31/03/07

VI - "Meine lieben Eltern!" etc.

Quando um dia as cartas selaste um dia
e tu eras um tu sem nome nem palavra
e na língua que o acaso me fez ser sendo a minha
disse: tu nesses textos esparzidos de dor, tu ainda
cantas. Meine lieben Eltern e só estes vocábulos
chegam para comover a sombra do coração.

Não são palavras e Eltern nunca existiu. É o céu,
fala nos campos cavados pelos sulcos, regos abertos
no arado… Os sons cerzirão as areias, o cinzento
das praias, pelos barcos em fuga do cais os montes abertos.
Homens e mulheres escrevem cartas e hoje eu as oiço
digo tu, tu és música, eu a oiço, a orquestra a nascer, eu a oiço,
o dia riscado pelos seixos com que os sexos ferozes ainda podem falar.

Schwester und Bruder, Bruder und Schwester,
não suporto estas palavras, eu não as oiço,
mesmo que as digas até ao fim dos meus dias, eu não as oiço,
dos teus dias, eu não as oiço, de todos
os dias em que o Sol ainda se porá:
Schwester und Bruder, Bruder und Schwester, eu não as oiço,
se ao menos dissessem Meine lieben Eltern
talvez tudo fosse suportável. Os carros seguiriam
e os vossos filhos seriam vossos filhos e eu não saberia
alguém, escrevendo no cascalho, e eu não saberia,
diria Meine lieben Eltern.

Bem-aventurados quando os mortais cantam os deuses.
Por isso, Meine lieben Eltern, nos enviam a guerra e
soletram-nos como num segredo: Schwester und Bruder.
Não sei se os ouves, não sei se os oiço, não sei se os oiça.

[Jorge Carreira Maia, 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono]

Restolho


O relatório do TC, os governos e Salazar

Quer perceber por que motivo Salazar ganhou uma espécie de concurso para maior português de todos os tempos? Então, veja o que diz o Relatório do Tribunal de Contas sobre a auditoria feita aos 3 (três) últimos governos. Isto diz mais do que muitas pseudo-explicações que têm sido adiantadas.

Mostra a imagem de venalidade que a classe política tem aos olhos dos eleitores. Mas, não o esqueçamos, esta imagem que vem dos governos não é uma coisa distante dos cidadãos. Ela encontra um reflexo nas Câmaras e essas estão ali mesmo ao lado. Toda a gente conhece toda a gente, o que cria um sentimento de desprezo pelos governantes da coisa pública. Secretárias e motoristas, assessores e chefes de gabinete, especialistas de especialidade nenhuma, tudo isto, quando ultrapassa os limites do razoável, gera desconfiança e alimenta uma inveja larvar que há em todos os mortais.

Os políticos deveriam ser muito cuidadosos neste tipo de situações, ter cautela com o impacto destas coisas na percepção da política pela sociedade. Por respeito à coisa pública, ser severo, de uma severidade quase ascética, nestes gastos não faz mal a ninguém. O desprezo por uma gestão racional rigorosa, vista como miserabilista na concepção de muitos dos eleitos, abre o caminho para uma avaliação cada vez mais negativa das elites políticas. Depois, abre-se a boca de espanto quando, nem que seja por brincadeira de mau gosto, se escolhe Salazar como o maior português de sempre, seja lá o que isso for.

Não desesperemos, o «eduquês» chegou à China...

Numa notícia da agência EFE, de 19 de Março, encontrada num blogue brasileiro (http://estatisticaesteouaquele.blogspot.com/2007/03/voc-acha-que-estuda-muito-eles-no.html), descobre-se que o “eduquês” está a começar a dar os primeiros passos na China. Parece que as crianças têm muitas aulas e actividades extracurriculares e, por isso, dormem pouco. Fala-se na diminuição da carga lectiva. Até aqui não há grande problema.

A questão surge quando um director de uma escola primária diz que «o principal problema está no sistema que procura avaliar os estudantes apenas por suas conquistas académicas», e remata: «será necessário muito tempo para mudar a mentalidade tradicional do povo, que ainda pensa que um bom diploma é o melhor caminho para um bom trabalho».

Foi isso que aconteceu em Portugal e um pouco por todo o mundo ocidental. Os resultados estão à vista. Foi com esta ideologia contra a avaliação dos alunos «apenas pelas suas conquistas académicas» que se tornou a escola num lugar bizarro e equívoco.

Mas as escolas deveriam avaliar os alunos por mais o quê? Pelos seus princípios morais? Pelas suas conquistas amorosas? Pela forma como jogam futebol? Pelas amizades que fazem? Pela capacidade de fazer equilíbrio numa barra? Pela mestria no jogo do berlinde?

Se se vê na China um perigo potencial, então que se dê o máximo apoio possível a esta corrente pedagógica, para que ela cresça e se torne dominante. É o melhor caminho para lhe destruir o sistema de ensino e eliminar um perigoso concorrente na luta pelo predomínio global. Nós sabemos como isso nos enfraquece.

A mentalidade tradicional chinesa parece, porém, ser um dique ao avanço da idiotice do «eduquês», como mostra o sábio provérbio citado pela EFE: «se der a seu filho uma infância feliz na China, ele será um adulto fracassado».

Nós, portugueses, temos muitos e bons ministros e secretários de estado da educação que poderão ajudar os chineses a destruir o seu sistema de ensino. Não sabem quem é o senhor Dr. Valter Lemos nem a senhora Prof.ª Dr.ª Maria de Lurdes Rodrigues? Investiguem, eles podem ajudar, mas temos mais, muitos mais. É só pedir…

V - Orchestra

O som circular a cada hora retorna
os traços inquietos suspensos das mãos, as algibeiras
vazias. Recomeço! Subo as escadas se dedilhasse
num instrumento sem nome as notas. Não tem nome
aquilo a que damos nome, a conjugação de pequenos indícios
uma saliência presa ao maxilar. De que falas, se falas?

Por detrás de tudo ainda vultos brancos
a cadeira, ali te sentavas nos dias de Outono. Chegavas e dizias
vou sentar-me na cadeira. A saia subia ligeiramente e as nuvens,
como todas as nuvens de Outono, escureciam. Lá
fora a algaraviada de pássaros restolhava no sobejo
das árvores, as estações as tinham para nós despido.

Porque de amor não fazes poemas? Perguntaste um dia.
Só a música oiço. Não há vozes, nem céus azuis, nem praças
oblíquas onde te possa cantar. Olhavas-me como se a sarça-ardente
fosse e exclamavas aqui não moram os deuses. Rias
entre gritos, tormentos eram, gritos vindo de lado nenhum
as notas se elevavam, o roçagar das asas no vento da manhã.

Um barulho de comboios ouve-se no afastamento dos carris.

[Jorge Carreira Maia, 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono]

Pobre mestre...

Carlos Fiolhais escrevia hoje no público sobre o programa da TVI, “A Bela e o Mestre”. A dada momento diz e cito “Um mestre aparece identificado com um monstro na versão portuguesa deste telelixo”. E interrogava-se ele, que mais do que mestre é doutor, “Mas que mal fizemos nós? E por que motivo o mestre ou, por maioria de razão, o doutor aparece associado ao terror e ao mal?”

A questão é pertinente e não deixa de ser interessante perguntar o que significa o desprezo que toda uma civilização começa a votar à figura do mestre. Aqui, todavia, separo-me de Fiolhais. O mestre morreu quando se tornou professor e, por maioria de razão, professor universitário. Deixou de ser uma figura estrutural da vida da comunidade e passou a ter uma função, isto é, passou a ser funcionário, público ou privado.

No mestre (possuidor de mestrado) e no doutor (possuidor de doutoramento) já não ressoa o antigo «magister». Houve um empobrecimento ontológico da figura. O mestre não era apenas sábio (possuidor de conhecimento), mas também sage (possuidor de saber existencial). O mestre não era um título académico, mas uma forma de existência reconhecida pela comunidade, como o santo, o guerreiro, o artista, o magistrado.

