreensível que não se dê por eles. Observe-se a política. Observe-se como a razão planificadora, no nazismo, gerou a irracionalidade dos campos de concentração. Veja-se como a razão emancipadora, no comunismo, gerou sociedades asfixiantes e aniquiladoras das liberdades. Veja-se como, no mundo da economia, a necessidade racional de controlo está a tornar o trabalho destituído de sentido humano. Há um mistério na razão: a sua natureza irracional. Toda a razão é uma irrazão. É como se, deixada a si-mesma, a razão fosse impotente para travar a sua própria loucura. Os tempos modernos são a experiência do fundo negro da razão.
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Uma das crenças mais fundas da modernidade ocidental, uma espécie de fé de ateus crentes no progresso, é a possibilidade de penetrar naquilo a que o velho general chama “eventualidades impenetráveis” e, assim armados de conhecimento, podermos, pelo movimento da nossa vontade, individual ou colectiva, influenciar o curso das coisas. A surpresa, porém, está sempre ao virar da esquina. O curso do mundo ao depender dessas «interacções de extrema complexidade» acaba não apenas por frustrar os intentos da nossa vontade, por mais poderosa que ela seja, como por seguir uma via que ninguém previra e que, no mais das vezes, talvez ninguém desejasse.
Mas um cérebro mais potente, por exemplo uma espécie de fusão entre o cérebro humano e a máquina computacional, não terá capacidade de determinar a extrema complexidade das interacções e assim prever o curso do mundo? Esta é a ilusão que sustenta a crença na ciência e na técnica. Mas um cérebro desses, mais potente, ao fornecer um número sempre crescente de imperativos que conduzirão a vontade na acção, multiplica as próprias possibilidades e, dessa forma, em vez de fazer crescer a determinação dos acontecimentos acabará por multiplicar a indeterminação. Apesar da propaganda, se nós olharmos para o mundo hoje em dia, ao fim de 4 séculos de crescimento ininterrupto da ciência, o mundo está, para a espécie humana, muito mais indeterminado do que era no início da época moderna. Quanto maior é o poder da vontade humana fundada no conhecimento racional, singular ou colectiva, maior é a indeterminação em que a espécie vive, maior é a irracionalidade que a envolve.
Uma das experiências fundamentais da humanidade ocidental nos últimos séculos é o da natureza irracional da própria razão. São tantos os exemplos, que chega a parecer incompreensível que não se dê por eles. Observe-se a política. Observe-se como a razão planificadora, no nazismo, gerou a irracionalidade dos campos de concentração. Veja-se como a razão emancipadora, no comunismo, gerou sociedades asfixiantes e aniquiladoras das liberdades. Veja-se como, no mundo da economia, a necessidade racional de controlo está a tornar o trabalho destituído de sentido humano. Há um mistério na razão: a sua natureza irracional. Toda a razão é uma irrazão. É como se, deixada a si-mesma, a razão fosse impotente para travar a sua própria loucura. Os tempos modernos são a experiência do fundo negro da razão.
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