26/04/07

Aristóteles - A questão do regime político

“Significa isto que não devemos contemplar apenas o melhor regime mas também aquele que é simplesmente possível, e ainda aquele que é de mais fácil aplicação e mais comum a todas as cidades. A verdade é que grande parte dos autores procura apenas a forma mais excelente e que requer abundância de recursos; outros propõem uma forma comum para todas as cidades, menosprezando os regimes já estabelecidos, e exaltando, por exemplo, a constituição espartana ou outra qualquer.
O que verdadeiramente interessa, pelo contrário, é introduzir uma ordenação política cujas disposições persuadam facilmente os cidadãos e facilmente sejam adoptadas; pois não é, de modo algum, menos trabalhoso o acto de reformar um regime do que o acto de o instituir desde o início, da mesma forma que não é menos trabalhoso o acto de aprender melhor do que o acto de aprender desde o início. É por isso que, além de outros aspectos referidos, o político deve ser capaz de auxiliar os regimes já estabelecidos, como já tivemos oportunidade de referir.” [Aristóteles, Política, 1288 b 34 – 1289 a 7]

Conseguiremos, nos dias que correm, ler em toda a extensão aquilo que, neste excerto, Aristóteles propõe sobre a questão do regime político? Tentemos, de forma sistemática, escavar o que está aqui presente:

1. O mais importante é a existência de um regime político (uma ordenação política). O pressuposto não dito é o seguinte: a existência de um regime político é preferível à sua inexistência. Dito de outro modo, a política é uma inevitabilidade para a espécie humana.

2. Que tipo de ordenação política deverão, o legislador e o político, introduzir? Aquela cujas disposições persuadam facilmente os cidadãos e sejam facilmente adoptadas. O critério da escolha do regime parece bastante pragmático. Está ligado à ideia de uma adopção fácil. No entanto, não nos deveremos precipitar. A ideia de persuasão deixa, pelo menos, pressupor uma certa necessidade de gerar um consenso entre os cidadãos. A eficácia surge, no texto, submetida a esse «consenso» a buscar pela persuasão. Note-se, ainda, que ao introduzir a ideia de «disposições que persuadam facilmente os cidadãos» se está a fazer um apelo a um regime que não se impõe pela força, mas pela argumentação.

3. Se se estiver atento descobrem-se, relativamente aos regimes políticos, quatro qualificações a considerar: 1. o preferível; 2. o possível; 3. o de mais fácil aplicação; 4. o mais comum. Estas qualificações não têm de ser lidas como excluindo-se umas às outras, embora existam tensões interessantes entre elas.

4. Quando Aristóteles diz que «grande parte dos autores procura apenas a forma mais excelente e que requer abundância de recursos», ele não está apenas a fazer uma crítica ao regime ideal proposto na República, de Platão. Está a lançar as bases de toda a futura crítica da utopia em política. O melhor regime, o mais excelente, apresenta essa dificuldade essencial de não se coadunar com os recursos existentes. A utopia política, como utopia que é, não tem em consideração as condições do espaço e do tempo e, por isso, a sua excelência é apenas abstracta e inconcretizável. É contra esta crítica da utopia que Marx vai argumentar com o que ele chama a necessidade de realizar a filosofia, de a pôr em prática. Todos conhecemos os resultados. Marx, nessa perspectiva, é um herdeiro de Platão, embora este tivesse consciência de que a sua cidade ideal não passava disso mesmo.

5. Aristóteles opõe ao «melhor regime» o «regime possível». Este é aquele que cada condição espácio-temporal e de cultura cívica permite organizar. A política não depende da verdade, mas de uma adequação pragmática às condições de possibilidade. Esta meditação aristotélica é um poderoso adversário da doutrina do neo-conservadorismo evangélico norte-americano: a ideia de que a democracia é o melhor regime e que é exportável, independentemente das condições. Este tipo de pensamento transforma o regime democrático-liberal também numa espécie de utopia, a que se aplicam por completo as reflexões apresentadas no ponto anterior. Aqui, poderemos articular a ideia de regime possível com a ideia de regime de mais fácil aplicação.

6. Aristóteles afasta a ideia de que se deve impor o regime mais comum. Subjacente a isto está que o regime mais comum (aquele que existe em maior número de comunidades políticas) pode não ser aplicável a uma dada comunidade concreta.

7. Uma ideia interessante é aquela que termina o texto de Aristóteles: «o político deve ser capaz de auxiliar os regimes já estabelecidos». A questão não seria então de fazer as comunidades políticas abandonar a sua tradição, mas respeitar as tradições políticas existentes, melhorando-as, mas no respeito pela sua multiplicidade. Esta ideia choca claramente com a perspectiva iluminista que é a dos modernos, seja na sua vertente liberal, seja na marxista. Para este tipo de pensamento o progresso implica uma transição de regimes.