Este empobrecimento ontológico da figura do mestre, da sua decadência de mestre em professor, certamente habilitado e dotado de inteligência (como seria doutor, não é?), mas já sem sabedoria de vida abriu o caminho para esse mestre, agora professor, ser visto de forma bizarra, em primeiro lugar, e de forma odiosa, de seguida. O mestre já não tem autoridade e, por isso, não passa de ridícula figura no mundo moderno.

Ridículo porque necessita de uma autoridade que ninguém reconhece, odioso porque ainda usa um sucedâneo dessa autoridade: ensina e classifica alunos, por enquanto.

A TVI é que sabe. Ela está na vanguarda e representa o espírito do tempo e do mundo…

30/03/07

Música para o fim-de-semana

Faça-se uma viagem ao Japão, parta-se para longe ficando onde se está. Mergulhe-se na música japonesa. Uma combinação entre a tradição e a música erudita. Para começar, música tradicional. Oiça-se o Ensemble Yonin no Kai, no álbum Sankyoku. É um álbum que apresenta composições para “shakuhachi” (um género de flauta, ver fotografia do Ensemble), shamisen (um instrumento de três cordas, ver à direita na fotografia) koto (instrumento com treze cordas e cerca de 1,80m de comprimento) e canto. É uma excelente iniciação à música tradicional e uma passagem para uma cultura que, apesar de vivermos em tempos globais, nos é completamente estranha. Ouvir como se estivesse a meditar.

A segunda proposta é um compositor erudito moderno: Toru Takemitsu e o álbum com o belíssimo nome A String Around Autumn. A música de Takemitsu é influenciada vela vanguarda europeia, nomeadamente por Varese, Schoneberg e Messiaen. Composições há que a presença do Schoenberg de “Verklaerte Nacht” e do “Pierrot Lunaire” parece evidente, pelo menos para um mero amador. Há, por outro lado, a presença da tradição musical japonesa, o que torna a música de Toru Takemitsu uma ponte de contacto entre ocidente e oriente, uma outra visão de um mundo global, que procura, nas raízes mais fundas, aquilo que pode permitir, mais do que o diálogo, a comunhão.


Como curiosidade ficam os nomes, os belos nomes, das 4 faixas que compõem o álbum: 1. A String Around Autumn; 2. I Hear The Water Dreaming; 3 . A Way A Lone II; 4. Riverrun.

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Já que estamos a falar do Japão eis uma pequena história da tradição Zen, recolhida no livro de Nyogen Senzaki e Paul Reps, 101 Histórias Zen, da Editorial Presença:

O VERDADEIRO CAMINHO

O mestre Zen Iquiú visitou Ninacava, pouco antes de ele abandonar esta vida.
- Queres que te conduza? – perguntou Iquiú.
Ninacava replicou:
- Cheguei aqui sozinho e parto sozinho. Que ajuda poderias dar-me?
Iquiú respondeu:
- Se pensas realmente que chegas e partes, essa é a tua ilusão. Deixa que te mostre o caminho onde não há chegar nem partir.
Com estas palavras, Iquiú revelara tão claramente o caminho, que Ninacava sorriu e deixou este mundo.

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Para meditar a ouvir a música do Ensemble Yonin no Kai ou a de Toru Takemitsu.

Gigantomaquia


29/03/07

IV - Mi portano a Kessariani per l'esecuzione

Tudo se entrelaça, as pedras roladas pelas mãos
os moios de trigo, a memória deixa entrever no lusco-fusco
aí a vida reverbera. Oiço a música, as vozes aconchegam-me
no desconforto os instrumentos o semeiam. A casa está branca
e eu repito exausto as palavras: Mi portano a Kessariani
per l’esecuzione. Ó se tudo terminasse, se a voz tombasse
quando diz: Mi portano a Kessariani. Seria assim tão diferente?

Per l’esecuzione, per l’esecuzione, per l’esecuzione, per l’esecuzione,
repito, como nos jogos infantis, até o mundo sucumbir
no sem sentido que o som, pela intérmina repetição, faz crescer.
Nunca as pedras rolaram nos jardins de Kessariani,
nem os corpos, nem a lua rodou sob a luz violeta de um Sol
oculto pelas planícies de Verão. Não irei a Kessariani.
Lá não haverá lugar para as minhas metáforas, para a minha morte.

Só onde o cipreste o puder acolher dado foi construir ao homem
a morada. Tudo se enreda na memória, os moios de trigo,
os carros de bois da infância, a água salitrada pelo cansaço.
Seria assim tão diferente? Não, nada sei de Kessariani,
oiço a luz instrumental, a reverberação das vozes.
Gritaram os que foram a Kessariani? Alguém gritou:
Sou uma metáfora morta e sucumbiu à luz da tarde.

Se destruísse os sons que oiço, se cada nota
uma outra desligasse, se as vozes fossem apenas
fiapos deixados ao vento, esventrados pela incúria dos camponeses,
Kessariani nunca teria existido, nem o seu odor,
ou a luz empalhada pelas tardes, não o som dos gritos
infantis na rua. Kessariani não é um lugar,
apenas uma voz entoa, o acorde se desfaz, a noite.

Pai, quero agora ajustar as contas com o mundo,
escrever das paisagens o que me levaste a ver, as horas
em que os comboios iam e vinham. Sempre chorei,
as lágrimas secas, as metáforas mortas, a vida pesada
como o grito das vozes que cantam, que cantam, que cantam,
enquanto durmo e no silêncio os gritos chamam de Kessariani
por mim. Os moios de trigo rolam pela estrada de Kessariani e eu…

[Jorge Carreira Maia, 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono]

Vida de Pirro

Pirro de Eleia (...) começou, segundo Apolodoro, por ser pintor e aluno de Bryson, filho de Stilpon. Depois acompanhou, por todo o lado, Anaxárco, seguindo-o até aos gimnosofistas da Índia e aos magos, de onde retirou a sua notável filosofia. Introduziu a ideia de que não se pode conhecer nenhuma verdade e que é necessário suspender o juízo, como o ensina Ascânio de Abdera. Sustentava que não havia nem belo nem feio, nem justo nem injusto, que nada existe realmente e de uma maneira verdadeira, mas que em todas as coisas os homens se governam segundo o costume e a lei. Pois uma coisa não é mais isto do que aquilo. A sua vida justificou as suas teorias. Não evitava nada, não se defendia de nada, suportava tudo, a ponto de ser atropelado por um carro, de cair num buraco, de ser mordido por cães. De uma maneira geral, não confiava nos seus sentidos para nada. Era, porém, protegido pelas gentes que o acompanhavam e que relatam que ele filosofava segundo o princípio da dúvida, sem agir com imprudência. Viveu cerca de 90 anos.
(Diógenes Laércio, “Vidas, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres”)

Convento de Cristo


Pedro Natal da Luz

Um blogue também serve para isto. Acabei de vir do jantar de homenagem ao Pedro Natal da Luz. Aposentou-se um dos mais notáveis professores que passou pela Escola Secundária Maria Lamas. Quem foi seu aluno sabe do que estou a falar. Quem, como eu, teve o privilégio de trabalhar com ele conhece o rigor e a exigência que punha no seu trabalho e a entrega com que o fazia. Natal da Luz foi um professor na verdadeira acepção da palavra e esta é a maior homenagem que se pode fazer a quem dedicou a sua vida ao serviço do ensino, transmitindo os valores fundamentais que a comunidade depositou à sua guarda.

Para quem não conhece o Pedro Natal da Luz, diga-se que para além de professor de História, foi deputado constituinte e o primeiro presidente da câmara de Torres Novas eleito democraticamente, tendo, porém, abandonado muito cedo a vida política.

São pessoas como o Pedro Natal da Luz que, nos negros dias que ensombram o ensino em Portugal, ainda alimentam a crença, talvez ilusória, no valor intrínseco da docência.

28/03/07

III - Coro a capella "...muoio per un mondo"

Está adiantado quando chegam os primeiros frios Novembro.
Nas terras onde nasci, tudo se rege pelo Sol e se o astro ilumina,
pouco já aquece. As vozes, embotadas pela claridade,
falam do setentrião, das neves que se anunciam,
as cidades quebradas, suspensas nas grilhetas que sobre elas
o tempo endureceu. Oiço as vozes, todos os dias oiço as vozes e calo.

