26/03/07

Poema em prosa I

Quando da noite apenas a sombra se alcança e um rumor de afilados dedos estala sobre a pele, então, o corpo, parede rasgada sobre o abismo, abre-se à sua lenta extinção. As células entregam-se à voracidade do fogo, ardem como querubins azuis em noites de estio. Vacilantes, jogam-se umas contra às outras, restolho esquecido pelos campos de trigo, erva outrora verde e agora penugem amarela por pássaros esquivos ponteada.

Ter corpo é não ser anjo, nem deus, nem luz, nem sopro. Ter corpo é apenas ter corpo, os ossos presos em sólida flutuação, a pele equívoca onde o olhar se vela, músculos tumultuando ao sabor das mãos. Aí, onde a carne é tão tocável, germina uma ânsia, um pudor demasiado frágil para que a inquieta respiração não o dissolva, o quebre e o deixe suspenso na fria memória. Depois, como uma voragem, o desassossego de aprender instala-se no coração, envenena o olhar, destila um álcool inebriado pelas faces, até que a voz, inóspita e branca, ressoe no deserto. Quem escutará?

Se um dia uma árvore disser "eu sou uma árvore" e um cão latir o seu nome, o que ficará por saber? Nem a luz, nem a noite, nem a sombra. Restará apenas ao cansado viandante desfazer as malas que o atam à viagem e deixar que a luz e a noite e a sombra se extingam. No incolor de todas as cores, no insonoro de todos os sons, navegam barcos informes. Neles ardem marinheiros bravios que, como dedos perdidos em corpo de mulher, já só a desaprender aprendem. (JCM)

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