8. Esta ideia não está completamente afastada em Aristóteles. Apesar da sua abordagem aparentemente conservadora (melhorar o regime existente, escolher o possível em vez do excelente), Aristóteles deixa em aberto a questão. Como faz isso? Fá-lo ao não eliminar a consideração do «melhor regime». A prudência manda respeitar a multiplicidade de tradições políticas, a facilidade de persuasão dos cidadãos e o que é possível. Mas não fica fora do debate «científico» a questão do melhor regime. A ideia do «melhor regime» constitui-se não como um programa a levar à prática (por exemplo, foi o que o leninismo tentou fazer com o marxismo, ou Bush no Iraque), mas num ideal regulador da acção política.

9. O pensamento político contemporâneo ganha alguma coisa com Aristóteles? Ganha! Em primeiro lugar a prudência. Esta prudência deverá evitar novas tentativas de evangelização democrática, ou a tentação de democratizar a China, ou sonhar com a eliminação da teocracia islâmica iraniana; em segundo, o reconhecimento da multiplicidade de regimes políticos existentes e que deverão conviver entre si, sendo mais importante melhorá-los do que transformá-los radicalmente; em terceiro, não afasta a questão do melhor regime. Esta continua em aberto e motivo de debate teórico. Este debate acabará por se repercutir nos diversos regimes que, eventualmente, por pressão dos próprios cidadãos, caso a sua cultura cívica e os seus recursos se alterem, se poderão transformar.

10. Curiosamente, Aristóteles, um pensador clássico, não fecha o horizonte da discussão. Pelo contrário, tem a capacidade de mostrar a complexidade do problema político e a multiplicidade das suas vertentes. Poder-se-ia dizer, se não fosse um anacronismo, que é um adversário do pensamento único.

4 comentários:

jlf disse...

Fantástico como nos transporta à sua meta!...
Aristóteles?
Não só.
Ambos.

Não tenho a certeza de estar de acordo com TUDO...
Mas está muito bem "mastigado".

jlf disse...

A crítica da doutrina do neo-conservadorismo evangélico norte-americano está muito bem conseguida.

Parece-me comparar o incomparável é quando se colocam no mesmo plano Lenine e Bush!

Um burro não será nunca comparável a uma ave. Ainda que alguém queira ver nessa ave um papagaio...

Esta (minha) não é uma análise. É o esboço de uma primeira impressão...

Jorge Carreira Maia disse...

Caro jlf,

Não é uma comparação entre Lenine e Bush que faço. São incomparáveis. O que comparo é a atitude presente, tanto no leninismo como no neoconservadorismo que suporta Bush, de impor à realidade, russa e iraquiana, um esquema teórico-filosófico, uma ideia abstracta. Não são as pessoas, nem as doutrinas, mas os pressupostos.

Se se analisar com cuidado a história ocidental moderna, desde o iluminismo, descobre-se, para lá das diferenças radicais,um conjunto muito acentuado de aproximações entre marxismo e liberalismo. São os dois filhos do iluminismo. São eles que, apesar do desaparecimento da URSS, ainda,em muitos sítios, dividem o espectro político.
No entanto, o comunismo que se praticou tem, na minha modesta opinião, uma natureza menos revolucionária do que o liberalismo. Julgo que o comunismo integrou nele uma vertente religiosa, disfarçada de ateísmo, que o liga, ainda que indirectamente a formas políticas pré-modernas. O liberalismo, pelo contrário, representa a contínua dissolução das formas substanciais de existência. Mas isto é um conto mais longo. Talvez escreva um dia sobre ele.

Um abraço,
JCM

jlf disse...

Esbocei uma primeira impressão...

Não obstante referir-se aos pressupostos... É uma leitura possível.

Mas que remédio tenho eu, ao fim e ao cabo, senão concordar com o Jorge.
Não por concordar. Mas porque assim é.

Não é nova, essa, de que o "comunismo integrou nele uma vertente religiosa"...
Continua a dar que pensar.
Terá sido assim?

Bom, mas eu não sou David que se aventure com tal Golias!
Ni hablar!

Fique bem e não desarme.
Abraço
jl

PS: gostei muito do seu artigo de hoje no JT.
Gosto de o ler.
Ainda não tenho uma certeza: em que modalidade o prefiro?
Prosa muito bem... Mas não poema nada pior.
Gosto de ambas.

Sensibilidades...
(As nossas).
jl