Zimbórios, como sobre eles podem deixar os homens
escorregar os olhos, as madeixas de cabelo ao vento, o ensurdecedor
ruído da varejeira. Nunca o mundo aprenderemos a interrogar
a tudo tapa a esquiva pele da raposa. Ali semeia uma fonte,
o sangue a derramar-se, as vítimas curvam-se na silhueta do algoz:
Choro, se os olhos estão cansados e tudo vacila…

Nas mãos, enquanto cantam, trazem sinais, pequenas marcas
de fogo, breves símbolos de água e erva. Vozeiam e logo
os sons rasgam o silêncio imitando as tardes em que a esperança
a todos se permitia. Era tudo tão límpido, dizem. Agora apenas
sabemos soletrar e se da boca saem sons guturais, não é da
garganta que vêm, mas do fundo onde o medo que cresce esconde.

Ondas progridem na planície deserta, nas cidades infestadas de cactos,
na trémula respiração as máquinas se abatem
no frio Inverno, ora se anuncia. Oiço as vozes, mas não consigo chorar
nem articular sei as sílabas, aí onde o terror pela manhã de cinza
me aguarda. Quando a noite se aquieta, a sombra caminha para longe.
Oiço as vozes, mas aos primeiros frios só o ruído escuto dos cabelos ao vento.

[Jorge Carreira Maia, 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono]

Presenças


27/03/07

II - Orchestra

Pudesse circundar o ar e nele a névoa inflexível
fazer subir, como num tempo ainda antigo as mães
o faziam às flores dos jardins as mais fugazes. Ensinavam
de tão esquiva forma o mundo: às filhas, das rosas o sangue,
as veias inquebráveis dos lírios, interditas algumas azáleas;
aos filhos, apenas o silêncio, a cor da noite por incerto
desdém a sua vida precedia. Cantavam, como só uma mãe canta.

Onde agora se vêem muros, havia ar e ervas e pássaros.
Esquivo, tudo tudo, e os olhos pela manhã entardeciam
desenhavam-se, como sempre nos olhos se desenha, gritos,
jogos de água rasos, pedras enceradas pelo suor de tanto
no chão escavar o homem. Gritas? Ela compunha as estações,
escrevia os nomes em pedras e atirava tudo pelo ar:
O mundo começa no Outono, sussurrava e líquido era o tempo.

Massas de ar emergem fundas do fundo da orquestra.
Tempestades, o ar projecta-se terrível como se fora um
pretérito imperfeito, os cavalos abrasam junto ao pórtico
e presos nos uniformes desfilam os soldados. Não há raparigas
nas janelas, os gatos ensombram o fragor dos pés
que se colam à rudeza do asfalto por instantes. Ninguém grita!
Só os soldados marcham felizes, o esquecimento os espera.

Relâmpagos injuriam a luz do dia: quando à luz luz acrescentas
a noite cresce. Se apenas a música te incendiasse e deixasses
à porta de casa o saber que a tua mãe em ti semeou, poderíamos
olhar o horizonte e escrever cartas longas para terras desconhecidas.
Todos as leriam e não saberiam se a tua mão era um mar silvestre
ou a sombra simples, um deus da guerra amante a desenhara.
Nos jardins não há mães, nem nas ruas soldados, nem em teus olhos água…

[Jorge Carreira Maia, 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono]

Universidades privadas

Os recentes acontecimentos na Universidade Independente, incluindo neles o imbróglio de alegadas habilitações falsificadas, são mais um episódio, um triste episódio, do que se passa no mundo da nossa «iniciativa» privada ligada à educação. É bastante difícil articular iniciativa privada, expectativas de grandes lucros e educação de qualidade. A realidade não é elástica. Qualquer pessoa que conhecesse a realidade educativa tomaria mil cautelas ao abrir o ensino universitário à iniciativa privada portuguesa. As cautelas foram o que foram e os resultados estão aí.

Convém não esquecer que há um responsável político por tudo isto: Aníbal Cavaco Silva. Foi ele que permitiu também este monstro. O problema não está no facto de ter autorizado a abertura do ensino superior aos privados, mas na forma como o fez. Cavaco Silva é um exemplo muito interessante como fenómeno político. Muito bem preparado economicamente, julgou-se, pelo menos o eleitorado julgou, que isso seria suficiente para conduzir o país a bom porto. O que o país está a descobrir, dolorosamente, é que a cultura económica não é condição suficiente para o bom governo. Provavelmente, nem é condição necessária. Para isso basta um bom e decidido ministro das Finanças.

Cavaco, com duas maiorias absolutas, falha estrondosamente no essencial: reforma do estado, reforma da educação, reforma da justiça. Porquê? Aqui sou bastante platónico: as pessoas fazem o mal porque não conhecem o bem. A razão do falhanço do cavaquismo reside na frágil preparação política, cultural e histórica do actual presidente. Governou sem conhecer os problemas do Estado e sem saber quem são os portugueses. Cavaco via o mundo a partir da secretária de professor de economia.

Mas o mundo tem muitas coisas mais do que um economista pode compreender. Um exemplo: Cavaco é uma pessoa estruturalmente honrada. Se pensasse em criar um Universidade privada, nunca lhe passaria pela cabeça que ela não fosse um lugar sério e rigoroso. Se Cavaco soubesse alguma coisa do mundo e conhecesse a realidade portuguesa, essa possibilidade ter-lhe-ia passado imediatamente pela cabeça. Talvez as leis que regulam esse sector do ensino superior e as práticas de avaliação dessas instituições fossem muito mais rigorosas. Talvez a abertura desse género de instituições exigisse um outro tipo de garantias financeiras, técnicas e científicas. Se isso acontecesse talvez hoje existissem apenas duas ou três universidades particulares, mas de grande qualidade e solidamente fundadas na prática científica e pedagógica. Cavaco permitiu o mais fácil. O resultado está à vista de todos…

26/03/07

12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono

Com “Sofia, Zentralgefängnis 22. Juli 1942 etc.” começamos (ver mais abaixo) hoje a publicação de 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono, escritos entre Dezembro de 2005 e Janeiro de 2006. Este conjunto apresenta textos substancialmente diferentes daqueles que têm sido “postados” no blogue.

O ponto de partida é a audição da gravação ao vivo da obra Il Canto Sospeso, de Luigi Nono, tocada pela Filarmónica de Berlin, sob a direcção de Claudio Abbado. Esta obra representa um momento de compromisso entre a vanguarda serialista, à qual Nono pertence, e a tradição musical italiana, da polifonia e do madrigal.

Também a apresentação pública da obra, em 1992, conjuga um compromisso entre a leitura em alemão, por Susanne Lothar e Bruno Ganz, eu diria a sua recitação como pequenas orações, de cartas de resistentes ao nazismo a caminho da execução e a música de Luigi Nono, que evoca, também ela, esse momento da história da Europa e do Mundo. Os textos que agora se apresentam são escritos sob esse duplo influxo e na atmosfera que tudo isso induz.

Os textos intercalam por vezes expressões e vocábulos alemães e italianos na língua portuguesa. Intercalam também, apenas em dois textos, pequenas citações de Schopenhauer e de Platão no curso da textualidade poética, da qual também, por vezes, se suspendeu a gramaticalidade, ou, melhor, se deixou a sintaxe em suspenso. Muitas vezes o texto toca a rudeza da prosa. A tentativa, porventura falhada, de recriar o poético a partir destas estratégias retóricas conclui-se com um texto dedicado ao meu colega Eduardo Bento.

I - “Sofia, Zentralgefängnis 22. Juli 1942 etc.”

Apenas em língua tão estranha ressoam lamentosas
as palavras. São cartas; oiço e entendo
no não entender que o germânico feroz acento consigo
traz. Aqui e ali pressinto a palavra liebe
mas não é vocábulo o que oiço quando oiço
o sopro da voz, rumorejo vocálico com que
um sentido se dá de um filho para uma mãe,
talvez a carta última, uma filha de um pai
já breve se despede. Sófia, lugar obscuro para se
aprender a morrer, quando o de todos morrer é o fado:

Ó folhas de Outono no Verão feridas pelo negrume do amarelo.

Sófia a cidade em que alguém o rosto nunca vi
nunca saberei, para além da luz funesta, a música
das palavras um corpo de sílabas desenha. Sófia a cidade
em que alguém um dia teve um rosto
e o suprimiu a flectida mão dos homens ao contacto
improvável do ar os meus olhos atravessam.

Duvidosa a data, todas as datas, um dia
um filho, na certeza caligráfica, a uma mãe a morte
improvável vaticina. Nas areias da praia mais fria,
inscreve-se o solfejo de um destino precário…
Duras as palavras assim ditas, o peso forjado
nas frias entranhas de um idioma avaro como as terras
selvagens do norte, as florestas de sons à penumbra
acintosa do sentido o meu sentir mediterrânico
não traz do caos sonoro. Há palavras, eu sei
e pontuam a respiração daquele que lê
e na emoção do ler se tornam aos ouvidos
acesos dos que na noite escutam música.

Ó folhas de Outono no Verão feridas pelo negrume do amarelo.

Ó palavras benditas, Krieg, Mutter, Verstand, Bruder, Freiheit, Papa,
Vaterland, Schwester¸ ó palavras tudo para mim nada significam,
ó palavras azuis, a música em teus lábios eu ouvir recuso, ó
palavras eu já não escuto e assim uma música desce do
interior da terra até às raízes brancas dos meus cabelos,
ó palavras dadivosas, montanhas erguidas em teus olhos
na sombra, o sombrio canto da morte suspendem.

Ó palavras, palavras onde todos os sons são o prenúncio
de uma cadência clara inclinada na tarde que se extingue…

Ó folhas de Outono no Verão feridas pelo negrume do amarelo.

[Jorge Carreira Maia, 12 Poemas sob Il Canto Sospeso, de Luigi Nono]

Os limites das imagens

Fim-de-semana cinematográfico: dois filmes. O Caimão, de Nanni Moretti, e O Grande Silêncio, de Philip Gröning. Comecemos então pelo primeiro.

O que filma Moretti? Berlusconni, sem dúvida. Mas para além de toda a rábula política que pretende mostrar o significado do acontecimento Berlusconni, há uma clara interrogação sobre os limites do próprio cinema e da arte em geral, quando tomam por objecto o mundo político e o conflito ideológico. O filme é um filme sobre o cinema e os seus limites, sobre a possibilidade de conjugar arte e intervenção, ficção poética e juízo moral. Através das desventuras de um inconsciente produtor cinematográfico de filmes de 4.ª ordem, e uma jovem aspirante a realizadora, Moretti mostra-nos essa impossibilidade da arte ser apenas uma espécie de denúncia dos males do mundo. Esse filme sobre a vida e figura de Berlusconni, que lançaria a jovem e redimiria o atarantado produtor, mostra-se impossível de realizar. As circunstâncias e a venalidade humana trucidam o projecto.

Resta porém uma possibilidade: filmar o julgamento de Berlusconni. É nesta solução que se joga todo o filme: não, não é possível fazer arte a partir da ideologia, pois aquilo que fica é sempre um juízo, isto é, uma sentença jurídica, um conjunto de argumentos e a arte é ficção, artifício, composição; está para além da moral e do político. O que resta então? O único filme que se pode fazer sobre Berlusconni e aquilo que ele representa é o documentário do seu julgamento.


Em O Grande Silêncio, Philip Gröning faz uma espécie de descrição fenomenológica da vida de um mosteiro da Cartuxa, em Grenoble. Aqui estamos claramente perante um não filme: não há enredo, nem ficção, a não ser aquela que resulta da aplicação da câmara aos objectos filmados. As narrativas, e o cinema é uma narrativa, vivem da acção dos homens no tempo. Ora a vida dos monges cartuxos, com o seu silêncio e a sua oração, não pertence à categoria da acção. Ali não há peripécias, apenas o cumprimento circular e ritual da regra da ordem, numa sucessão de momentos sempre idênticos, que são uma espécie de reflexo da eternidade no tempo. A contemplação não é filmável e aquilo que as imagens nos mostram é sempre aquilo que não é.

Não é por acaso que o realizador se vê obrigado a recorrer a belíssimas imagens da montanha onde o mosteiro está construído. Mas essas imagens são antes de mais uma confissão: a da impotência perante o invisível. De certa forma, como o filme de Moretti, o filme de Gröning é também uma reflexão sobre os limites do cinema e das imagens. Curiosamente, num mundo onde se vive até à exaustão do poder das imagens, algo nos mostra, através dessas mesmas imagens, o limite destas. Aqui abre-se um espaço para, no domínio da arte, outro tipo relação com o mundo: o som. Talvez o essencial só se revele pelo som, pelo som da palavra e pelo som da música. A imagem acaba sempre por ser desviante, mesmo alienante. Repare-se, por exemplo, nos milhões de imagens que no cinema tentam encenar o amor, repare-se como elas o deixam sempre do outro lado. Também Gröning é incapaz de mostrar o que leva aqueles homens a uma vida tão austera e, para o mundo moderno, tão destituída de sentido. É esta impotência da imagem que permite que a música e a literatura não morram, é também ela que salvou a pintura abrindo-a para lá da figuração.

Poema em prosa I

Quando da noite apenas a sombra se alcança e um rumor de afilados dedos estala sobre a pele, então, o corpo, parede rasgada sobre o abismo, abre-se à sua lenta extinção. As células entregam-se à voracidade do fogo, ardem como querubins azuis em noites de estio. Vacilantes, jogam-se umas contra às outras, restolho esquecido pelos campos de trigo, erva outrora verde e agora penugem amarela por pássaros esquivos ponteada.

Ter corpo é não ser anjo, nem deus, nem luz, nem sopro. Ter corpo é apenas ter corpo, os ossos presos em sólida flutuação, a pele equívoca onde o olhar se vela, músculos tumultuando ao sabor das mãos. Aí, onde a carne é tão tocável, germina uma ânsia, um pudor demasiado frágil para que a inquieta respiração não o dissolva, o quebre e o deixe suspenso na fria memória. Depois, como uma voragem, o desassossego de aprender instala-se no coração, envenena o olhar, destila um álcool inebriado pelas faces, até que a voz, inóspita e branca, ressoe no deserto. Quem escutará?

Se um dia uma árvore disser "eu sou uma árvore" e um cão latir o seu nome, o que ficará por saber? Nem a luz, nem a noite, nem a sombra. Restará apenas ao cansado viandante desfazer as malas que o atam à viagem e deixar que a luz e a noite e a sombra se extingam. No incolor de todas as cores, no insonoro de todos os sons, navegam barcos informes. Neles ardem marinheiros bravios que, como dedos perdidos em corpo de mulher, já só a desaprender aprendem. (JCM)

23/03/07

Estalactite I

O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou pedra
hão-de cair
daqui a alguns milénios
e acordar
as ténues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.

Carlos de Oliveira, Micropaisagem

A TENTAÇÃO DO BEM

Não há maior tentação do que querer partilhar o bem. Mercadorias há que nem dadas alguém as leva. (JCM)

Castigue-se então...

Segundo o Público, uma juíza alemã não atendeu um pedido de rápido divórcio de uma mulher de origem marroquina, mas de passaporte alemão, que alegava para o efeito os maus tratos e as ameaças de espancamento até à morte pelo extremoso marido. A sábia decisão, segundo o jornal, fundava-se no facto do casal ser de cultura muçulmana e o Alcorão autorizar os maridos a castigar as mulheres.
Para além do imbróglio jurídico que a decisão representa, para além da «indignação» que o caso está e vai provocar nas boas consciências europeias, o que cabe perguntar é o seguinte: a decisão da juíza alemã é um caso atípico de aplicação das leis federais, ou o anúncio de uma nova era? Para onde aponta a seta?

Música para o fim-de-semana

Música para o fim-de-semana: na área do jazz, Paul Motian com Stephan Oliva e Bruno Chevillon; na área da música erudita, um CD com a obra "Domaines" do compositor francês Pierre Boulez.
Um bom fim-de-semana!



22/03/07

Há água, sol e verde nas palavras

Há água, sol e verde nas palavras,
rios de sílabas,
fragmentos,
lábios
e cascatas.

As palavras
estão
por dentro do rio
e nas margens
fogo,
erva seca,
pedaços de letras,
espirais de verde
a arder
na boca desta água.

[20 de Abril de 1979]

OS POLÍTICOS

A política é uma disfunção hormonal. Os políticos não precisam de votos, mas de um bom endocrinologista. (JCM)

A SAÚDE DOS OLHOS

Ver apenas! Deixar a cintilação do mundo romper as pálpebras, entrar pelas órbitas, ferir as pupilas; nada mais querer e nada mais ter.

- O que desejas? – pergunta-me solícito o deus.
- A saúde dos olhos. – respondo. (JCM)

Caminhos da Floresta


Holz [madeira, lenha] é um nome antigo para Wald [floresta]. Na floresta [Holz] há caminhos que, o mais da vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não-trilhado.
Chamam-se caminhos da floresta [Holzwege].
Cada um segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim.
Lenhadores e guarda-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta. [Heidegger, Caminhos da Floresta]

21/03/07

Rainer Maria Rilke, Vergers - 9

Se se canta um deus,
este deus dá-vos o seu silêncio.
Todos nós caminhamos apenas
para um deus silencioso.

Este imperceptível câmbio
que nos faz vibrar,
torna-se a herança de um anjo
sem nunca se nos dar.

(Tradução: JCM)

A nova virtude

A ambição foi outrora um vício, uma vergonha que se escondia, como se se encobrisse um segredo de família, obscuro e terrível. (JCM)

Inovação

Sempre que ouvires a palavra inovação deverás fugir. A boca que a profere não sabe o que diz, mas conhece o mal que faz. (JCM)

11 de Setembro - 20


Que melhor metáfora para terminar a série de fotografias sobre o 11 de Setembro? Por muitas idiotices que façam os americanos, e têm feito muitas, por muito modernos que sejam, e eles são a consumação da modernidade, a luz brilhante da liberdade não pode nunca deixar de nos comover.
Talvez a liberdade seja apenas uma pequena ilha perdida, rodeada por um mar proceloso, talvez... Mas o povo que um dia ergueu aquela estátua e a colocou com símbolo da sua vida só pode esperar uma eterna admiração.

20/03/07

SONETO DITADO NA AGONIA

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura;

Conheço agora já quão vã figura,
Em prosa e verso fez meu louco intento:
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura.

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... a santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

(Manuel Maria du Bocage)

Uma ideia

Há gente tão estúpida que se uma ideia aparecesse na superfície do seu cérebro, suicidar-se-ia, aterrorizada pela solidão. (Cioran, Le Crépuscule des Pensées)

11 de Setembro - 19


19/03/07

António Franco Alexandre - Duende - 39

Já proibi as letras e as imagens
e até o horizonte, azul-tranquilo,
penso bani-lo um dia, como o erro
que se corrige a tempo num esboço.
Se do poço te ergui, foi distraído
pelo suor maligno em que dormias,
julgando que mais tarde poderia
consertar o defeito de fabrico.
Agora me arrependo de ter dito
verdadeiras palavras ao ouvido
de cego e desastrado demiurgo;
vou fechar para férias o universo
e levar-te num verso com a vida
à oficina das falhas e perdidos.

António Franco Alexandre (2002). Duende. Lisboa: Assírio & Alvim.

A dignidade do trabalho

Que não se continue, portanto, a mascarar o que existe no seio desta civilização socrática! Um optimismo que se julga ilimitado! Que não nos deixemos assustar por vermos amadurecer os frutos deste optimismo; por vermos a sociedade, corroída até às suas camadas mais baixas, a revolver-se pela agitação dos apetites e das invejas; por vermos a crença de toda a gente na felicidade terrestre; por vermos, enfim, a crença numa civilização geral do saber transformar-se, a pouco e pouco, numa reivindicação ameaçadora desta felicidade terrestre alexandrina, sob a influência desse deus ex machina à Eurípides! Impõe-se pois a seguinte observação: para continuar a durar a civilização alexandrina não pode prescindir de uma classe de escravos, mas é obrigada, pela sua visão optimista da existência, a negar a necessidade dessa classe e caminhará então gradualmente para uma destruição desastrosa, quando se tiver esgotado o efeito das belas palavras, tão sedutoras quanto lenitivas, acerca da «dignidade do homem» e da «dignidade do trabalho». (F. Nietzsche, A Origem da Tragédia.) (Quadro: E. Munch - Nietzsche)

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Para meditação dos espíritos modernos. O texto é de 1871. Actual como tudo o que é grande. Estas poucas linhas valem 500 páginas de Marx. E Marx é um grande autor, mas sofre de optimismo e acredita na «dignidade do trabalho». É, ao contrário de Nietzsche, um filho de Hegel. Não será toda a modernidade uma doença? Talvez uma doença fatal... Daquelas que apenas apresentam sintomas benignos, mas que sob eles ocultam o que há de mais terrível.

11 de Setembro - 18


18/03/07

Francisco Brines - Los sinónimos

Más allá de la luz la sombra,
y detrás de la sombra no habrá luz
ni sombra. Ni sonidos, ni silencio.
Llámale eternidade, o Dios, o infierno.
O no le llames nada.
Como si nada hubiera sucedido.

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Tradução de José Bento:

Para lá da luz está a sombra,
e por trás da sombra não haverá luz
nem sombra. Nem silêncio, nem sons.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não lhe chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.

In Francisco Brines (1987). Ensaio de uma despedida - Antologia (1960-86). Selecção e tradução de José Bento. Lisboa: Assírio& Alvim.

Julius Rontgen

Começar a semana com a música de um compositor, para nós, quase desconhecido, Julius Rontgen (1855-1932), e pouco disponível no mercado. É provável que sofra de algum apagamento no extenso panorama da música erudita. A gravação proposta é de Maio de 2006, um duplo CD, que contém 3 sonatas para viola e piano, 5 lyrisch gange (canções líricas), para viola, piano e voz. Como complemento, há duas canções, também para viola, piano e voz, de Joahnnes Brahms.
Francien Schatborn, em viola; Jeannette Koekkoek, em piano, e o mezzo-soprano Margriet van Reisen.

O primeiro CD apresenta as 3 sonatas, o segundo, as canções acompanhadas ao piano e viola.

11 de Setembro - 17


Leggio VI

Se tudo tão distante se tornou, as casas, as silhuetas
As ruas espinhadas de gente. Roncos de máquinas
Motorizados e frementes, se tudo tão distante se tornou,
As praças abertas para o rio, o vento, o vento as traz
Consigo, ao bater nos telhados. Ressoa uma canção,
Horas que ao silvar longe se ouvem, presas na solidão.

Em cadência imprecisa deixo os olhos vogar entre
Ruas e avenidas e espero a súbita sombra que a luz
Ao morrer em canto incerto faz cair. Abandonados,
Entre quintais vis e esfacelados, muros cobrem-se
De ervas, memória da terra a germinar na cidade.
No céu, um tremor de nuvens, astros e breve claridade.

As vozes sumidas entram pelas casas e escondem
O nada que as inflama. Tão cansadas, falam como se
A um deus orassem e nada dizem, e nada ouvem, vozes,
Ecos, o tempo as esqueceu, debruadas de silêncio,
Gradadas ervas sujeitas ao mar. Quando subo, de gente
Mirram as colinas, moinhos à espere que vente.

A distância aumenta se as ruas em desvario corro
E há homens e mulheres afadigados entre hotéis
Vazios e jardins fanados, castanheiros de úlceras
Cobertos. Nas estradas, pombos, gatos alados, as
Vísceras às varejeiras oferecem. Noite, tudo se cerra
E se alguém fala é na cidade a voz vinda da terra.

La Lontananza Nostalgica Utopica Futura

Com “Leggio 6” termina a publicação de uma séria de textos escritos sob a audição de “La Lontananza Nostalgica Utopica Futura”, de Luigi Nono. Mais uma vez se refere que os textos não são uma espécie de interpretação da música. São, antes, induzidos pela música, desencadeados pela audição sistemática das peças, para percorrerem o seu caminho. Em todos eles há, todavia, uma relação, ao mesmo tempo, nostálgica e utópica com a “minha” Lisboa, como ela pulsou um dia no meu olhar, como o Tejo desaguou na sensibilidade e cresceu nas palavras.
Luigi Nono é um dos «meus» compositores contemporâneos. Retorno sempre a ele. Daqui a uns dias, iniciarei um novo ciclo de textos escritos, entre Dezembro de 2005 e Janeiro de 2006, sob a audição de uma outra obra de Nono,”Il canto sospeso”. Entretanto, fica, para os próximos dias, o lugar para os «meus» poetas, para alguns deles, entenda-se.
Depois, há sempre a música de Nono...

17/03/07

11 de Setembro - 16


16/03/07

Leggio V

Cresce, em dias de Setembro, um medo
Emaranhado nas arribas do céu. As rajadas
Abanam prédios e os muros em precário
Equilíbrio dissolvem-se. Quando chove, pela cidade

Rugem deserdados cães e o rio dilata, engrossa,
Longe lança suas redes; os homens, ínfimos
Peixes, correm rua abaixo, gritam de lama
Inundados. Como barcos pela âncora surpresos,

Carros passam na vertigem da água e em janelas
Esconsas abrem-se indelicados olhos vítreos,
Pequenas, polidas pedras e espelhadas. As dolentes

Árvores, em mansidão vegetal, cobrem
De raios incendiados as avenidas brancas
E exíguas. Ao arder, gelam desmemoriadas.

Escola e barbárie

Este bric-a-brac pedagógico faz das obras literárias simples «instrumentos» ou «suportes» de um método de aprendizagem que visa fazer adquirir o mais rapidamente possível as competências operacionais, em detrimento do tempo necessário à formação da sensibilidade e do juízo crítico (jugement). Despreza a significação de uma obra literária enquanto ela abre para a interrogação, exprime a condição humana, fornece aos jovens referências e pontos de orientação na construção de uma identidade. Tudo isto no período de questionamento que é a adolescência. Aplicada ao ensino, a lógica das competências apaga as finalidades específicas da escola num sentimento estreitamente adaptativo e favorece o desenvolvimento duma relação utilitarista à cultura. Ela é a negação prática da cultura como elemento essencial daquilo que produz o humano. [Jean-Pierre Le Goff (1999/2003). La barbarie douce. La modernisation aveugle des entreprises et de l'école. Paris: La Découverte]. Tradução do excerto JCM.
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Quem quiser perceber o lixo que o actual Ministério da Educação está a impor às escolas portuguesas deverá ler o livro do sociólogo Jean-Pierre Le Goff. Note-se, no entanto, que a primeira edição é de 1999. Para nós, portugueses, está completamente actual. Sem tirar nem pôr. Este é o retrato do desastre educativo francês, aquele mesmo que conduziu às revoltas dos banlieus, aos carros queimados, etc. Uma socióloga como a Ministra da Educação talvez aprendesse alguma coisa, se é que a senhora está interessada em saber o que quer que seja. O que estamos a preparar? De forma doce, a barbárie...

11 de Setembro - 15


15/03/07

Leggio IV

Ruídos de sirenes pela noite de transeuntes
Ao acaso das ruas rendidos. Em estreitas ruelas,
Flamejam avaras pequenas luzes e se pelo chão
Imundos os destroços caem, é nas mãos

Vazias que brancos e lívidos se trazem. Esqueceram
Na senda da noite o nome que lhe deram e
Sentados na calçada ao deus pedem
Pela manhã a memória venha, mesmo se branca,

Mesmo se fria e gélida. Garrafas partidas
Estilhaçados copos, tudo a noite cobre
E os corpos destilam abraçados; gavinhas

Frágeis logo a aurora as desfaz. No frio da cidade
O ar recobre-se de névoas e o Tejo embarca
Pelo mar ali no lugar onde tudo se refaz.

O fim das ilusões

Retomemos o progresso moral da humanidade. A notícia da libertação, em Espanha, de 91 trabalhadores “escravizados” vem mostrar, mais uma vez, quão débeis sãos as aquisições civilizacionais. Em plena União Europeia é possível haver pessoas a passar por situações absolutamente inaceitáveis. Esta caso não é, por certo, único e situações destas, mesmo no espaço europeu, não se devem restringir a Espanha e a alegados “negreiros” portugueses. Há qualquer coisa no ambiente em que se vive que apela a esta “criatividade” extrema de certos meios empresariais dados à inovação. O interessante da notícia reside na seta para onde ela aponta. Serão apenas manifestações extravagantes, uma espécie de reminiscência do passado mais ou menos recente, ou, pelo contrário, estar-se-á a ter os primeiros vislumbres do admirável mundo novo que espera a humanidade? Para onde aponta a seta?

Mas há ilusões que não acabam...

Há pessoas que se julgam o centro do universo. O que irá na cabeça do dr. Santana Lopes para, a cada momento, escavar o terreno de Marques Mendes? Hoje vem falar em «diferenças quase insanáveis» sobre a orientação política do partido. Como é possível que no PSD ainda se dê crédito a este tipo de coisas e se suporte as opiniões do dr. Santana Lopes? Como é possível que um partido ature a ameaça velada de alguém se julga destinado a sabe lá Deus o quê? O dr. Santana Lopes não mostrou já o nada que tinha para mostrar? Tudo isto manifesta duas coisas: 1.ª Há muita gente que julga que fazer oposição é berrar, armar uma comédia, organizar jogos florais e deitar foguetes. Estar na oposição, pelo contrário, é duro e ser sério politicamente, enquanto não se está no poder, é duríssimo; 2.ª O PSD precisa de mão forte, cara feia e pouco simpática com a multidão de prima-donas que por lá pululam. Até hoje só Sá Carneiro (com dificuldade) e Cavaco Silva conseguiram meter alguma ordem, e não por tempo muito longo, naquela casa.

11 de Setembro - 14


14/03/07

Leggio III

Profícua luz a com qu’a tarde cai e no ruído
Entretecido de silêncio há pela cânfora das avenidas
Vultos viandantes, pequenas aves bêbadas
Poisadas na fímbria quântica das ruas. O deus
Aos corações incautos dardeja e sentados
Pelos bancos os olhos vêem passar na
Pressa que à noite o dia deu raparigas fanadas
Hirtos olhos de seios ligeiros flocos a tremer.

Animais famintos pelo Rossio exíguos a uivar
E das ruas que para o Tejo caem avisto barcos
Lêvedos a minguar. O oceano da terra os atrai.
Com tanta leveza do chão os olhos tudo fitam
Anseiam no céu divino o motim fértil e fecundo.
E onde os meteoros soçobram lá prendem-se
Reflexos velozes incendiados, aviões acesos
Pela vertigem na cidade em delíquio caem.

Se a inconstância logo tudo toca, em teus dedos
as paredes brancas, planície de vagens fluentes e
Negras, ruelas de palavras, a voz rouca se
Canta. Húmidas manchas aí se aninham
E homens sóbrios já a noite descai pelas ondas
Luminares banhados marcham enquanto
A cegueira tão cega os alevanta. Não há
Vapores no cais, só bandeiras a cidade mancham.

Em louvor da vida contemplativa

John Gray foi professor em Oxford e na London School of Economics. De formação em Filosofia, dedica-se, hoje em dia, a uma espécie de hermenêutica negativa, centrada no desmascaramento das ilusões que nos atravessam. Deu uma entrevista ao Público de Domingo passado. Dessa entrevista, são retirados alguns excertos para actividade meditacional... Sem comentários. Os títulos, a bold, são nossos.
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As ilusões

O que tento lembrar às pessoas é o lado negro dos seus sonhos ou, se quiser, as suas ilusões. O perigo de destruir as ilusões humanas é levar ao desespero. O perigo de encorajar as ilusões humanas é que produz arrogância. No século XX e agora, no XXI, o maior perigo, do ponto de vista político e intelectual, é esse mesmo – a arrogância.

A arrogância neoliberal

A arrogância ocidental traduziu-se numa ideologia neoliberal que se transformou numa espécie de marxismo ao contrário, com uma interpretação muito estreita da experiência humana, com alguma indiferença pelos sacrificados do progresso mesmo que numa escala muito menor.

Contemplação e não acção I

Tento recuperar a ideia de que uma vida humana pode ter significado sem ter necessidade de mudar o mundo ou as coisas. É o valor da contemplação, que foi muito importante em muitas civilizações até há 200 anos. Hoje, vivemos com a ideia de que, a não ser que mudemos o mundo, que melhoremos o mundo, falhamos. A maioria das pessoas não melhora coisa nenhuma.

Contemplação e não acção II

Os gregos antigos valorizavam a contemplação como a mais importante actividade humana. Os indianos, os chineses, alguns cristãos reconheceram que a vida humana pode ter significado e ter valor sem ter de mudar coisa nenhuma.

O liberalismo marxista

Aliás, muitos economistas liberais modernos são marxistas inconscientes. Acreditam que o desenvolvimento do capitalismo produz inevitavelmente uma civilização burguesa. Historicamente falando, não há assim tanta evidência. Na Europa, por exemplo, o capitalismo produziu uma grande variedade de regimes.

A lógica da globalização

A globalização deixou de ser um projecto predominantemente americano ou ocidental. Agora é um projecto chinês, indiano, etc. E isto era inevitável. Porque o que a globalização faz é espalhar a tecnologia e a industrialização através do mundo. Por isso, a lógica interna da globalização é minar o poder americano.

A ilusão do progresso I

O problema é esse, tentar perceber que ilusões ou mitos são os mais prejudiciais. O exemplo crucial é a crença no progresso. Provavelmente, a campanha contra a tortura que Voltaire e Montesquieu levaram a cabo dependia da ideia de progresso. Só que essa ideia tornou-se perigosa a partir do momento em que passou a alimentar a convicção de que a humanidade está sempre a subir degraus e não pode cair pela escada abaixo.
A ilusão do progresso II

Há um progresso científico cumulativo e que é difícil perder. Isso aceito. Não creio que a ética e a política possam ser cumulativas no mesmo sentido. Sabemos o suficiente da história da humanidade para saber que o que ganhamos pode ser perdido. Veja a tortura. Num abrir e fechar de olhos, começou a tornar-se outra vez legítima. Nos EUA está a ser redefinido o conceito…

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A entrevista foi dada pela ocasião de publicação, em Portugal, do seu novo livro Sobre Humanos e Outros Animais.

O livro mais conhecido, também já publicado em Portugal, é Falso Amanhecer.

11 de Setembro - 13


13/03/07

Leggio II

Em becos tranquilos flutuam no ar dolente
Casais de namorados tão enamorados, tão presos
Na urdidura que mãos em mãos tecem. Nem a luz
Os ilumina, passam apenas como se um jardim
Os chamasse. As casas pelos carros
Fumegadas em desvario abrem janelas, cegos olhos
Cantos onde a vida pelo tédio espreita.

Às vezes, fogem para o Castelo e choram
A dor que lhes dói. A luz ilumina as praças
Em esquadria, como se geométricas, um dia
Alguém, na ânsia de tanto ordenar, as fizesse. Barcos
Encalhados na areia, os jacarandás pelas avenidas
De Maio o fim espreitam. S. Jorge inquieto,

Firme, o dragão que à morte lhe deu vida, espera.
Quantos anos tens e assim ela mostra-lhe os dedos e
Ele conta-os, conta-os, pela tarde recoberta de luz
O Tejo a marulhar ao longe, as águas espessas
O coração ainda aberto praça desvalida sem armas
E sem tréguas ao tumulto do deus entregue.

O retorno da tradição

Bento XVI parece apostado em voltar à tradição. Sobriedade litúrgica, reintrodução do Canto Gregoriano, possivelmente o retorno da missa em Latim. Faz sentido? Do ponto de vista estético faz todo sentido. A liturgia católica tinha-se tornado absolutamente insuportável: um sentimentalismo xaroposo. Mas, por exemplo, a questão do Latim será pertinente, mesmo como sinal contra os tempos?

O que se está a passar, na Igreja Católica, mostra, mesmo que ninguém o queira dizer, a absoluta falência do Vaticano II. A expectativa de João XXIII e de Paulo VI de fazerem frente à erosão da fé através da abertura ao mundo foi completamente gorada. As igrejas que estavam cheias esvaziaram-se, as novas gerações afastaram-se se não da fé, pelo menos da prática e do seguimento dos preceitos. Ao modernizar-se, a Igreja contrariou a sua natureza não-moderna, não subjectivista, não individualista e parece agora em vias de naufragar num mundo cujo espírito lhe é, por essência, adverso.

A tentação é retornar aos fundamentos da tradição. Será isso possível, num mundo absolutamente voltado para a volúpia do futuro? O problema da Igreja não é diferente daquele que se abate sobre as nossas sociedades: a modernização contínua das sociedades e das suas instituições está a destruir os fundamentos dessas mesmas sociedades e instituições. Elas estão presas num círculo a que parecem condenadas a soçobrar: modernizam-se para persistir, mas a modernização arrasta para a destruição os fundamentos e sem esses fundamentos sociedades e instituições não podem subsistir.

Será ainda possível elaborar uma síntese entre a tradição (herdada dos clássicos e dos medievais) e a razão moderna iluminista? Uma síntese que permita um diálogo entre o presente, o passado, depósito da autoridade, e a expectativa de haver um futuro onde a humanidade exista? Não será já demasiado tarde e a restauração de Bento XVI não passará de uma tentativa de parar o vento com uma peneira?

11 de Setembro - 12


12/03/07

Leggio I

O fragor da madeira fresca para a cidade os homens
traziam e em apertadas ruas abriam com langor
avaras passagens. A estreita senda onde na manhã
dos dias de ontem os eléctricos esculpiam, no frio
da estrada, imensas, pois amarelas e vivas, as paisagens.

Os pregões, tal ainda dado ouvir me foi, ali
a voz calaram e as ruas ora desertas habita-as
gente, fantasmas ondulantes perdidos como
pássaros suados, a bramar por nós, chamam.
Quando gaivotas, poisam de asas descobertas.

Nas sombras da tarde não há mistério e pelos cafés
bóiam turistas, gente obscura, despojos breves vindos
da terra perdida do império. Quando as águas correm
a cidade grita e no céu como raparigas suspensas
regurgita de cinza a nuvem trespassada de mágoas.

O Sol em leve inclinação ao meio-dia deixa
entre casas um risco de frescura breve.
As árvores agachadas pois árvores são
fazem lembrar em funesta analogia difícil
um gigante, antes de um anão a breve mesura.

11 de Setembro - 11


O Intendente, o Cardeal, o Pastor e a minha brotoeja


Os dias passam, a brotoeja cresce. Esta história do superpolícia era hoje, no Público, comparada, pelo historiador Rui Tavares, ao superpolícia do Marquês de Pombal, o Intendente Pina Manique. A curiosidade é que o Intendente sobreviveu a quem o criou, com todas as capacidades de intendência que tinha. Morto D. José, D. Maria, pouco dada aos fervores iluministas, corre com Pombal, mas Pina Manique lá fica.

É uma espécie de Intendente que o seráfico Sócrates pretende agora reavivar, sob suas angelicais ordens, em tempos de crise. Por falar em serafins e outras legiões angélicas, parece que José Sócrates está a caminhar não para a glória do poder, a essa já chegou, mas para a dos altares. Veja-se o trabalho hagiográfico do Sol, a começar pela beatífica fotografia da 1.ª página (www.sol.pt). Depois, no caderno Tabu, lá se narra a miraculosa e miraculada vida do santo, com pecados e tudo, pois santo que seja santo, terá de ter sido um grande pecador. Tome-se em consideração o veraz exemplo de Agostinho de Hipona e de Inácio de Loyola, gente estouvada que subiu à glória dos altares.

É aqui que entra o cardeal. Qual? Esse mesmo, o prefeito da congregação para a causa dos santos, o cardeal Saraiva Martins. Apesar de Bento XVI não parecer particularmente dado à fabricação de beatos, o nosso cardeal podia meter uma cunha (sempre somos portugueses) e começava já, ainda em vida, a canonizar o nosso futuro S. José Sócrates, aquele que combina a régua do carpinteiro com a diatribe do sofista, enfim um verdadeiro pastor de almas.

Se o nosso primeiro-ministro, aquele que precisa de um Intendente, é um verdadeiro pastor, justifica-se ainda mais a sua canonização. Há apenas que reescrever a história de Fátima, acrescentar mais um pastorinho, que esteve congelado uns anos, e agora, (milagre, milagre - grita-se) veio ao mundo para salvar, com intendência, a pátria. Não lhe faltarão fiéis, pelo menos enquanto tiver poder, e mesmo se não faz milagres, pelo menos não deixa de os anunciar com vigor, convicção e paciência de um verdadeiro santo.

Seja como for, a questão da intendência e a canonização jornalística fazem-me brotoeja. E quanto mais se coça…


11/03/07

Olavo Bilac - Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O génio sem ventura e o amor sem brilho!

Baudelaire, Les Fleurs du Mal - IV Correspondances

A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam às vezes brotar confusas palavras;
O homem ali passa entre florestas de símbolos
Que o observam com olhos familiares.

Como longos ecos que ao longe se confundem
Numa tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e como a claridade,
A si, perfumes, cores e os sons se respondem.

Há perfumes frescos como corpos infantis,
Doces como oboés, verdes como campinas,
- E outros, corrompidos, ricos e triunfantes,

Têm a expansão das coisas infinitas,
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
Que do espírito e dos sentidos o êxtase cantam.

(Tradução JCM)

11 de Setembro - 10


10/03/07

O tempo suspenso em Avis

Ida a Avis. O Alto-Alentejo, com a aproximação definitiva da Primavera, esplende, incendiado pela luz de um Março azul como o mar de Junho. Flores silvestres abertas ao olhar do viandante pontuam o verde dos campos que bordejam a estrada. Fundamentalmente, muito pouca intervenção humana. Um alívio! Sempre que o português põe em acção a veia construtora e o espírito de iniciativa, há que temer o pior.

Avis parece parada no tempo. Não, Avis está parada no tempo. Não, não, o tempo parou em Avis, suspendeu-se, ficou surpreso com a luz, arrepiou caminho. Cresce a eternidade onde o tempo não entra; Avis é eterna, na brancura caiada das casas, no negro das mulheres, no sossego do meio-dia.

Uma pintura mural da CDU garante que lá se constrói o futuro. Equívoco estratégico. A CDU deveria deixar o futuro para os outros, para os que abominam o presente. O futuro é o mais fácil de fazer vir, mesmo que nada se faça, ele virá. Que se construa o passado! Isso sim é uma verdadeira garantia. A única que vale a pena. Desconfio que ninguém em Avis quer o futuro, nem a CDU. Quando ali chego só quero o presente que me lembra o passado, saborear o tempo suspenso, as horas dolentes suprimidas pelo desatino de um deus. Chego ao Alentejo e gosto mais de Portugal. Tudo é mais sóbrio e mais autêntico.

Quando se está preso num tempo suspenso correm-se riscos. Não desespere por não encontrar um restaurante que se combine com a honra do lugar. Perca-se, primeiro, pelas ruas orladas de laranjeiras bravas, olhe as pessoas, o casario, a parte histórica. Depois, pegue no carro e tome a estrada de Arraiolos. Não vai sair de Avis, pelo menos do concelho. Pare logo que chegar à freguesia de Alcórrego, a meia dúzia de quilómetros de sede de concelho. Na pequena aldeia, procure a Taberna do Paulo, numa urbanização que já nos faz lembrar o futuro. Duvidamos… A casa é moderna, com um traço campestre à porta.

Entra-se desconfiado, o lugar, porém, mostra-se acolhedor. Uma sala de entrada, que serve como sala de espera, deita, por uma pequena porta lateral, para a sala de refeições. Decoração aceitável, paredes sombreadas de amarelo, presença do rústico pensado pelo citadino. Mobiliário forte, as mesas, as cadeiras, os bancos. Eis um Alentejo pujante. Mas nada de bibelôs campesinos em excesso. Se encontrar uma jarra com dois discretos cravos vermelhos , se por acaso for dado a uma certa inclinação para o lado direito, não faça leituras demasiado óbviAs. No Alentejo, o cravo vermelho é como o sobreiro, faz parte da paisagem. Há em tudo alguma justa medida. Talvez os alentejanos sejam descendentes de gregos, quem sabe?

O serviço é escorreito e simpático. Da cozinha, não se esperem revelações celestiais. Deus não se manifestou, nem Cristo veio à Terra. Mas a coisa está longe de ser de deitar fora. Pelo contrário, um belo trabalho com os materiais da região. O pão, excelente pão alentejano, vem em saco de pano e pode acompanhar um óptimo queijo de ovelha e azeitonas. Estamos no Alentejo, sejamos alentejanos. Migas-gata (não sei se se grafa assim, mas poderia grafar) e sardinha frita. Migas-gata é uma açorda de pão alentejano e alho com um corte de vinagre. O vinagre sabiamente cruzado com a tradicional açorda dá vida a esta, corta-lhe o adocicado, eleva-a e permite-lhe um belo casamento com a sardinha frita. Em tudo isto, não há oleosidades, nem untuosidades. Muitos pontos a favor da cozinheira. Depois, para continuar no terreno das migas, umas perfeitas migas de espargos a acompanhar carne do alguidar. Fizeram jus ao prato de peixe. Sóbrias, sápidas, um toque de elegância na rusticidade da planície. A sobremesa calhou ser um cónego da taberna (vá-se lá saber a razão do nome), isto é, um doce de ovos e amêndoa, com gila e merengue. Notava-se também um travo a noz. Sobremesa a partilhar, pois é, ela sim, excessiva. Tudo acompanhado por tinto do Alentejo. A carta não é grande, mas é suficiente para o tipo de comida.




Volte-se a Avis e no fim de uma volta pedestre, olhe-se, mais uma vez a água suave da barragem do Maranhão e encaminhemo-nos para a realidade. O tempo, esse que me torna a consumir e a encaminhar para o futuro, lá fica suspenso…

Rainer Maria Rilke, Vergers - 1

Esta noite, o meu coração fez cantar
os anjos que se rememoram…
Uma voz, quase a minha,
por tanto silêncio tentada,

cresce e decide-se
a não mais voltar;
terna e intrépida,
a quê vai ela se juntar?

(Tradução JCM)

11 de Setembro - 09


09/03/07

XIVa – Coloana fará sfârsit

Querer já que morte e vida se apaguem
E o tempo de tão breve se cale.
Nada hoje é vero, apenas imagem
E onde o bem vejo, sei oculto o mal.


Voa para longe da Terra
O verbo que tudo encerra.

Poesia e Música

Com “Coloana fará sfârsit” encerra-se um ciclo de textos escritos sob a audição de peças para piano do compositor Gyorgy Ligeti. As obras escutadas pertencem aos “Études”, Livres I et II, editadas pela Naxos, e tocadas por Idil Biret.

Estes estudos de Ligeti são pequenas composições elaboradas para o próprio compositor aperfeiçoar a sua técnica pianística. São exercícios.

Cada uma das peças do CD gerou um dos textos apresentados, também eles como exercício de combinação da métrica, embora sem atenção à acentuação rítmica interna de cada verso, e da rima, formando todos um jogo tensional entre uma quadra decassilábica e um dístico heptassilábico, pretendendo-se que o sentido nasça dessa tensão. Não se pense que os textos pretendem traduzir a música. Eles são antes escritos sob a música e não sobre a música.

Quem tiver prurido relativamente às gravações da Naxos, poderá ouvir as mesmas peças tocadas por Pierre-Laurent Aimard, em gravação para a Sony, integradas na “Gyorgy Ligeti Edition”.

Um novo ciclo, mais curto, de textos será começado a publicar a partir de 2.ª feira.